quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A arte de viver da fé

A banda Os Paralamas do Sucesso apresentou-se no começo de outubro de 2019, pela quarta vez, no Rock in Rio. Com 37 anos de estrada, o grupo ganhou visibilidade ao participar da primeira edição do festival, em 1985, e segue até hoje com sua formação original (Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone) encantando velhas e novas gerações com uma mistura bem balanceada de rockreggae e outros ritmos latinos. 

Conheci Herbert Vianna, vocalista e líder do grupo, no final do ano 2000, depois de um espetáculo maravilhoso realizado em Salvador. Elegante e bem-humorado, tinha nas mãos quando nos recebeu (minha filha e eu) uma taça de champanhe e um acarajé, em perfeita harmonia com uma noite morna na Bahia de todos os santos “e de quase todos os pecados”, como diz um velho amigo meu. 

Acabara de lembrar à plateia que “... a cidade, que tem braços abertos num cartão-postal, com os punhos fechados da vida real nos nega oportunidades e mostra a face dura do mal: Alagados, Trenchtown, Favela da Maré. A esperança não vem do mar nem das antenas de tevê: é a arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê...”

Nem sabia que Trenchtown é uma favela jamaicana na periferia de Kingston, capital da Jamaica, onde nasceu e cresceu Bob Marley, maior ícone do reggae. Mas já conhecia bem de perto o forte cheiro de esgoto de Alagados, lugar escolhido por Irmã Dulce para iniciar seus trabalhos assistenciais.

Naquela noite, a música pulsante sacudiu de quarentões a adolescentes, tocados com ritmos e letras de canções como: “Aonde quer que eu vá”, “Alagados”, “Caleidoscópio”, “Ela disse adeus”, “Lanterna dos afogados”, “Meu erro”, “Óculos”, “Tendo a lua”, “Vital e sua moto”, entre outras.

Em menos de seis meses, numa tarde de domingo no começo de 2001, fiquei chocado com a notícia de que Herbert e sua mulher, Lucy Needhan-Vianna, haviam sofrido grave acidente com um ultraleve em Angra dos Reis, litoral sul do Rio. Ele teria perdido o controle da aeronave ao tentar executar uma manobra simples para quem era expert no assunto. Na queda, ficou paraplégico e Lucy, presa no cinto de segurança, morreu afogada.

Fui reencontrá-lo 13 anos depois, em Brasília. O semblante triste deixava nítido que as perdas ainda doíam muito. Só a desmedida paixão pelo que sabia fazer como poucos o mantinha conectado à vida. 

Traduziu bem essa conexão ao declarar numa entrevista algum tempo depois: “na música você consegue canalizar com igual intensidade alegrias e tristezas profundas. Um exemplo disso é quando eu, através de uma canção que a gente tem, digo: ‘Olhos fechados pra te encontrar, não estou ao seu lado, mas posso sonhar. Aonde quer que eu vá, levo você, no olhar’. 

Lucy, o grande amor de sua vida, deve ressuscitar nessas horas e o encoraja a sonhar, seguir adiante. É a arte a viver da fé, da crença de que ela está bem ali, só não vê quem não quer.

Toda tragédia como a que vitimou Herbert e sua mulher nos leva a pensar sobre quão fugaz é a vida. E mesmo assim, é praticamente impossível a qualquer um de nós viver apenas o presente, sem trazer os fardos pesados de ontem para a sala de estar de hoje e sem criar a falsa ilusão de que amanhã tudo poderá ser mais leve.

Penso nessas coisas e noto que pouco aprendi sobre a arte de viver da fé. Nunca me convenci, por exemplo,  de que  “querer é poder”. Para mim, isso não passa de um clichê surrado. Perguntem aos filhos da agonia que sobrevivem em Alagados, Trenchtown ou na Favela da Maré se querer é suficiente.

Eu bem queria nunca mais acordar de mau humor. Ser mais tolerante com quem pensa diferente de mim. Viajar sem pensar, desde a partida, no dia da volta. Ou discordar de quem diz que a morte nada mais é do que cair num sono profundo e não acordar nunca mais. 

Eu bem queria acreditar que o céu e o inferno não são aqui e agora, a partir do que faço ou deixo de fazer a cada momento, desde que acordo e decido se vou ao banheiro descalço ou de sandálias. Se vou caminhar logo cedo com o que trago dentro de mim da noite anterior ou se me empanturro de novas notícias na internet ou tevê.
 
Na arte de viver da fé, querer é pouco. Quase nada. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Asas cortadas no ninho

Meus irmãos não me deixam mentir e podem confirmar que um dia fui eleito prefeito da rua em que morávamos. Coisa de criança. Isso aconteceu em 1966, em Patos, Sertão paraibano, pouco depois da intensa cobertura das eleições estaduais, envolvendo João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (PSD), realizada pela Rádio Espinharas.

A apertada disputa voto a voto – João Agripino venceria com menos de 1% de vantagem – no final de 1965 empolgou o município e tocou fogo na meninada da Rua Bossuet Wanderley, a disputar quem juntaria mais “santinhos” dos dois candidatos. Mais tarde, parte desses papelotes serviriam de cédulas na votação para prefeito da rua. Para fazer o quê? Não sei. O que fazer depois de eleito nunca foi importante no universo político deste país.

Ninguém queria enfrentar Lindomar, chamado de “Lindo”, moleque dentuço, brigão, metido a intimidar crianças menores, filho caçula de Seu João da perfumaria. Seria derrota líquida e certa de quem se atrevesse a encará-lo em todos os sentidos. Vivia a imitar o lutador de luta-livre Ted Boy Marino (1939 – 2012), fazendo das esquinas ringues de brigas de rua no auge do “telecatch” na tevê.

