quarta-feira, 29 de maio de 2024

Raízes e horizontes

O romancista e poeta baiano Carlos Barbosa me contou que “O Meu Pé de Laranja Lima”, um clássico da literatura brasileira escrito por José Mauro de Vasconcelos, publicado originalmente em 1968, acaba de alcançar a marca de 400 mil exemplares vendidos na China. Trata-se da história de Zezé, um menino de cinco anos muito esperto e sensível. Tornou-se leitura escolar para as crianças chinesas.


A tradução foi feita por Ma Guangping e publicada pela primeira vez em 1983. Ela é conhecida por trazer várias obras literárias brasileiras para o público chinês, ajudando a promover nossa literatura no Oriente.


A notícia me fez lembrar da história de meu amigo Maneco. Ele passava horas contemplando a sombra de uma varinha cravada no chão do quintal, que mudava de posição a cada instante, até o pôr-do-sol: 

– O que você faz aí, hein? 

– Tô vendo o tempo passar, mãe...


No terreiro, além da cerca de avelós, do pé de manga espada e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o alerta materno:

– Tá na hora de lavar os pés, beber água e dormir! 

 


Ele e Jacira, sete e oito anos, os caçulas dos sete filhos de Chicão e Mariquinha, nasceram num pequeno sítio à margem do rio São Francisco, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento de todos vinha da pesca, da engorda de algumas crias e do plantio de mandioca, milho e feijão. 

 

Em noites de lua cheia, um impulso misterioso levava algumas mães na zona rural a, de repente, querer mudar para cidades maiores, na esperança de que os filhos descobrissem um mundo novo, aprendessem a ler, a fazer contas, a enxergar na escuridão. Não foi diferente com Mariquinha, na metade do século passado: 

– Chicão, nem pense que vou deixar esse menino ser criado aqui como Deus criou capim. Nem ele nem a irmã, viu?

– Ficou doida, foi? 

– Se quiser ficar, fique, mas vou levar os dois pra estudar na cidade.

– E vão viver de quê?

– Não sei. Deus dá jeito...

 

Contrariando o marido, que permaneceu no sítio na companhia do primogênito, Mariquinha partiu resoluta, carregando os filhos mais novos. Ao chegar em Pedregulho, alugou uma casa na periferia e conseguiu empregos menores para os três filhos mais velhos, agora responsáveis pelo sustento da família. E decidiu alfabetizar os caçulas.

 

As crianças estudariam numa escola profissionalizante. Jacira não se animou, mas o menino até pensou virar alfaiate para costurar aquelas roupas elegantes que os mais abastados vestiam na igreja. Durante o ano letivo, ambos se destacaram, sendo Maneco escolhido orador da turma na festa de formatura. E ela, integrante do coral, de última hora foi substituída por uma filha da elite local.  

 

Escondida da mãe, Jacira chorou muito. A professora, buscando contornar a situação, a fez declamadora. E lhe ensinou um poema sobre as dificuldades de uma órfã num mundo hostil do pós-guerra. No dia do evento, a menina, com olhos úmidos e mãos espalmadas, foi intensa e comoveu a todos, inclusive sua mãe:

– Chore não, minha filha, sua mãe tá viva! Olhe pra mim, bem aqui na sua frente!

 

Depois Maneco subiu ao palco e leu um discurso redigido pelo diretor da escola, começando assim: “O tempo pode ser medido pelas batidas de um relógio ou pode ser medido pelas batidas do coração...” E arrematou com “O trabalho”, de Bilac: 

“(...) É preciso trabalhar.

Não nasce a planta perfeita

E nem nasce o fruto maduro.

Para se ter a colheita

É preciso semear (...)”

 

Para quem assistiu, nascia ali uma grande atriz como Bibi Ferreira, digna de sonhar com cinema e teatro. Nascia também um escritor. Maneco devorava livros de Monteiro Lobato, fascinado pelas aventuras de Emília, uma boneca de pano com sentimentos e ideias libertárias.

 

A mãe exultava àquela altura, ainda mais porque o pai, tangido pela saudade, já se desfazia do sítio para se juntar aos seus no Natal de 1958.

 

O relógio, ansioso a vida toda, andou ligeiro desde os tempos em que a sombra de uma varinha no quintal mudava a cada instante, até o pôr-do-sol dos dias de hoje. 

