quarta-feira, 29 de julho de 2020

Tom Zé e o jogo da mãe de Amaro

Chuviscava na tarde em que Tom Zé e seu amigo Catatau foram ao Maracanã assistir a Vasco e Bangu, na abertura do 2º turno do Campeonato Carioca de 1969. Mesmo com o aguaceiro, passaram antes na casa de Amaro, em Irajá, para apanhá-lo. 

Ao chegarem lá, a mãe de Amaro recebia algumas amigas, com quem praticava o jogo do copo, que lembra o Tabuleiro Ouija, criado pelo espiritualismo, um movimento que varreu a Europa no século 19 conhecido pela visão otimista sobre o futuro e a vida após a morte.  

Era novidade para Tom Zé e Catatau aquele círculo de pessoas em torno da mesa da sala de jantar, com um copo emborcado no centro e as letras do alfabeto dispostas ao redor. De olhos semicerrados, sob a luz de velas, as mulheres colocavam as mãos sobre o copo, que deslizava em direção às letras, formando palavras ou frases curtas. 

Ao ver que o filho Amaro amarrou os cadarços e dava os últimos retoques no topete antes de sair com os amigos — todos eles na casa dos 15 anos de idade , a mãe cuidou de “ouvir o espírito” sobre o programa da rapaziada. O copo, então, apontou quatro consoantes: C, G, R e V. 

Ninguém entendeu nada. Tom Zé, contudo, vascaíno crônico, deduziu que o “espírito” estaria profetizando a vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama. Ficou cismado porque aquelas mulheres não tinham a menor intimidade com o mundo do futebol

Os rapazes deveriam pegar o ônibus na avenida Brasil em direção ao centro da cidade, onde saltariam em frente à estação da Leopoldina e seguiriam a pé até o estádio. Com o chuvisco intermitente, optaram pela linha Irajá/Cascadura até Madureira e, de lá, foram de trem para a estação Derby Club, em frente ao Maracanã.

Chegaram cedo, no momento em que começava a segunda etapa da partida preliminar entre os times juvenis de Vasco e Bangu. Nem prestavam tanta atenção no desenrolar do jogo até que, de repente, na área banguense, um moleque espigado driblou dois defensores adversários e arrematou forte no canto do goleiro, fechando o placar em 3 a 0 para o Vasco.

No mesmo instante, Tom Zé sentiu um calafrio no espinhaço e achou que fosse febre, sintoma de resfriado. Mas logo depois desconfiaria de algo sobrenatural, por conta do jogo do copo da mãe de Amaro. Ficou quieto, entretanto. Não era chegado a superstições ou crendices populares. 

Além de futebol, Tom Zé gostava mesmo de música, cinema e leitura, sobretudo de Drummond, que deu voz a muita gente boa ao confessar: "Não digo que sou vascaíno doente, pois doente é quem não é vascaíno". Gente do naipe de Aldir Blanc, Camila Pitanga, Danuza Leão, Edu Lobo, Francis Hime, Gonzaguinha, João Ubaldo Ribeiro, Luís Melodia, Martinho da Vila, Pixinguinha, Sonia Braga e outros.

Vida que segue, naquele dia no Maracanã a partida principal acabou sendo desastrosa para o Vasco, que perdeu por 1x2, com o desempate no último minuto, através de um obscuro ponta-direita banguense, chamado Mário. E na volta para Irajá, os vascaínos tiveram que engolir a zoação de Catatau, que não perdoou nem mesmo a profecia furada do jogo do copo da mãe de Amaro.   

Para Tom Zé, no entanto, só depois de dois anos cairia a ficha sobre a premonição do "espírito". Em 24 de novembro de 1971, véspera de uma partida entre Vasco e Internacional, pelo Campeonato Brasileiro, um jornalista que trabalhava no Jornal dos Sports buscava inspiração para a manchete de capa. Ao saber que um juvenil de 17 anos, que tinha uma “bomba nos pés”, poderia sair jogando, arriscou: “Vasco escala o Garoto-dinamite”.

No dia seguinte, o novato justificaria a chamada promocional. O Vasco já vencia por 1 a 0 (gol de Buglê) quando ele entrou em campo, substituindo Gilson Nunes. Na primeira bola que recebeu, livrou-se do zagueiro gaúcho Pontes e, da entrada da grande área, acertou um chutaço na gaveta esquerda do goleiro Gainete, provocando nova manchete, agora em letras garrafais: “Garoto-dinamite explodiu!” 

