Quase toda sexta-feira João Cardoso sentava na mesa de um bar qualquer e parecia incorporar o espírito de Vinícius de Moraes (1913 — 1980) ao garantir que quem já passou por essa vida e não viveu podia ser mais, mas sabia menos do que ele, porque a vida só se daria pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.
Ele nasceu na Zona da Mata de Alagoas em março de 1949. Viveu boa parte da vida fora de sua terra natal, até ser derrubado pelo câncer em 2007, aos 58 anos, em Santa Catarina. O poeta estava com a razão: tristeza não tem fim; felicidade, sim.
Conheci João Cardoso numa segunda-feira de fevereiro de 1977. Eu recomeçava a trabalhar no Banco do Brasil (agora como funcionário concursado) em São Miguel dos Campos, distante 60 km da capital alagoana.
Estive fora pouco mais de um ano (desde o Natal de 1975), após o período como menor estagiário. Aos 19 anos, casado, esposa grávida, retomava a carreira trazendo no bolso coragem, determinação e sonhos.
Fez questão de me receber como se fosse velho amigo. Apenas seis anos de carreira, mas já era supervisor do setor de operações e oferecia dicas importantes, atalhos fundamentais para minha aprendizagem, ainda que sufocado pelas tarefas do cargo que ocupava.
A conversa deslanchou quando ele quis saber:
— Qual é a primeira coisa que passa por sua cabeça se um amigo lhe pedir uma grana emprestada?
— Se vou receber, ou não, meu dinheiro de volta — respondi, já temendo o assédio de bancário apertado.
— Isso mesmo! Veja esta proposta... vamos calcular comigo a capacidade de pagamento desse fornecedor. Ele quer financiar um caminhão pra carregar cana pra usina na moagem da próxima safra. Leia o que diz a CIC Rural...
Duas horas depois, com o crédito aprovado pelo gerente, lá estava ele de volta a me orientar sobre como deveria preparar a cédula de crédito. Mostrou em seguida como fazer: a ficha gráfica onde seriam registrados os lançamentos contábeis, a ordem de pagamento para a vendedora do veículo e o dossiê organizado com todos os documentos da operação.
Claro, além dos cegos, até os surdos desconfiam quando a ajuda é grande. Fui direto ao ponto:
— Por que tanto interesse em ensinar no primeiro dia o que todo mundo leva semanas para aprender?
— Gratidão, só isso...
Estiquei a conversa para descobrir algo a mais até que me chamou para tomar um café.
Contou que sua família morava em União dos Palmares quando meu pai, Seu Agostinho, fora subgerente da agência do BB, nos idos de 1968. Enquanto eu ainda jogava bola e tomava banhos no Rio Mundaú, já concluía seus estudos no Colégio Agrícola de Satuba.
Um dia, o banco precisou selecionar na região um perito rural — não era obrigatório concurso público — cuja missão seria: avaliar garantias, estimar a produção de lavouras, o valor de rebanhos etc. Pré-requisitos básicos: ser maior de idade, ter capacidade técnica e boa redação.
Foi considerado o melhor entre seis ou sete candidatos. Aí não dava mais para continuar escondendo: não havia completado 18 anos, embora fosse o mais necessitado de todos os concorrentes. Chamado num canto de mesa pelo subgerente da agência, tomou uma bronca pela audácia mas ouviu a melhor sentença que poderia esperar:
— a partir de hoje você tem 18 anos de idade.
Grato pelo apoio quando mais precisou, não esquecera do episódio. Em pouco tempo seria aprovado no concurso público nacional e passava a integrar o quadro de funcionários de carreira do banco em Viçosa, a partir de agosto de 1971.
Nunca mais havia visto Seu Agostinho, que, transferido para Maceió, morreria em maio de 1972. Mas a vida lhe concedia agora a oportunidade de ser guru-orientador do filho dele nos passos iniciais de uma longa jornada.
João Cardoso e eu fizemos escolhas e trajetórias diferentes. A última vez que nos vimos foi em 2000, na abertura de uma jornada esportiva — era craque inclusive numa mesa de sinuca — em Ilhéus, Litoral Sul da Bahia, quando recordamos aquela semana que antecedeu o Carnaval de 1977.
Lembrei dele outro dia, com imenso carinho, ao rever uma caricatura e o soneto do Poetinha que termina assim:
"... Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com meu próprio engano
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica..."