 

Maneco e Jacira, hoje meus vizinhos de prédio, setentões, aposentados e viúvos, até conseguiram graduação universitária, mas não foram longe. Ela se casou com um comerciante, virou dona-de-casa e teve três filhos, que lhe deram seis netos. Ele também se casou, possui dois filhos e dois netos, e trabalhou por três décadas num grande banco estatal que lhe pagava o suficiente. 


Voltaram a viver juntos durante a pandemia, cuidando-se mutuamente, das caminhadas matinais aos remédios de cada um. E passam horas ouvindo as batidas de um velho relógio na parede da sala-de-estar, ambos com as retinas ressequidas de tantas telas. Não mais se debatem contra fatos e feitos. Quando o futuro vira passado, de nada serve o que podia ter acontecido.

 

Ontem, vendo o pôr-do-sol à beira-mar, Maneco comentou que gostaria de reencontrar sua mãe, a avisá-lo de novo: “Tá na hora de lavar os pés, beber água e dormir”. Do seu lado, Jacira fez o sinal da cruz e ressalvou: “Sem pressa, meu irmão!”.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Pedacinho do céu


Como é curiosa e tragicômica nossa pátria de contradições, onde o futuro é tão incerto quanto a próxima nota de um chorinho que se repete, ano após ano, como se estivéssemos presos num ciclo sem fim. 

Há três semanas o Brasil respira ofegante, tenso, acompanhando os dias de horror e os desdobramentos da maior tragédia climática de sua história.

A devastação que atingiu centenas de municípios do Rio Grande do Sul (que poderia ter ocorrido no Rio, em São Paulo ou Alagoas) expôs o melhor e o pior de nós. De um lado, a generosidade de voluntários, vindo de todas as partes, empenhados em salvar vidas e ajudar aos desabrigados. De outro, a crueldade de marginais que invadiram casas, lojas e fazendas para saquear o que restava, e de predadores que, em meio ao caos, cometeram atrocidades até contra crianças. 




Fragilizada como uma teia de aranha numa tempestade tropical, a nação oscila ao sabor da popularidade passageira e dos interesses pessoais de meia dúzia de figuras. A cada quatro anos, escolhemos um novo “salvador”, nos planos estadual e federal, convictos de que "desta vez vai ser diferente", esperançosos e iludidos como quem troca de canal buscando algo melhor nos reality shows.

 

Já passou da hora de intensificar a educação cívica de nossa gente. Nas escolas e nas mídias sociais, é inadiável que surjam programas e campanhas focadas na importância da responsabilidade cidadã, do voto consciente, desvinculados de figuras messiânicas. Como fazer isso sem puxar a brasa pro nosso bife? Não sei, mas tem quem saiba entre nós.

 

Toleramos, segundo o IBGE, o desperdício de um terço dos alimentos aqui produzidos com a resignação de quem leva uma torta na cara e ainda aplaude. É emergente discutir políticas públicas e iniciativas privadas que otimizem a logística de distribuição, eduquem sobre o aproveitamento integral e o combate ao esbanjamento. Como fazer? Tem quem saiba, juro!

 

Enquanto com uma mão jogamos algumas moedas aos mendigos, com a outra entregamos o ouro aos senhores vorazes dos orçamentos públicos. E o “castelo” nunca fica do lado dos vulneráveis. “Eu quero que pobre se exploda”, diria o deputado Justo Veríssimo, personagem antológico de Chico Anysio.

 

E a fama de que somos um povo trabalhador? Ultimamente, o que mais existe são artesãos do ofício de não fazer nada ou de adiar para o dia seguinte. Boa parte condena os espertalhões e ao mesmo tempo deseja calçar seus sapatos, tirando uma lasquinha do banquete financiado pelo suor alheio. Quer coisa mais contraditória em nossa pátria amada? 

 

Vivemos numa democracia virtual. Um lugar onde todos têm direitos, mas responsabilidades são ignoradas, parecendo um asilo ou um circo decadente. O infame “jeitinho”, nossa suposta malandragem, nos afunda cada vez mais enquanto nos gabamos como se ainda fôssemos respeitados pelas conquistas de Pelé e Ayrton Senna, únicos heróis nacionais indiscutíveis. 

 

O gigante adormecido ainda ronca alto no berço esplêndido do país do futuro. Talvez um dia acorde, e os bons finalmente tomem as rédeas, aproveitando nossa abundância natural, em vez de reduzi-la a apenas mais uma nota triste do chorinho que se repete.

 

Mas tenha cuidado: se sábado você resolver almoçar uma feijoada e for pego numa blitz após tomar dois goles de caipirinha, prepare-se para uma multa salgada de quase R$ 3 mil e a perda da carteira de motorista. Se optar por drogas mais pesadas, talvez nem lhe incomodem.

