quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Tiro por mim… Muda tudo!

Já se foi o tempo em que, de tardezinha, mesmo nos bairros mais nobres das grandes cidades, era costume as vizinhas se darem boa noite, levarem cadeiras de balanço para as calçadas e baterem com gosto a língua nos dentes, retirando as aranhas da garganta, a falarem de tudo e de todos enquanto aguardavam a janta. 

Vivemos em casulos domésticos desde antes da pandemia, o que tem nos isolado cada vez mais. Grades ou telas nas janelas não conseguem mitigar o tédio de almas carentes de calçadas e quintais, engolidas pelo uso desmedido de celulares e pela programação da TV divulgando da forma mais cruel a barbárie da hora. 

Tiro por mim, aqui debruçado sobre uma triste constatação no fechamento do balanço de meus atos e omissões durante o ano. Moro há tempos em prédios residenciais e, afora os cumprimentos inevitáveis e protocolares no elevador ou na garagem, não me recordo de haver trocado três palavras com vizinhos sobre algo de fato relevante, capaz de propiciar retorno reflexivo mútuo.  

 

Ilustração: Umor 

Nunca contei a meus vizinhos, por exemplo, de minha hipertensão arterial ou do déficit pulmonar crônico de que cuido com extremo zelo e custo para retardar ao máximo a aventura de uma internação hospitalar. Mas também nada sei (nem procurei saber!) da possível agonia deles com aluguel em atraso, disfunção erétil, frustração profissional, ingratidão de filhos, menstruação atrasada, queda de cabelo, risco de desemprego ou suspeita de chifre. É a indiferença recíproca escorrendo pelas frestas das portas.

 

Quando morei pela primeira vez na Bahia, no começo dos anos 90, certa noite ouvi gritos que vinham do hall de elevadores. Uma moça aflita, na casa dos 25 anos, estapeava a porta de meu apartamento, a pedir por tudo que a abrisse. Tinha hematomas em um dos olhos e sangue nos lábios, machucados. Acabara de ser espancada por um sujeito que escapuliu correndo pela escada de incêndio sem dizer uma só palavra.

 

Fiz o que pude para aliviar as dores da visitante e de um filho de três ou quatro anos que a tudo assistia, perplexo, sem derramar uma lágrima sequer até cair no sono. Ela não quis, de jeito nenhum, prestar queixa na delegacia, apreensiva com as consequências para o agressor. Ainda não se falava em Lei Maria da Penha para tratar casos de violência doméstica, mas já era bastante difundida a terapia aplicada por outros presos aos que se faziam de valentes com mulheres e crianças indefesas. 

 

Uma semana depois, encontrei o casal na recepção do prédio. Aparentemente, ficaram constrangidos quando me viram. Estavam de mãos dadas, trocando arrulhos e olhares. Soube mais tarde que o marido ficara inconformado, naquela noite, com a proposta recebida de sua mulher, que se dizia apaixonada por uma amiga querida e pretendia partir, levando consigo a criança, mesmo abrindo mão de direitos sobre os bens do casal. Não sei o rumo que o caso tomou.  

 

Dez anos adiante, já morando em Brasília, uma colega de trabalho, que também chegara do Nordeste trazendo na bagagem hábitos atávicos como compartilhar com vizinhos iguarias feitas em casa (canjica, pamonha, fatias douradas ou rabanadas etc.), estranhou bastante algo que lhe aconteceu. 


Em sinal de predisposição à boa vizinhança, ela quis aproximar-se de sua vizinha de andar oferecendo metade de um bolo cremoso de milho verde com coco ralado que havia preparado. 

 

Decepcionou-se. No dia seguinte, viu o embrulho que havia oferecido atirado na lixeira do subsolo. A vizinha, desacostumada com esse tipo de mimo, provavelmente temeu envenenamento ou coisa parecida e o descartou. Ainda bem que restaram dois dedos de lucidez: não cometeu a insanidade de doar o pacote à faxineira, se desconfiava de seu conteúdo. Também não sei do desenrolar dessa história.

 

Mas nem tudo está perdido. Em Alagoas, sei de uma viúva que, aos 83 anos, morando sozinha por opção (apesar de matriarca de uma prole de nove filhos, 23 netos e 24 bisnetos), nunca se acostumou a cozinhar exclusivamente para si própria. Quase todo dia minha mãe compartilha seu almoço com os empregados do prédio onde reside, recebendo em troca cuidado e gratidão. 