Tom Zé — Antônio José Santos Fonseca, meu velho amigo Fonseca estava no Maracanã e viu de perto o alvorecer de uma lenda chamada Roberto Dinamite (clique e veja aqui), que marcaria ao longo da carreira 708 gols em 1.110 partidas. O primeiro deles, um golaço no jogo do copo da mãe de Amaro.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

O mutante

Ele mantinha uma conversa esfumaçada consigo mesmo toda sexta-feira à noite na esquina onde fica um boteco próximo de sua casa, na Gruta de Lourdes, em Maceió. Com um cigarro numa mão e um copo de cerveja na outra, tinha virado rotina, de hora em hora, o isolamento voluntário  para fazer uma “inalação reflexiva”, como dizia, longe dos demais frequentadores.

Enquanto isso, a mulher, cantora de uma dupla “voz e violão”, em tom resignado soltava o vozeirão na mesma toada de Alcione: “Sabe, meu menino, sem juízo, eu já aprendi a te aceitar assim” .

O boteco, como todos os bares e restaurantes da cidade, baixou as portas há mais de 100 dias.
  
Aos 61 anos, com 1,69 metro e 68 kg, se alimentava na base do trivial arroz, feijão e bife. Dormia feito criança, de sete a oito horas todo dia. Mas, além de sedentário, fumava e bebia desde os 13 anos. 

Tal como seus irmãos, nos anos 60 contraiu e escapou sem sequelas de todas as doenças típicas da criançada: gripe, catapora, tosse comprida, sarampo e papeira.

Quase aposentado – bancário e professor de Finanças –, amigos e familiares viviam a lhe cobrar mais assiduidade de consulta a médicos. O aperto era tanto que, mesmo a contragosto, chegou a fazer uma série de exames no final do ano passado.

Os resultados, felizmente, não surpreenderam ninguém. Apenas confirmaram o que já se imaginava: tudo absolutamente normal. Sua cunhada, médica, bem resumiu o quadro: "É caso a ser esmiuçado pela comunidade científica internacional”.

Tratava-se de um raro sessentão desinteressante para a indústria farmacêutica. Nada de diabetes ou problemas cardiovasculares e respiratórios. Nem enxaqueca, dores de barriga ou de dente. Tampouco unha encravada. 

Parecia mais um daqueles machos-jurubeba descritos nas crônicas de Xico Sá. Dos que respeitam o valor do dinheiro, mas nunca deu valor para ele. Até pouco tempo usava capanga, pente, espelho, palito e cuspia no chão. Garantia que “paraibano criado em Alagoas, nem vírus e bactérias chegam perto”.

Mesmo assim, andava preocupado com a chegada da pandemia. Por reconhecer que os idosos são mais vulneráveis, adotou o isolamento social, o trabalho em casa, além do uso de máscara nas raras vezes em que saía de casa para ir ao supermercado ou à padaria. Seu temor, na verdade, era mais com a saúde da esposa, portadora de doenças crônicas. 

Sua mulher, depois de breves contatos “mascarados” com uma vizinha, assustou-se ao não sentir o perfume usado após o banho, ainda que não apresentasse febre, cansaço ou tosse seca, indícios clássicos do mal do século 21.
– Meu Deus, eu não tô sentindo cheiro de nada...
– Calma, minha filha! 
– Acho que o miserável me pegou. Nem chegue perto de mim!
– Como?! Vou pra onde?!
Casados há mais de 40 anos – filhos distantes, cuidando de suas respectivas vidas –, o espanto era compreensível. 

Para completar o drama, minutos depois apareceu no quintal um escorpião, e o macho-jurubeba da casa partiu com tudo para pisotear o bicho, como já fizera noutras oportunidades. Mas a sandália derrapou e veio a picada no dedão do pé.

Era o tal do Tityus serrulatus, conhecido como escorpião-amarelo, espécie que causa acidentes graves na região, responsável por amplo registro de óbitos, principalmente em crianças. 

A primeira providência seria procurar socorro para neutralizar o veneno, mas não se sabia o que era pior: o risco dos efeitos da peçonha ou de contrair (ou transmitir) o novo coronavírus na emergência hospitalar. 

Por teleconsulta, um médico decidiu acompanhar à distância a evolução do caso, prescrevendo analgésicos para diminuir o tormento do acidentado. Em 24 horas, desapareceram a vermelhidão e as dores da picada, sem intercorrências.

Nessa altura, a esposa acabou testando positivo para covid-19 e teria que iniciar imediatamente o tratamento. Optou-se então por tratar também o marido, preventivamente, mesmo sem sintomas.