 

Porém se você tem menos de 18 anos, pode até cometer crimes como atropelar, roubar, assaltar, estuprar e matar, sem muitas consequências, pelo menos se as redes sociais não derem visibilidade ao caso. Mesmo se estiver pilotando um Porsche, em velocidade superior três vezes à permitida na via.

 

E se possui uma arma em casa (eu não tenho, vou logo avisando!), mesmo que seja um estilingue ou um canivete, e acertar as nádegas do sujeito que invadiu o seu quintal para fazer sabe-se lá o quê, você vai responder por tentativa de homicídio e pagará indenização à vítima por danos físicos e morais.

 

Mas preste atenção: se o invasor for menor de idade, só Jesus na causa! E se estiver desarmado, você estará perdido! Vai ser acusado de tentativa de homicídio doloso e qualificado, por motivo indecoroso, infame ou torpe. 

 

Portanto, tome nota: antes de reagir (argumentando “tolices” como a defesa de filhas e netas), pergunte educadamente o que ele deseja, se está armado e se por acaso possui cédula de identidade, título de eleitor ou passaporte provando que já fez 18 anos. 

 

Mas veja bem: antes de sair por aí repetindo que cada povo continua experimentando do inferno que merece, faça a sua parte: berre até ficar rouco cobrando políticas de segurança pública que integrem ações sociais, como programas de educação e profissionalização para jovens em risco, além de reformas no sistema de justiça que busquem a reintegração, em vez de apenas punição (sobretudo para pobre, preto e puta).

 

Se, mesmo assim, você acha que estou exagerando e que “desta vez vai ser diferente”, quem sou eu para duvidar? Quem sabe o chorinho monótono que ecoa por aqui ganha novas notas e vira um "Pedacinho do céu". Sem tantas contradições, por favor!

quarta-feira, 15 de maio de 2024

O bicho pegou

O site americano Vox andou ensinando aos seus leitores como pronunciar uma nova palavra: "den-gay", diz o texto. Sim, finalmente os gringos descobriram como se fala “dengue”. Nós, brasileiros, que temos uma relação estreita com essa palavrinha desde cedo, mal podemos conter nosso entusiasmo com essa descoberta.

 

Ilustração: Ivan Cabral

A dengue resolveu que não era mais suficiente ser apenas uma visitante ocasional em terras brasileiras e decidiu quebrar recordes dignos de entrar para o Guinness, com dois milhões de casos confirmados até o mês passado, segundo nosso vigilante Ministério da Saúde. Pelo visto, o Aedes aegypti decidiu fazer hora extra este ano. Desconfio, inclusive, de que já trabalhe com coach e influencers próprios, após ter diversificado sua atuação, da chikungunya à zika. 

 

Se deixou de ser notícia palpitante por aqui, agora é assunto nos jornais estrangeiros. O Washington Post fez questão de destacar que estamos cara a cara com uma crise de saúde pública sem precedentes. E o ousado Aedes (dispenso o sobrenome, pois já estamos bastante íntimos) resolveu inovar, chegando a lugares onde nunca havia marcado presença, mesmo sem passaporte, “visto” de entrada nem cartão de vacinação. 


Ilustração: Ivan Cabral

Com o caos climático instalado
 pelo aquecimento global jogando no time da epidemia, o mosquito também virou imigrante indesejado em várias partes do mundo – ele não possui documentos, mas tem asas –, incluindo a pitoresca região sul da Europa e até o Sul dos Estados Unidos.

 

O bicho, que tem um parentesco com nossa velha muriçoca (pernilongo), tornou-se um verdadeiro satanás, bem diferente dos tempos em que um repelente espiral verde em um suporte de alumínio, um mosquiteiro ou um spray de Detefon resolviam a parada. 

 

Aliás, criado para dizimar essa e outras pragas do Egito, aquele spray combatia até “malária, febre amarela e tifo”, segundo uma campanha publicitária veiculada em 1953, em O Cruzeiro, revista semanal que circulou entre nós durante anos. 

 

Com slogans do tipo “terrível contra os insetos”, “defenda sua casa” e compromisso de “proteção prolongada”, Detefon prometia exterminar ratos, baratas, moscas, mosquitos e formigas. Pena que uma substância integrante de sua fórmula foi banida em vários países nos anos 1970, por contaminar alimentos e intoxicar outros seres vivos. 