  

Tudo bem, a exceção não conta! O mundo precisa – a partir de mim, reconheço – de mais gente aprendendo a lidar com o vizinho de porta, de prédio, de rua. Mesmo nesta época do ano, onde paramos para refletir sobre o que se fez ou deixou para depois, passamos uns pelos outros com o desdém de nossos silêncios, de nossa cara incrustada de convicções inabaláveis.


 

Penso que a meta fatal de alguns deprimidos – não é o meu caso, que fique bem claro!  somente é atingida porque falta um vizinho na hora mais solitária que pare por dez segundos, olhe bem dentro de seus olhos e lhe deseje, genuinamente, um ano novo feliz. Muda tudo!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Não se abandonam os amigos

Na fábula Os viajantes e o urso, de Esopo, dois amigos topam na floresta com o bichão peludo e bravo. O primeiro se salva escalando às pressas uma árvore, mas o outro, sabendo que não conseguiria enfrentar o animal que se aproxima, joga-se no chão e finge estar morto. A fera começa a farejar suas orelhas frias de pavor, porém, convencida de que a presa estava morta, perde o interesse e vai-se embora. O amigo então desce da árvore e pergunta:

– O que o urso tanto cochichava em seu ouvido?

– Ora, ele só me alertava para pensar duas vezes antes de sair por aí com gente que abandona os amigos na hora do perigo.

 


Esopo foi um contador de histórias populares que viveu entre os séculos VII a.C. e VI a.C. na Grécia Antiga. Tornou-se famoso com narrativas que ganharam o mundo pela tradição oral, como “A Lebre e a Tartaruga” ou “A Raposa e as Uvas”. Suas fábulas, utilizadas na educação infantil de várias gerações, são protagonizadas por animais que assumem comportamentos humanos. São alegorias: através delas, pretende-se refletir e repensar condutas. 

 

Com a chegada do Natal e com tanta gente já vacinada, é época de reencontros entre familiares e amigos. Época fértil, inclusive, em hipocrisia. Muitos se dizem amigos, mas desconheço termo mais banalizado ultimamente que esse. Só mesmo Roberto Carlos achou que poderia ter um milhão de amigos, e isso em meados dos anos 70, bem antes do surgimento de redes sociais. Exagero, claro, até para quem é tido como rei.

 

Nunca tive muitos amigos. Não me resta sequer um colega de infância, em parte por conta das mudanças que fiz, acompanhando meu pai em suas atividades profissionais. Da adolescência, ainda revejo dois ou três, se tanto, mas sem a sintonia nem a frequência de antes.   

 

Depois de adulto, não mudou muita coisa. A sina de cigano seguiu adiante, agora por causa de meus próprios afazeres. E mesmo tendo morado em cinco cidades, conhecido centenas de pessoas, todos os amigos que fiz na vida cabem dentro de meu velho jipe. 

 

Millôr Fernandes alertava que “a verdadeira amizade é aquela que nos permite falar, ao amigo, de todos os seus defeitos e de todas as nossas qualidades”. Certamente porque, para ele, os “amigos poderão não saber muitas coisas, mas sabem sempre o que fariam no nosso lugar”. 

 

Dizem que nossas desgraças são bem mais suportáveis que os comentários que os amigos fazem sobre elas. Desconfio, por isso mesmo, de que a amizade com os companheiros de viagem de meu velho jipe não resistiria se eu soubesse do que falam a meu respeito nas minhas costas. Só me resta fingir ser meio cego, meio surdo e meio mudo. Eles também, claro.

 

Nietzsche, filósofo que abusava de ironias ao criticar a religião, a moral e a cultura de seu tempo, afirmava que “as mulheres podem tornar-se facilmente amigas de um homem; mas, para manter essa relação, é indispensável o concurso de uma pequena antipatia física”. Tendo a discordar, mas sem muita convicção, confesso.

 

Não sou tão irônico quanto o Marquês de Maricá, para quem “a amizade mais perfeita e mais durável é somente aquela que contraímos com o nosso interesse”. Ou o Barão de Montesquieu, que dizia: “A amizade é um contrato segundo o qual nos comprometemos a prestar pequenos favores a alguém a fim de ele nos prestar grandes”. Ou ainda Nelson Rodrigues, que anotou: “Só o inimigo não trai nunca. O inimigo vai cuspir na cova da gente". Mais uma vez, tendo a discordar dos pensadores, porém sem muita convicção. 