Sete dias depois, ao fazer o teste para saber se de fato o casal teve a infecção (no caso dele, assintomático) e se já estava imunizado com a presença dos chamados anticorpos IgG, deu o que já era esperado: o mutante estava livre da peste invisível que continua a atormentar a maioria dos mortais. A mulher dele, coitada, ainda não. Só mais adiante viria a boa notícia para ela.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) listou recentemente 23 vacinas que estão sendo avaliadas em ensaios clínicos com seres humanos. Um terço desses testes está sendo realizado na China. O país – onde surgiram os primeiros casos da doença –  quer ser o primeiro a oferecer uma vacina e não hesita em ampliar suas pesquisas. 

Não tenho dúvidas de que daqui a pouco uma delegação chinesa chegará a Maceió para contratar a peso de ouro o mutante do meu irmão –  que já voltou a beber sua cervejinha no terraço de casa, ao som de Alcione e Emílio Santiago – para acelerar os trabalhos. Certamente – nunca se sabe! – levarão também alguns escorpiões-amarelos.
  

Difícil será convencer essa mutação da espécie humana de que os tempos mudaram e de que terá que suportar mais de 20 horas dentro de um avião, a caminho da Ásia, sem a “inalação reflexiva” de um maço de cigarros.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Pecados veniais


Já pesquei, mas hoje não pesco mais e tenho meus motivos. Coisa de criança que, aos 10 anos de idade, do nada começou a ter pena dos carás, dos jundiás (bagres) e das piabas (lambaris, manjubas ou piaus) que fisgava no rio Mundaú, na Zona da Mata alagoana, porque em minutos morriam asfixiados com as guelras secas.

Não vi mais graça alguma em acordar bem cedinho para procurar minhocas no jardim e juntá-las numa lata vazia de leite em pó, armar-se de caniço, linha, chumbada e anzol, seguir com os colegas da rua para beira do rio e disputar com eles quem faria a maior fieira de peixes. 

Também nunca fui de caçar, apesar da origem cabocla. Quando menino, até me orgulhava da pontaria com uma peteca (chamada assim somente em Alagoas; noutros lugares, é estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque), a acertar calangos e lagartixas que tentavam fugir do predador nos monturos do Beco do Coité, em União dos Palmares. 

Desisti depois que matei por matar, numa poça d’água  no Beco do Coité, uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com inocente frequência ao chão em busca de comida. 

Testemunha da crueldade, Pitôta, empregada doméstica lá em casa, foi juíza e educadora ao mesmo tempo. Quase me sufoca de remorso ao dizer que “a bichinha lavava a roupa de Nosso Senhor”. Chorei feito gente grande. No mesmo dia, joguei fora duas gaiolas e o alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que haviam no caminho da Ilhota e da Terra Cavada.

Pecados veniais. Menino tem o coração do tamanho do mundo, mas às vezes é bicho desalmado, “nação do desassossego”, como diz o poeta Jessier Quirino.

Talvez por saber que passei boa parte de minha vida morando próximo a rio e mar, semana passada meu amigo Blóton me questionou por nunca escrever sobre pescarias, paixão de outros amigos meus como Eilton, Ligabue, Rorato e Zé Ângelo. 

Página virada em minha vida, devo reconhecer que pescar até voltaria a fazer sentido para mim depois que li “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway (1899 – 1961). 

O livro conta a história de um velho pescador com quase três meses sem fisgar nenhum peixe que resolve provar aos amigos que ainda é bom no ofício. Então se lança ao mar com pouca água para beber, quase nada para comer, aguenta firme o sol implacável, o vento noturno e a solidão dos desacreditados.

Conhecer de marés, mudanças climáticas, localização dos cardumes e do comportamento dos peixes dera a ele um passado de vitórias. No entanto, não lhe impediu de sofrer privações de toda ordem, a ponto de morar num casebre e dormir sobre uma cama de jornais velhos. 

Quando já perdia a esperança, o velho pescador consegue capturar o maior peixe que já havia visto na vida, com cerca de cinco metros de comprimento. Mas todo pescador sabe que fisgar é uma coisa, embarcar o animal é outra.

Foram dias e noites de luta, tentando vencer a força bruta e a resistência do peixe. Quase fica cego por conta da luz solar e sem o movimento de uma das mãos, cortada por conta do esforço feito para segurar o bicho pela linha. 