 

Meu saudoso tio e padrinho Enoch, a quem visitei nos anos 1980, no Maranhão, certo dia, me vendo na sala batendo palmas acima da cabeça, esmagando as primeiras muriçocas ao entardecer, se aproximou olhando pros lados e cochichou:

– Não conte ainda pra ninguém... Acabo de descobrir um método não venenoso pra acabar com os mosquitos. Você sabe o que é tabaco?

– Será o que tô pensando, tio?

– Bem, seu safado, não quero saber o que você tá pensando. Tô falando do pó-de-rapé, torrado...

– Isso mesmo, tio! Né aquele que os velhos cheiram pra espirrar? Eles dizem que é bom pra enxaqueca, sinusite...

 

E saiu uma "conferência" sobre receitas amazônicas que apresentavam em seu composto, além de fumo, ervas como casca da copaíba, canela-de-velho, cumaru-de-cheiro, pau-pereira, entre outras. Alguns índios até hoje acreditam que, aspirando o pó, absorvem a energia dos espíritos que acompanham o pajé de sua tribo e os espíritos que habitam a floresta. 

 

Atiçada a minha curiosidade, ele prosseguiu: 

– Vai precisar de alguns seixos, aquelas pedras arredondadas de beira de rio.

– Só serve desse tipo?

– Se não achar, quebre em pedacinhos um bloco de calçamento de rua e me traga aqui.

 

Antes do anoitecer, voltei. Tio Enoch então, de forma bastante didática e paciente, me explicou que as pedrinhas deveriam ser distribuídas pelos cômodos da casa, após colocar uma pitada de pó sobre cada uma delas. 


 

Segundo ele, quando as muriçocas vissem a novidade, não resistiriam à tentação e dariam umas cafungadas, buscando uma overdose de espirros. Com o porre, bateriam a cabeça nos seixos e cairiam duras, vítimas de traumatismo craniano, sem chance sequer de tentar fraudar eventual exame antidoping.


Mesmo com cara de besta, caí na gargalhada e quase digo aquilo que vocês estão imaginando, mas faltou coragem. Havia muito carinho e respeito entre nós. Optei então por disseminar a “receita” entre amigos e até hoje ainda encontro quem perca alguns minutos prestando atenção no que relato, oralmente ou por escrito. 

 

Agora que finalmente os gringos descobriram como se pronuncia “dengue”, me pego pensando sobre o que teria acontecido se a “receita” do tio Enoch circulasse no meio científico e o FDA, órgão governamental dos EUA que controla medicamentos e materiais biológicos, resolvesse acatar a estratégia como política oficial de combate à dengue. Talvez uma revolução na saúde pública mundial, digna de um Prêmio Nobel póstumo!

 

Ironia à parte, por conta do aquecimento global e de seu impacto devastador sobre as comunidades, pobres ou não, o cenário é alarmante. A dengue, ao cruzar fronteiras e bater à porta de novos lares, trazendo na bagagem dores no corpo, hemorragias e morte, reforça a emergência de se rediscutir a pauta ambiental, o abuso do planeta. Se houver tempo.

 

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Profetas de uma paixão

O escritor Graciliano Ramos, lá pelos idos de 1920, torcia o nariz para o futuro de uma paixão pela bola rolando de pé em pé. Preferia esportes hoje classificados como vintage, como a corrida a pé – útil inclusive para o ofício de roubar galinhas –, além de hobbies como o porrete e a pega de bois pelos chifres. Chegou a sugerir que se deveria elevar a rasteira ao status de esporte nacional, dada a nossa predisposição inata para a malícia e o drible na ética. 

 

Lima Barreto, outro escriba dos bons, também criticava a paixão pelo futebol, sob outro enfoque. Para ele, esse esporte seria um instrumento a mais de segregação racial. Se dentro das quatro linhas a coisa melhorou um pouco, de fora, os bárbaros continuam usando-o para vomitar sua bestialidade, como acontece de forma assombrosa em solo espanhol contra o jogador Vini Jr.

 

Mais que um jogo, para o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues o futebol era um retrato de nossa humanidade profunda, com suas grandezas e misérias. As circunstâncias, os acontecimentos e os resultados foram descritos em seus textos como uma ópera ou um folhetim teatral. “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”, escreveu.