 

Tinha certeza, isto sim, de que Vinicius de Moraes – aos poetas, tudo é permitido! – exagerou ao dramatizar o assunto: “Que morram todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem os meus amigos, pois não há nada mais precioso do que uma amizade verdadeira”. Mais tarde, ele deixou claro a que se referia: “O uísque é o melhor amigo do homem, é um cachorro engarrafado!”  

 

Sobre Vinicius, aliás, ouvi do próprio Toquinho  seu companheiro de viagem por mais de uma década , numa daquelas confraternizações corporativas que acontecem no mês de dezembro, que o Poetinha, eufórico após uma apresentação na Patagônia argentina, certo dia o acordou às cinco da manhã, perplexo com a beleza dos primeiros raios de sol sobre as montanhas geladas de Bariloche:

– A vida é muito contraditória! 

– Vamos dormir, pô! Do que você tá falando? 

– Veja: como isso é possível? Tanto gelo... E tão pouco uísque! 


Garrafas à parte, neste Natal, sob a teimosa ameaça da peste que nos afasta ainda mais dos companheiros de viagem que restam, bateu uma tristeza danada ao lembrar de alguns que partiram de repente. Eles não aprenderam, quando crianças, que não se abandonam os amigos na hora do perigo.

 


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Experimente... Se puder, claro!

Soube outro dia que a jornalista norte-americana Pamela Paul, 50 anos, editora da seção de livros do The New York Times, acaba de publicar um ensaio intitulado 100 things we’ve lost to the internet, com reflexões acerca de objetos e sentimentos que se perderam com a chegada da rede mundial de computadores a partir de 1991.  

 

Parece uma dessas obras melancólicas sobre um mundo que não existe mais e que não voltará. Mas a autora garante que o livro não foi escrito apenas para lamentar o que desapareceu. Ela se diz nostálgica, sentimental e pessimista, mas tem consciência de que alguns desses desdobramentos foram bons. “O que teríamos feito durante o confinamento sem a internet?”, pergunta.

 

Diz também que a tecnologia – que nos roubou ou limitou coisas que eram boas – não é algo natural, nem inevitável. Para ela, somos enganados, o tempo todo, por uma falsa mensagem da indústria segundo a qual quando não adotamos certa novidade tecnológica o problema está conosco, e não com o produto em si. 

 

Ilustração: extraída do Facebook 

E questiona, de forma implacável: “Será que a internet foi criada para tornar o mundo melhor? Não. Temos a ingenuidade de que a tecnologia existe para nos servir. Absolutamente não! Ela está aqui para nos vender coisas”. 

 

Deitado eternamente em rede esplêndida (de algodão, no caso!), no pleno usufruto de minha conexão planetária, lembro-me de como era complicado conseguir certas coisas antes da internet. Mas que fique bem claro para todos: já existia civilização e o mundo girava muito bem, obrigado! 

 

Antes dos serviços de streaming e downloads, se a gente quisesse curtir a banda Eagles executando o seu "hino" Hotel California, ou Tim Maia soltando o vozeirão com a inesquecível Você, tinha que telefonar para a emissora de rádio sugerindo a canção, depois esperar o programa inteiro para gravá-la, correndo o risco de uma inserção inoportuna de propaganda ou de vinheta. 

 

Como não havia Netflix, a vídeolocadora era o destino natural, nas manhãs de sábado, de cinéfilos desidratados pela ressaca da noite anterior. Alugavam  três ou quatro fitas para assistir no final de semana (com direito a pit stop para pipoca ou xixi, em ocasiões distintas, diga-se) para devolução apenas na segunda-feira, devidamente rebobinadas, sob risco de multa. 

 

Com meu salário rigorosamente ajustado às necessidades inadiáveis, e sem a bengala de Google ou Wikipedia, tive que resistir bravamente ao assédio de vendedores de enciclopédias, os quais me torturavam oferecendo as melhores fontes de pesquisa para trabalhos escolares de filhos. Um desses vendedores quebrou em múltiplos pedaços a minha resistência de forma inapelável: “a prestação não é nada para um pai como você... É menos que um maço de Hollywood ou uma Coca-Cola por dia”, argumentou.

