Nos primeiros meses de mandato, o síndico foi logo alertando que uma das vagas que teria que preencher, na garagem do suntuoso prédio da Corte Suprema, está reservada a alguém “terrivelmente evangélico” (seja lá o que isso queira dizer!). E arrematou, para deleite de uma claque de bajuladores: “A caneta Bic é minha, mando porque posso e vai obedecer quem tiver juízo”.
Um dos candidatos à vaga é tido como alguém de notável saber jurídico, apolítico, incorruptível, inflexível, além de assustadoramente cristão. Tem, por isso mesmo, expectativas em relação ao topo da hierarquia do Poder Judiciário.
"Duvido que não tenha ponto fraco. Todo homem tem seu preço! Ninguém é santo..." – comentaria Armando Rollo com um amigo, por coincidência assessor daquele candidato, tal era o conceito que tinha dos seres humanos em geral e das autoridades, em particular.
"Sei não... Se tem, só Deus sabe! O homem não bebe nem guaraná, não fuma, não fala palavrão, não cobiça a mulher do próximo e todo domingo vai à igreja" – ponderou o amigo, tentando demovê-lo de alguma iniciativa pouco republicana.
Para Rollo, lobista com pós-doutorado em falcatruas em todas as esferas da República, não havia nenhum tipo de safadeza que não fosse de seu domínio nos tortuosos labirintos que levam à criação de leis e normas, à sonegação fiscal, à fraude em processos licitatórios e até à majoração descabida de preços na execução de serviços públicos contratados.
Até que um dia a polícia esmiuçou uma denúncia extraída da delação premiada de um famoso doleiro. Foi só puxar o fio de um pequeno folículo que deixara a cabecinha de fora e pulou uma esvoaçante peruca de vigarices, capaz de provocar cólicas e calafrios em meio mundo de parlamentares, além de abalar os alicerces enferrujados da elite empresarial.
Como era de se esperar, o lobista acabou envolvido da cabeça aos pés pelo manto de um inquérito que oferecia aos açoites da lei o couro de suas costas, com perspectivas de uma quarentena interminável na Papuda, caso fosse condenado pelas estripulias que praticara até então.
E o processo caiu justamente nas mãos daquele ministro de reputação inatacável. Rollo, então, decidiu procurar o amigo (o tal assessor do ministro), com quem puxou conversa entre um chope e outro num fim de tarde no Pontão do Lago Sul:
– E aí, como vai o novo chefe?
– Muito bem! Gente boa, humilde que só ele. Tá sabendo? O cara coleciona canetas esferográficas dessas bem simples...
– Sério?
– Pois é. Desde os tempos de menor aprendiz de bancário.
Rollo duvidou. Se fossem canetas Bentley, Montblanc, Visconti, faria sentido. Mas com seus olhos de carcará, enxergou longe quando ouviu que o ministro, entre um processo e outro, espairecia com suas esferográficas, alinhando-as milimetricamente sobre a mesa, como Jack Nicholson fazia com os frascos de seu banheiro no filme As Good as It Gets (no Brasil, intitulado Melhor É Impossível).
O lobista então recorreu à internet para levantar tudo o que fosse possível acerca de canetas esferográficas simples – da fabricação, passando pelos diversos tipos existentes, até a origem de marcas nacionais e estrangeiras. Descobriu que havia no país vários colecionadores. Um deles, por sinal, ex-executivo de um banco público, orgulhava-se de sua coleção, objeto até de reportagem do Correio Braziliense.
Ao identificar no Facebook e no Mercado Livre alguns especialistas no assunto, sinalizou que compraria peças de qualquer marca, qualidade ou procedência, e que pagaria bem. Em duas semanas, já dispunha de uma razoável coleção de esferográficas, de fazer inveja aos maiores simpatizantes da causa.
Preparado para o ataque, Rollo põe sua coleção numa pasta e parte para uma audiência – que solicitara através de uma onça felpuda do Congresso Nacional que lhe devia favores – junto ao quase inacessível ministro:
– Bom dia! Vossa Excelência... Eu queria falar sobre um processo envolvendo meu nome... Fazer algumas ponderações...
O ministro, mal se dignando a ouvi-lo e muito menos a encará-lo, não pestaneja, sendo curto, duro e seco:
– O senhor deve recorrer aos autos na forma da lei.
– É que tem no processo alguns aspectos intangíveis que eu gostaria...
– Só decido sobre as peças e provas nos autos.
– Sim, sim, mas gostaria que Vossa Excelência, se possível, considerasse a possibilidade de arquivamento...
Enquanto isso, os dedos mexem na tranca da pasta executiva sobre os joelhos. Em disfarçado movimento, faz dezenas de esferográficas rolarem pelo chão.
– O que é isso!? – levanta-se o ministro.
– Me desculpe! É uma coleção de canetas que herdei de uma tia querida que me criou lá em Taguatinga. Tô até pensando em doar para uma escola pública ou um orfanato. Só servem mesmo para crianças pobres...
– Crianças pobres!? – A esta altura, o ministro já está de quatro, com os últimos fios de cabelo assanhados e catando canetas até debaixo da mesa, a conferir uma a uma. E anima-se:
– São esferográficas lindas e raras! Veja estas três, dos anos 70, com os símbolos de Harvard, Oxford e Cambridge.
Também de quatro, Rollo não tem pressa:
– Se Vossa Excelência gosta, pode ficar com elas.
E acrescenta, como quem não quer nada, oferecendo a pasta com as canetas já recolhidas:
– Quer dizer que Vossa Excelência entende que o processo pode ser arquivado?
– Sem dúvida... Mas tudo na forma da lei.
De tardezinha, o ministro determina o arquivamento do caso, com uma Bic escrita fina. Na forma da lei, claro!