 

Ilustração: Umor

Assistir a uma partida nos dias de hoje virou maratona de paciência e resignação, seja no estádio ou pela TV. O VAR (Árbitro Assistente de Video, na tradução para o nosso idioma), essa promessa de justiça infalível, trouxe mais pausas do que soluções, transformando os jogos em tediosas sessões de análise. A emoção genuína do esporte está sendo trocada por debates insossos sobre precisão tecnológica. 


O futebol, desse jeito, se assemelha às ciências exatas, com estatísticas e análises frias predominando sobre a magia do imponderável, do sobrenatural. Só falta acrescentar a famigerada margem de erro, para mais ou para menos. 

 

Quando o árbitro desenha no ar aquela tela imaginária, a pressão sanguínea dos torcedores beira o colapso. O pênalti se consolida como tema para mesa redonda, com direito a análise, quadro a quadro, sobre “movimentos antinaturais e ocupação de espaço”. Descobri, inclusive, que sou totalmente inapto para alguns movimentos naturais, a exemplo de torcer o braço atrás do corpo ou cair com as duas mãos na cintura. 

 

Mas a era do tédio no futebol também deve ser atribuída ao número reduzido de gols – não deveríamos ficar satisfeitos com placar abaixo de 3 a 3, isto é, um gol a cada 15 minutos. Assim como às pausas dramáticas, muitas vezes para que o árbitro possa promover uma verdadeira “discussão de relacionamento” com os assistentes de vídeo, mesmo em lances incontroversos até para os cegos. 

 

Para a escassez de gols, existem propostas a partir de mudanças bastante simples. Por exemplo, admitir que os arremessos laterais sejam executados com os pés. Alterar a regra dos escanteios (passariam a ser cobrados do ponto em que a linha de fundo intercepta a linha da grande área). E introduzir punições por faltas coletivas (após a quinta ocorrência, seria marcado tiro livre da meia lua da área do infrator, sem barreira). 

 

Como acabar com a insuportável “cera” nas partidas? Nada melhor que dois tempos de cronômetro de bola rolando, com intervalo de 10 minutos e com menos jogadores em campo (10 de cada lado, inclusive o goleiro), reduzindo aquela ciranda sem fim na zona intermediária. Outra melhoria no ritmo de jogo seria punir com tiro livre o retrocesso da bola ao campo de defesa após cruzar a linha do meio-campo, estimulando mais os ataques e contra-ataques.

 

Essas mudanças dariam novo gás ao futebol, inclusive por incentivar o surgimento de novas estratégias de jogo, sem exigir grandes investimentos em infraestrutura e tecnologia. 

 

Mas é difícil convencer certos mandachuvas de evidências. As alterações nas regras dependem de um órgão mais conservador que a Igreja Católica – o International Football Association Board. Mesmo vendo a molecada, inclusive meus netos, bocejando para o esporte e optando por fabricar o próprio encantamento no videogame.

 

Voltemos então a Graciliano Ramos. Foi premonitório ao antever que o futebol se tornaria um playground para apostas esportivas, transformando a maior paixão nacional em mero objeto de especulação financeira, mediada por plataformas digitais estrangeiras. 

 

Que bom que somos referenciais para o mundo em termos de leis e autoridades competentes para impedir o aliciamento de atletas e árbitros, evitando qualquer manipulação de resultados. A CBF e a CPI das apostas estão aí para garantir a retidão do negócio.

 

Caso contrário, teremos que engolir a profecia do velho Graça quanto à nossa inclinação para a astúcia e a malandragem como parte do futebol, assim como na vida em geral. 


Afinal, tem sido a arte de dar e sofrer caneladas em quem pensa diferente de nós que nos define como nação no abismo civilizatório em que caímos.



quarta-feira, 1 de maio de 2024

Perfume raro

Quem de nós, navegantes com mais de seis décadas de águas revoltas, não se lembra da melancólica canção-poema “Rosa de Hiroshima”? Com esta música, o lendário grupo musical “Secos e Molhados” tocou cicatrizes, visíveis e ocultas, de crianças que, inocentes aos dramas dos adultos, sobreviveram ao bombardeio atômico no Japão. 

 

Essas pequenas criaturas, transformadas pelos versos de Vinicius de Moraes em moleques calados e telepáticos, ou meninas cegas e desorientadas, trazem consigo o legado da radioatividade que se estenderá por gerações. E o poeta escolheu a flor para simbolizar o momento da explosão: uma imagem que evoca o trágico desabrochar de uma rosa. “Rosa com cirrose... Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”, ele pontuou. 