 

Trabalhos escolares, aliás, que evoluíram de folhas manuscritas de papel almaço e passaram a ser elaborados na máquina de datilografia. Quem nunca resmungou ao cometer um erro e ter que usar corretivo ou reescrever tudo, às vezes espremido pelo tempo? Óbvio, nem se cogitava ainda o “copie e cole” que embrutece muitas cabeças de hoje.

 

E qualquer calendário de bolso ou de borracharia continha carga erótica de altíssima voltagem. Quando um moleque espalhava na turma do colégio que trouxera escondido do pai a nova Playboy para deleite coletivo no recreio, não havia um que não desse asas à imaginação, mesmo sem beber uma gota do famoso energético, que sequer existia. 

 

Quanto a outras revistas e jornais, confesso que o cheiro de tinta que exalava das páginas recém-impressas sobrevive intacto em minhas narinas como uma fragrância dos deuses. Sim, reconheço, a internet me roubou o direito a essa embriaguez ao tornar dispensáveis as bancas que passaram em minha vida e o meu coração se deixou levar.

 

Antes, com a chegada das férias, tinha-se que procurar uma agência de viagens – se sobrasse algum após a cobertura do saldo devedor do cheque especial –, pegar fila e pagar preços muitas vezes abusivos pelas passagens, e sem poder pesquisar junto à concorrência para não perder as últimas vagas disponíveis, segundo ameaçava a representante da agência.

 

Tinha-se, enfim, antes de tudo o que me vem à memória, o direito de ficar sozinho, de desaparecer por algumas horas sem vestígios do paradeiro. Nada de celular ou de aplicativos de busca pela internet. Bastava sair por aí vagando entre esquinas, calçadas e praças, em busca da quietude do nada. Ou ficar em casa, nu cintura acima, no balouçar indolente de uma rede, fingindo-se de mouco para o telefone fixo.

 

Sim, já existia civilização e o mundo girava muito bem, obrigado! Mas se você, hoje, acha possível negar a tecnologia (aquilo que, para a jornalista norte-americana, serve apenas para nos vender coisas!), experimente passar duas semanas longe da internet e do celular, sem alterações de frequência cardíaca e pressão arterial, sudorese, tremores, diarreia e outros sinais de abstinência. 


Se puder, claro! Depois me conte o resultado, por favor.






 

 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Palavras que (en)cantam

Sei de ouvir falar que, há muito tempo, o poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968) teria sentenciado que “Tu pisavas os astros distraída”, de Orestes Barbosa (1893 – 1966), era o verso mais bonito de nossa língua, numa visão bem mais ampla do que a própria MPB. 

 

Antes que os puristas (em literatura e em música) argumentem que existem diferenças entre a poesia e a letra de uma canção, digo que, para um simples curioso como eu, poetas e compositores fazem praticamente a mesma coisa. Isto é, pintam quadros com os mesmos pincéis e tintas, ainda que usem telas de material diferente.


Trovadores. Anônimo alemão (séc. XIV)

Sei de ouvir falar também que os antigos trovadores foram artistas da nobreza do período medieval. E a própria origem deles se conecta com a música, pois, como poetas-cantores, compunham poesias e melodias para se acompanharem ao alaúde (instrumento de cordas). 


Portanto, letra de música é poesia e poesia é letra de música. A depender da melodia, um poema pode virar uma bela canção, como fez o compositor Fagner ao musicar “Fanatismo”, soneto da poetisa portuguesa Florbela Espanca (“Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver…”). No álbum (“Traduzir-se”), de 1981, ele musicou ainda o poema de Ferreira Gullar que titulou a obra (“…Uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira…”).


O mesmo Fagner que, no início da carreira, viu-se envolvido num episódio meio nebuloso, no caso de “Canteiros” (“Quando penso em você, fecho os olhos de saudade...”), que possui estrofe “inspirada” no poema “Marcha”, de Cecília Meireles. Questões de autoria à parte, ali nasceu uma das canções mais populares da segunda metade do século passado.

 

Quanto à sentença proferida por Bandeira, porém, considero-a tão polêmica quanto escolher entre Cartola e Nelson Cavaquinho quem era o melhor dos dois. O primeiro triscou o céu quando confidenciou à sua musa: "... Queixo-me às rosas...Mas que bobagem, as rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti..." O segundo não ficou para trás quando fez chover metáforas na Mangueira: "Tire o teu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor...". 

