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Mostrando postagens de maio, 2024

Raízes e horizontes

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O romancista e poeta baiano Carlos Barbosa me contou que “O Meu Pé de Laranja Lima”, um clássico da literatura brasileira escrito por José Mauro de Vasconcelos, publicado originalmente em 1968, acaba de alcançar a marca de 400 mil exemplares vendidos na China. Trata-se da história de Zezé, um menino de cinco anos muito esperto e sensível. Tornou-se leitura escolar para as crianças chinesas. A tradução foi feita por Ma Guangping e publicada pela primeira vez em 1983. Ela é conhecida por trazer várias obras literárias brasileiras para o público chinês, ajudando a promover nossa literatura no Oriente. A notícia me fez lembrar da história de meu amigo  Maneco. Ele passava horas contemplando a sombra de uma varinha cravada no chão do quintal, que mudava de posição a cada instante, até o pôr-do-sol:  – O que você faz aí, hein?  – Tô vendo o tempo passar, mãe... No terreiro, além da cerca de avelós, do pé de manga espada e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive n

Pedacinho do céu

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Como é curiosa e tragicômica nossa pátria de contradições, onde o futuro é tão incerto quanto a próxima nota de um chorinho que se repete, ano após ano, como se estivéssemos presos num ciclo sem fim.  Há três semanas o Brasil respira ofegante, tenso, acompanhando os dias de horror e os desdobramentos da maior tragédia climática de sua história. A devastação que atingiu centenas de municípios do Rio Grande do Sul (que poderia ter ocorrido no Rio, em São Paulo ou Alagoas) expôs o melhor e o pior de nós. De um lado, a generosidade de voluntários, vindo de todas as partes, empenhados em salvar vidas e ajudar aos desabrigados. De outro, a crueldade de marginais que invadiram casas, lojas e fazendas para saquear o que restava, e de predadores que, em meio ao caos, cometeram atrocidades até contra crianças.  Fragilizada como uma teia de aranha numa tempestade tropical, a nação oscila ao sabor da popularidade passageira e dos interesses pessoais de meia dúzia de figuras. A cada quatro anos, es

O bicho pegou

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O site americano  Vox  andou ensinando aos seus leitores como pronunciar uma nova palavra: "den-gay", diz o texto. Sim, finalmente os gringos descobriram como se fala “dengue”. Nós, brasileiros, que temos uma relação estreita com essa palavrinha desde cedo, mal podemos conter nosso entusiasmo com essa descoberta.   Ilustração: Ivan Cabral A dengue resolveu que não era mais suficiente ser apenas uma visitante ocasional em terras brasileiras e decidiu quebrar recordes dignos de entrar para o  Guinness , com dois milhões de casos confirmados até o mês passado, segundo nosso vigilante Ministério da Saúde. Pelo visto, o Aedes   aegypti  decidiu fazer hora extra este ano. Desconfio, inclusive, de que já trabalhe com  coach  e  influencers  próprios, após ter diversificado sua atuação, da chikungunya à zika.    Se deixou de ser notícia palpitante por aqui, agora é assunto nos jornais estrangeiros. O  Washington Post  fez questão de destacar que estamos cara a cara com uma crise de s

Profetas de uma paixão

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O escritor Graciliano Ramos, lá pelos idos de 1920, torcia o nariz para o futuro de uma paixão pela bola rolando de pé em pé. Preferia esportes hoje classificados como  vintage , como a corrida a pé – útil inclusive para o ofício de roubar galinhas –, além de  hobbies  como o porrete e a pega de bois pelos chifres. Chegou a sugerir que se deveria elevar a rasteira ao  status  de esporte nacional, dada a nossa predisposição inata para a malícia e o drible na ética.    Lima Barreto, outro escriba dos bons, também criticava a paixão pelo futebol, sob outro enfoque. Para ele, esse esporte seria um instrumento a mais de segregação racial. Se dentro das quatro linhas a coisa melhorou um pouco, de fora, os bárbaros continuam usando-o para vomitar sua bestialidade, como acontece de forma assombrosa em solo espanhol contra o jogador Vini Jr.   Mais que um jogo, para o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues o futebol era um retrato de nossa humanidade profunda, com suas grandezas e misérias. As

Perfume raro

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Quem de nós, navegantes com mais de seis décadas de águas revoltas, não se lembra da melancólica canção-poema “Rosa de Hiroshima”? Com esta música, o lendário grupo musical “Secos e Molhados” tocou cicatrizes, visíveis e ocultas, de crianças que, inocentes aos dramas dos adultos, sobreviveram ao bombardeio atômico no Japão.    Essas pequenas criaturas, transformadas pelos versos de Vinicius de Moraes em moleques calados e telepáticos, ou meninas cegas e desorientadas, trazem consigo o legado da radioatividade que se estenderá por gerações. E o poeta escolheu a flor para simbolizar o momento da explosão: uma imagem que evoca o trágico desabrochar de uma rosa. “Rosa com cirrose... Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”, ele pontuou.    Sim, tudo isso é muito injusto. O câncer infantil, líder cruel nas estatísticas de mortalidade entre nossas crianças, como atesta o Instituto Nacional do Câncer (Inca), prevê o doloroso surgimento de cerca de 8 mil casos anuais até 2025, atingindo joven