Depois de amarrá-lo ao barco, o velho é perseguido por tubarões até próximo da praia. Livra-se deles como pode, mesmo a todo instante correndo o risco de ser engolido vivo junto com a carcaça do peixão que havia capturado.

Chega em terra firme só o bagaço, esgotado, com fome, sede e sono. Ainda assim, aguarda medirem o que resta do esqueleto do peixe e então volta a ser admirado no meio dos pescadores. Mais do que a peleja no mar, vencera, no outono da vida, uma grande luta consigo mesmo. 

Eu até voltaria a pescar se fosse sempre desse jeito. Não é. Livros, assim como filmes, costumam mexer com quem já está sossegado, só apreciando a correnteza, à beira do rio que passou em sua vida e seu coração se deixou levar.  

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Era o amor, Margot!

Juro pelo cachimbo da velha parteira que cortou o meu umbigo que este caso é real. Pode ter uma coisinha a mais aqui, outra ali, mas Salomão, meu vizinho à época, me contou em detalhes o que lhe aconteceu quando morou na Quadra 114 Sul, em Brasília, na virada do milênio.

Margot, síndica do prédio, quase o levou à loucura. Criava confusão com os moradores por qualquer bobagem e fazia da vida de todos eles um inferno, inclusive dos prestadores de serviços, a reclamar do desodorante vencido de um, do cheiro de cigarro de outro e até do flerte inocente de uma babá com o porteiro da noite. 

A síndica era de morte! Um dia, mesmo percebendo pelo retrovisor que Salomão descia a rampa da garagem logo atrás do carro que ela guiava, fez-se de distraída e acionou o controle remoto para fechar o portão, espatifando o para-brisa do coitado. Irritado, ele quis dizer o que qualquer um diria, mas respirou fundo, contou até nove e percebeu a tempo a intenção dela: tornar-se vítima.

Certamente Margot diria que apenas cumpriu o regulamento da convenção de condomínio, que responsabilizava os moradores pelo fechamento do portão nas entradas e saídas da garagem. Salomão então teve que catar cacos de vidro espalhados do painel frontal até o porta-malas do carro durante horas, além de aturar a demora da oficina para repor a peça danificada e arcar com o custo da franquia do seguro. 

Ela tinha seus motivos
 para se sentir infeliz. Havia sido rejeitada pelo ex-marido, não conseguiu ser mãe nem contava com um cobertor de orelhas e braços para aquecê-la nas noites frias e secas do Planalto Central. Servidora pública, aposentou-se sem nada digno de orgulho em termos profissionais. Nem festinha de despedida fez por merecer de seus colegas de trabalho.

Caneta e prancheta nas mãos o dia todo, ela se portava como alguém acima do bem e do mal, a distribuir ordens e fazer ameaças até a Zezé, um caboclo magricela nascido na goiana Pirenópolis que vendia “frutos” do Cerrado  queijos, ovos, mel, linguiças, doces, broas e sequilhos — numa kombi enferrujada, de pneus arriados, havia anos parada no estacionamento público.

Ilustração: UMOR
Brasília continuava a mesma: quanto maior o poder, maior o abuso de autoridade. Quando tomava conhecimento dos chiliques de Margot, Salomão balançava a cabeça. Não entendia o porquê de tanta empáfia e rispidez no trato com as pessoas, principalmente as mais humildes. Apesar disso, não se encorajava a discutir o assunto nas reuniões de condomínio e tocava sua vida a fazer de conta que a síndica não existia, até que a danada pisou de novo no seu calo. 

Certa manhã, a filha de Salomão deixou o carro por alguns minutos próximo à guarita da portaria
 — na falta de vagas em frente ao prédio e sem tempo para descer à garagem no subsolo , enquanto pegava algo na geladeira para atenuar a fome. Foi o bastante para Margot acionar a fiscalização de trânsito, denunciar a infração e exigir que o agente público cumprisse o seu papel: aplicar a multa.

Salomão não se conformava. Naquele dia, abriu a caixa de ferramentas, soltou o verbo e falou alto para quem quisesse ouvir: “Por que comigo, minha Nossa Senhora Aparecida, que todo sábado vou à missa? Quanto mais rezo, mais assombrações me aparecem!" 

Talvez Margot ainda estivesse cabreira por ele tê-la flagrado no elevador, às três da madrugada de uma sexta-feira, bocejando com os dentes arroxeados pelo excesso de vinho, a carregar uma sacola que se rasgou, derrubando alguns apetrechos íntimos. Muito íntimos, diga-se de passagem. Tanto que Salomão esquivou-se de ajudá-la para evitar maior constrangimento. 