 

É controverso também escolher entre Chico Buarque e Caetano Veloso. O primeiro foi poeticamente cirúrgico quando escreveu: “... Se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu...”, além de definir o mais brasileiro dos sentimentos de maneira esplêndida: "...Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto do filho que já morreu...". 

 

Já Caetano resplandeceu quando compôs “Luz do sol, que a folha traga e traduz em verde novo em folha, em graça, em vida, em força, em luz...” E já havia dito, no começo de sua jornada, do tamanho de sua alma ao confessar: “Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer... Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim”.  

 

Voltemos a Bandeira. Óbvio que apenas expôs seu ponto de vista. Ele conhecia a obra de outros contemporâneos geniais, como Caymmi, Lupicínio, Tom e Vinicius, mas optou pelo verso de “Chão de estrelas”. Lamenta-se apenas porque nos deixou em 1968, quando brotava uma safra de ótima cepa, como os já citados Cartola e Nelson, Chico e Caetano. 

 

Depois da partida do autor de "Vou-me embora pra Pasárgada", choveu bastante em nossa horta. Posso escalar um timaço, em ordem meramente alfabética: Alceu; Aldir, Belchior, Djavan e Erasmo; Fagner, Gil e Milton, Paulinho, Raul e Roberto. 

 

Escalo outro capaz de entrar em campo com a mesma pegada poética: Cazuza; Gonzaguinha, Luiz Melodia, Marisa e Oswaldo; Nando e os Renatos (Russo e Teixeira); Rita, Toquinho e Zeca Baleiro.

 

Imagina-se que, numa partida entre os dois timaços, os torcedores vibrariam na arquibancada, mas sem o menor risco de guerra entre eles. O jogo estaria menos para futebol e mais para frescobol, “o único esporte com espírito esportivo, sem disputa, vencidos ou vencedores”, como dizia o genial cartunista, dramaturgo, escritor e poeta Millôr Fernandes (1923 – 2012).

 

Os mais entusiasmados teriam nas mãos bandeiras estampando versos extraídos do fundo da alma desses artesãos de palavras que (en)cantam, como:

 

“... O passado é uma roupa que não nos serve mais...” (Belchior).

 

“... Cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz...” (Renato Teixeira).

 

“... Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos. E sonhos não envelhecem...” (Milton Nascimento).

 

“... É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...” (Renato Russo).

  

“... Porque metade de mim é o que grito, mas a outra metade é silêncio..." (Oswaldo Montenegro).

 

“Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais...” (Luiz Melodia).


"...Viver é todo o sacrifício feito em seu nome..." (Djavan).


 

“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...” (Paulinho da Viola).

 

“... Melhor é dar razão a quem perdoa, melhor é dar perdão a quem perdeu...” (Zeca Baleiro).

 

“... Enquanto estou viva e cheia de graça talvez ainda faça um monte de gente feliz...” (Rita Lee)

  

“... E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar... Sem pedir licença, muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar” (Toquinho).

 

A boa música – assim como a poesia – diz mais e em menor número de palavras do que qualquer prosa. E o jogo acaba sempre numa resenha poética entre amigos. Você, que me leu até aqui, por exemplo, que bandeira levaria para a arquibancada?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Os papa-figos e a nação do desassossego

Entre calçadas, escolas e quintais, vivi quase todas as traquinagens e safadezas de um curioso e impulsivo representante daquilo que o poeta paraibano Jessier Quirino chama de nação do desassossego.

Recuperei-me bem dos primeiros anos em que me botavam para dormir sob a ameaça de boi da cara preta ou de prisão num quartel, se não marchasse direito com minha cabeça de papel. A canoa quase virou, eu não sabia remar, mas ainda estou por aqui vendo meus netos crescerem.

 

Existe um malassombro, porém, que mexeu comigo e com toda uma geração de desobedientes: o papa-figo (contração de "papa fígados"), também chamado de “homem do saco” ou "velho do saco", que os mais letrados teimam em tratar como lenda do folclore brasileiro. Descobri mais tarde que a versão portuguesa "papa figos", uma ave, inspirou o rótulo de um belo vinho, bem mais palatável que o papa-figo tupiniquim.