 

Sim, tudo isso é muito injusto. O câncer infantil, líder cruel nas estatísticas de mortalidade entre nossas crianças, como atesta o Instituto Nacional do Câncer (Inca), prevê o doloroso surgimento de cerca de 8 mil casos anuais até 2025, atingindo jovens de 0 a 19 anos de idade. Quem ousou dizer que a vida seria justa?

 

Se fosse justa, veríamos desabrochar mais “rozas” em nossos canteiros. Não se espantem com o “z” que emprego aqui. Não falo de uma rosa qualquer, muito menos da descolorida e sem perfume Rosa de Hiroshima, mas da Roza da Apala, uma mulher que, inconformada com esse fatalismo estatístico, resolveu provar que atos falam mais alto que palavras.

 

Fotografia: Álbum de família 

Roza, ou Rozenita Fernandes, uma maceioense que nasceu poucos meses antes daquele fatídico bombardeio, é antes de tudo esposa, mãe e avó extremada. 
Em 1994, ela deixa seu emprego como psicóloga no antigo Hospital do Açúcar e, como voluntária, se junta a um grupo de almas devotadas para enfrentar o câncer infantojuvenil, abraçando a causa da recém-criada Apala (Associação dos Pais e Amigos dos Leucêmicos de Alagoas) – uma organização sem fins lucrativos mantida por doações e voluntariado que, na época, funcionava numa casa alugada.  

 

Logo, a Apala daria mais do que uma simples assistência a crianças com leucemia. Torna-se um lar temporário na capital alagoana (onde os tratamentos são possíveis) a crianças e adolescentes portadores de todos os tipos de câncer. Oferece refeições, assistência social e psicológica, cuidados odontológicos, suporte para compra de medicamentos e transporte para hospitais. 

 

E Roza percebe que poderia contribuir ainda mais na estruturação da casa, buscando meios para mantê-la ativa e próspera. A partir de um projeto arquitetônico desenvolvido por sua nora, Nadja Fernandes, nasce a sede própria em terreno doado pela Prefeitura de Maceió, com recursos arrecadados junto a centenas de doadores (empresas e pessoas) sensíveis à causa. 

 

A Apala se torna uma das melhores casas de apoio no país, atraindo a atenção de entidades como o Instituto Ronald McDonald’s e a Construtora V2, o que acelera vários projetos, inclusive o mais ambicioso deles: a criação do Ambulatório de Oncologia Pediátrica do Hospital Veredas (que sucedeu o Hospital do Açúcar), pertinho da instituição.

 

Foi assim que, sob o olhar determinado de Roza e sua equipe, a Apala enraizou-se, ganhou corpo e floresceu, tornando-se símbolo de compaixão e perseverança, voltado ao bem-estar de mais de 400 pessoas. Parecia ecoar pelos corredores “Os cegos do castelo”, de Nando Reis: “Eu vou cuidar, eu cuidarei muito bem dele, eu vou cuidar... Ah! Eu cuidarei do seu jantar, do céu e do mar, e de você e de mim...”

 

Roza viu de tudo, até crianças sendo abandonadas à própria sorte por suas famílias. Lidar com uma criaturinha dessas gravemente enferma é defrontar-se, no mínimo, com duas perdas profundas: a da criança e a da própria esperança. É a ruptura da idealização da infância e do futuro que nunca chegará. Encontrar-se com o fim da vida de uma delas é, em parte, encarar a própria morte. 

 

Um dia, ela sentiu o peso do estresse emocional e físico, sobretudo das relações interpessoais complicadas no submundo corporativo, e resolveu voltar pra casa. Tinha consciência de que doara o seu melhor, sabia do tamanho da árvore que ajudara a plantar durante três décadas, de sua infatigável jardinagem e dos frutos colhidos. 

 

Roza havia descoberto por experiência própria que as ações são mais eloquentes do que as palavras. Sim, precisou de amor para pulsar, de paz para sorrir e de chuva para florir, lições colhidas de uma antiga canção que ecoa ao fundo de sua vida e lhe ajuda a tocá-la em frente. 


E agora o seu universo orbita mais suave ao redor de pessoas éticas, divertidas e inteligentes, como seu marido Roberto; seus filhos Hermann, Roberta e Renata; e suas netas Júlia, Luísa e Lívia, pilares de sua felicidade e fontes de alegria e renovação. Fez (e faz) por merecer.

 

Cartola estava certo quando compôs “As rosas não falam”. Tanto é que não me espanto com outra com tanta beleza, a Roza da Apala, que mesmo calada, apenas sorrindo, exala um perfume raro: a essência do bem.