Mas agora ela passara dos limites. Como diria tempos depois um certo deputado federal a outro parlamentar, ao vê-la mais uma vez criticando de modo grosseiro o trabalho das faxineiras, Salomão comentou com o porteiro: “Esta senhora desperta em mim os instintos mais primitivos!"
 

Foi quando ele decidiu colocar em ação um plano que já vinha arquitetando em suas noites insones: publicar um anúncio no Correio Braziliense mais ou menos assim: “Mulher madura, enxuta, bem de vida, procura alguém para relacionamento sem compromisso, solteiro ou casado. Guarda-se sigilo. Ligar para...”  

Claro que Margot iria cuspir escorpiões e desconfiaria de que a molecagem partira de Salomão, mas dificilmente conseguiria provar. Ele, ao planejar a ação em seus sórdidos detalhes, terceirizaria o anúncio no jornal através de uma amiga mineira de passagem por Brasília. E saberia ser cínico o bastante 
— em público, claro , para lamentar o ocorrido, inclusive colocando-se à disposição dela para auxiliar na identificação da origem daquela crueldade inaceitável, sem precedentes na história do prédio. 

Mas Salomão — como o personagem bíblico filho de Davi, fiel à origem de seu nome na palavra hebraica Shelomon, de Shalom, que significa paz — era homem de índole pacífica, ainda que à base de ansiolíticos, custou a pegar no sono naquela noite, a ruminar sobre os possíveis desdobramentos de seu audacioso plano. 

Pensava: e se Margot, carente como andava, caísse na conversa mole de um serial killer? E se mais adiante, no curso das investigações policiais, encontrassem a responsável pela publicação do anúncio a partir das imagens das câmeras de segurança do jornal? 

Na manhã seguinte, seu mundo mudara completamente. Salomão recebeu a notícia de que a nora estava grávida, o que fez seu coração pulsar noutra cadência, levando-o a abortar o plano e a desistir da vingança. Não pegaria bem para um avô de primeira investidura conhecer o neto apenas depois de uma temporada na Papuda, cumprindo sentença condenatória como mentor intelectual, por exemplo, de estrangulamento ou coisa parecida. 

Ocorreu que meia hora depois lá estava ele de novo pensativo, oscilante, insatisfeito com a possibilidade de ter que desistir do plano meticulosamente arquitetado como se nada lhe tivesse acontecido.
 “Ninguém sabe do que aquela mulher é capaz! Eu estou prestando atenção há muito tempo...”  comentou comigo.  

Se temia o que pudesse acontecer com Margot, por outro lado imaginava: a danada é tão ardilosa que será capaz de se deixar seduzir inicialmente para no primeiro vacilo do serial killer morder o seu pescoço, sugar o sangue, esquartejá-lo e embalar os pedaços em maletas. E na calada da noite, jogar tudo no Lixão da Estrutural ou no fundo do Lago Paranoá. 

Porém Salomão, definitivamente, não era de guardar raiva por mais de três dias. Acabou mais uma vez perdoando a infeliz.  Optou por mudar dali e, em duas semanas, foi morar no final da Asa Norte, próximo do filho e da nora que lhe dariam o primeiro netinho.

Só voltava à antiga morada para apanhar a correspondência na portaria e bater papo comigo. Foi o porteiro, inclusive, quem lhe contou que a síndica, dois meses após a saída dele, também foi embora sem deixar nem uma nota de duas linhas no quadro de avisos. Disse que iria visitar um tio adoentado no interior goiano, que fechara as contas do condomínio com o subsíndico na noite anterior e partiu com destino ignorado. 

Veio à tona então o que já se desconfiava da garagem à cobertura do bloco: Margot, no calorão da menopausa, resistiu o quanto pôde, mas acabou juntando as escovas de dentes e os trapos encardidos com o menino Zezé, que deixou de vender “frutos” do Cerrado para se dedicar de corpo e alma ao consumo do estoque de afetos represados da criatura.

O casal foi visto pela última vez na boca da noite de uma quinta-feira qualquer, no parque Dona Sarah Kubitschek, ela com os olhos fechados a alisar a barba rala de Zezé, que guiava um Chevette SL seminovo com o toca fitas a reproduzir É o amor,  canção de um xará e conterrâneo:

“(...) Eu não vou negar 
Você é meu doce mel
Meu pedacinho de céu
Eu não vou negar (...)”