 

Voltemos à suposta lenda do folclore brasileiro. Lenda coisa nenhuma! Lenda é boitatá, boto cor-de-rosa, caipora, curupira, lobisomem, mula-sem-cabeça, negrinho do pastoreio, saci pererê, essas coisas. O papa-figo, não. É concreto, assustador, dentro da cabeça de quem sobreviveu à sua fome. 

 

Para o antropólogo e historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), em sua obra Geografia dos Mitos Brasileiros (1947), “O papa-figo é como o lobisomem da cidade, que não muda de forma, sendo alto e magro... é um velho sujo, vestido de farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou vendê-lo aos leprosos ricos...”

 

Ainda segundo Cascudo, “...em outras regiões é muito pálido, esquálido, com barba sempre por fazer. Sai à noite, às tardes ou ao crepúsculo. Aproveita as saídas das escolas, os jardins onde as amas se distraem com os namorados, os parques assombrados. Atrai as crianças com disfarces ou mostrando brinquedos, dando falsos recados ou prometendo levá-las para um local onde há muita coisa bonita...

 

Diziam que o papa-figo, após comer o fígado dessas criaturas indefesas, deixava ao lado dos corpos uma certa quantia para as despesas com o enterro dos restos mortais e para ajudar a família enlutada. Não seria de todo mau, portanto.

 

Mas existe quem garanta que toda essa conversa surgiu em meados do século XX devido a um surto da Doença de Chagas no Nordeste. Para enfrentar o flagelo sanitário, técnicos do governo federal teriam sido deslocados para as comunidades onde havia muitos enfermos. Como a punção do fígado era procedimento de rotina na necropsia dos mortos, aí começou o disse-me-disse.

 

Ilustração: Umor 

Olhe... Sei não, viu?! Pergunte a qualquer sobrevivente daquela época se esse cão dos infernos é real ou não. Duvido que negue e diga que se trata apenas de uma lenda que atormentava as cabecinhas fantasiosas da molecada desobediente aos pais e apressada em descobrir os cantos e encantos do mundo. 

 

Ultimamente, aliás, tenho visto muito papa-figo solto por aí, a degustar com azeite, orégano e sal o fígado de um rebanho inocente marcado a ferro e brasa para sofrer. Só mudou um pouco o jeitão de vestir-se e de camuflar intenções, ocultando fatos para proteger algum capataz ou mentindo ao lidar com um abominável gado novo que rumina no pasto. E sem deixar dinheiro para o enterro.

 

Tem papa-figo que tentou esconder-se no anonimato, operando como membro de um conselho paralelo à margem da pasta responsável pela saúde do rebanho de mais de 200 milhões de cabeças. Andou sugerindo inclusive minuta de decreto para que se mudasse a bula de remédios com ineficácia comprovada no tratamento de uma peste que ainda ameaça de extinção boa parte do plantel.

 

Outro fez de tudo para retardar o processo de compra de vacinas com visões conspiratórias e anticientíficas que comprometiam a imunização coletiva e a superação da peste. Pior, quis terceirizar a culpa pelo seu fracasso invocando o lugar-comum dos covardes: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. 

 

Teve ainda aquele que pressionava pela compra de um imunizante da Índia – onde a vaca é sagrada, mas o país é o maior exportador de carne vermelha do mundo –, via contrato com uma empresa “de fachada” que quase embolsa alguns milhões de dólares pagos antecipadamente. Se não fosse a intervenção de um vaqueiro assustado, para quem a decência ainda constitui valor a ser preservado entre os animais, teria gente rindo da gente até agora.

 

Houve até um papa-figo apeado de importante cargo executivo por corrupção e lavagem de dinheiro, esquema envolvendo a contratação de hospitais de campanha, compra de respiradores e medicamentos para estancar a peste que já dizimou nada menos que 615.000 cabeças.

 

O mundo praticamente acabou durante quase dois anos mas, aos poucos, os sobreviventes saem de cavernas para explorar novas possibilidades. E se frustram quando percebem que foi duro ter caminhado tanto em vão, que a engrenagem já sente a ferrugem. 

 

Com a chegada de novas eleições ano que vem, os papa-figos de sempre (e suas crias) já se movem à espreita de novos garrotes e novilhas, no desassossego de uma nação que marcha de chocalho para o brejo. Ou, quem sabe, para o matadouro.