Pois bem! Só agora, depois que resolvi contar essa história, minha mãe vem me dizer que a velha parteira que cortou o meu umbigo nunca fumou. Mas isso é o de menos nesse caso.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Coração de criança

Era filho de um fisioterapeuta da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), no Rio de Janeiro, instituição que cuida de pacientes neurológicos. Nos anos 70, entre sete e oito anos de idade, várias vezes o menino acompanhou o pai no trabalho e vibrava muito a cada recuperação, convencido de que aquilo também era obra de seu pensamento positivo. Nasceu para ser médico, diziam. 

Houve uma festa junina na ABBR e seu pai o levou de novo. Lá encontrou o famoso jogador de futebol Francisco das Chagas Marinho, ou simplesmente Marinho, o lateral-esquerdo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, a distribuir abraços e sorrisos, vestindo a camisa de seu clube, o Botafogo.


Depois de conseguir o autógrafo do jogador, a criança deixou de lado a timidez, puxou-o pelo braço e cochichou:
– Por que você não vai jogar no Fluzão?
  Vamos ver... 
– Jura?
– Vou pensar.
– Vai mesmo?
– Prometo. Me dê um abraço...

O menino sonhava ver o craque no clube de coração de seu pai. Dele também, claro, ambos obcecados pelo Fluminense, que já contava com um dos melhores elencos do futebol brasileiro, com astros da grandeza de Rivellino, Paulo César Caju, Carlos Alberto Torres, Doval e Dirceu.

A paixão pelo tricolor do bairro de Laranjeiras vinha de longe. Enganchado nas costas do pai, o filho subiu e desceu muitas vezes a rampa de acesso às arquibancadas do Maracanã no mormaço das tardes de domingo, vestido a caráter: boné, camiseta, calção, meiões e chuteiras. 

Era como se em nome do pai, do filho e do espírito nada santo de Nélson Rodrigues, os deuses do futebol atestassem de papel passado, com firma reconhecida, que “ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico do qual não se pode – e nem se deseja – fugir". 

Na época, Marinho também não passava de um  meninão. Certo dia, ao encontrar num boteco em Copacabana, por acaso, um conhecido tricolor, ingenuamente achou de pedir ao cantor e compositor para tocar alguma coisa. Chico Buarque, gozador, mexeu com a fera: "só toco se você fizer 200 embaixadinhas". Com uma laranja nos pés, o craque botafoguense fez bem mais e, ressentido com a troça do poeta, fez biquinho: "precisa cantar mais não. Você canta mal pra...”. 

No auge da carreira, Marinho, com seus petardos de fora da área, fazia por merecer a cintilante metáfora do lendário locutor de rádio Waldir Amaral ao narrar gols do alvinegro: “...brilha no céu da Guanabara a estrela solitária do Botafogo!”. 

Virou pop star. Chegou a gravar um clip para o Fantástico, da TV Globo, cantando Eu sou assim. Também participou de O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros Contra as Panteras, filme cujo enredo era o seu sequestro às vésperas de uma partida de futebol. Libertado, o herói chegaria ao Maracanã a tempo de jogar a segunda etapa e marcar o gol da vitória.

No final de 1976, Francisco Horta, o então presidente do Fluminense, que também queria a todo custo vê-lo atuando com a camisa tricolor, pagou caro mas conseguiu. Entretanto, para ceder sua estrela, o Botafogo exigiu em troca (e obteve) nada menos que Paulo César Caju, Gil e Rodrigues Neto, três jogadores com passagem pela Seleção Brasileira.

Sem parceiros à altura em seu novo time, Marinho não rendeu o que dele se esperava. Acabou migrando no ano seguinte para o futebol norte-americano. Peregrinou ainda por vários clubes até encerrar a carreira de forma melancólica num modesto clube alemão, aos 35 anos, quando já enfrentava problemas sérios com álcool e drogas.

Quase três décadas depois, o ex-atleta sentiu-se mal enquanto trocava figurinhas na banca de revistas de um shopping center, poucos dias antes da Copa do Mundo 2014, no Brasil. Naquela noite, brilharia no céu potiguar da praia de Ponta Negra mais uma estrela, não mais solitária como cintilava na baía de Guanabara dos anos 70.  

No dia seguinte, no Rio, um meninão grisalho lamentou, junto ao velho pai, não estar por perto para tentar adiar o último tombo do herói e lhe permitir mais alguns lances na segunda etapa do jogo da vida. 

Seu coração insistia em lhe dizer que Marinho só trocou o Botafogo pelo Fluminense por conta daquele pedido no São João de 1976.