Mas se não houvesse disputa não teria graça alguma. Alguém cogitou minha candidatura e a vaidade, por certo, me fez entrar na brincadeira. Acho que só não queria perder de goleada, porque a derrota era quase inevitável. De cerca de 21 moleques eleitores, na largada uns 15 declararam apoio a Lindo.

Zé Augusto, vizinho meu, estava quieto no seu canto a observar a paisagem, sentado no meio-fio junto a um poste de madeira. Era respeitado por ser mais velho, estudioso, um líder pré-adolescente. Foi o primeiro a quem procurei. Mas dele logo ouvi que não poderia pedir votos aos amigos porque não queria encrenca com Lindo. 

Ao pé do ouvido, porém, cochichou que me ajudaria no que pudesse. Lembrava, certamente, de que eu o flagrara alguns dias antes, por cima do muro do quintal, se esfregando numa cozinheira que trabalhava em sua casa. Se sua mãe soubesse disso a encrenca seria outra. E vejam que nem existiam smartphones para registrar a ocorrência. 

Já com os irmãos Cleto e Flávio, filhos de um conhecido advogado na cidade e amigos de Lindo, com quem partilhavam o hábito de fumar tocos de cigarro atirados ao chão que encontravam pelas ruas, devo ter sido mais explícito. Vira os dois aprendendo safadezas com o vigia de uma obra numa esquina nos fundos do Colégio Cristo Rei. Devo ter dito algo assim: 
– Votem em mim e podem dizer que votaram nele; fica só entre a gente...

Júnior, filho de um dos empresários mais ricos da cidade – dono da concessionária Willys nos anos dourados da Rural, Pick-Up, Jeep e Aero-Willis – foi outro que acabou trocando de lado depois que levou uns murros de Elpídio, irmão mais velho de meu adversário. Não tive nada com a briga mas confesso que podia separá-los e cruzei os braços, a pressentir que lucraria com a troca de sopapos. 

No dia da abertura da caixa de papelão improvisada como urna para votação secreta, veio a surpresa: fui eleito por um mísero voto de diferença, para desespero de Lindo, que chegou a exigir a recontagem dos votos. Era tarde. 

No final da apuração, uns gritavam aqui e outros acolá quando  surgiu na janela Dona Eudócia, minha mãe, bastante aborrecida com a algazarra: 
– Hayton, venha já pra casa! Saia do meio desses moleques senão vou contar pro seu pai que você só quer viver no olho da rua! – esbravejou. Chorei de raiva e constrangimento mas tive que renunciar ao cargo sem tomar posse. 

Mudaria com minha família para Alagoas no começo de 1968, acompanhando meu pai em sua vida cigana como funcionário do Banco do Brasil. Nunca mais ouviria falar daquela turma até voltar a Patos, 35 anos depois, quando soube que alguns dos meninos também haviam partido... para sempre. Envolvidos com arruaças e drogas, morreram em conflitos entre quadrilhas ou com a polícia.

Ao passar na praça Getúlio Vargas, onde fica o Hotel JK, lembrei que fora ali, numa escapulida de casa na boca da noite, enquanto todos jantavam, que os amigos de rua me convenceram a "ser macho" e beber pela primeira vez uns goles de ”cuba-libre“, mistura de rum Bacardi, Coca-cola e gelo que me dá ânsia de vômito até hoje.

Disse outro dia, e repito neste instante, que estaria até agora sob penitência se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão. Dei sorte. Pais farejam no ar certas coisas – como cheiro de terra molhada em plena estiagem – e tratam de cortar as asas de seus filhotes ainda no ninho. Parecem bruxos.


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O rosto de Chico que guardei

Tem gente que é como cana-de-açúcar: mesmo esmagada, reduzida a bagaço, é doce, não consegue ser amarga. A cabeça está sempre fria, o coração quente e as mãos estendidas. Chico Gonçalves, que conheci na Bahia há quase três décadas, era assim. Nunca mais nos encontramos, mas guardei na memória sua imagem de companheirismo e generosidade.

Chico Gonçalves 
Julho de 1990. Tudo começou com um telex da direção geral do Banco do Brasil comunicando minha promoção, da pequena agência em Porto Calvo, interior alagoano, para o segundo escalão na hierarquia da empresa no maior estado do Nordeste.
– Ele bebeu ou ficou doido de vez... – comentara, dois dias antes, ao chegar em casa para o almoço, sobre consulta feita por Nivaldo Alencar, novo superintendente estadual da Bahia.
– O que aconteceu? – quis saber minha mulher, desconfiada de que pudesse estar a caminho uma nova mudança.
– Me ligou perguntando o que achava de ser indicado para o cargo de superintendente adjunto. Claro que topei na hora, mas pode ser trote!

Não era. O País ainda curava a ressaca das primeiras medidas da chamada Era Collor (1990 – 1992). E o banco havia decidido implantar projeto que chamara de Novo Rosto. Pretendia mudar radicalmente a cara para melhorar sua imagem no mercado global. Só se falava em reengenharia, downsising, outsoursing e outros remédios para os problemas  da organização.

Centenas de agências tiveram seus quadros reduzidos, gerando enorme quantidade de pessoas sem localização definida. A histórica estabilidade do emprego entrava em turbulência. Sem parâmetros de avaliação claros, da noite para o dia gerentes foram rebaixados de nível ou simplesmente coagidos a aposentar, enquanto outros eram promovidos a unidades melhores, com ganhos maiores, alguns sustentados apenas no compadrio que sempre existiu nas relações corporativas. 

Ao desembarcar em Salvador, aos 32 anos de idade, evidente que fazia ideia do peso da cruz que recairia sobre meus ombros. “É preciso ter dúvidas. Só os estúpidos têm uma confiança absoluta em si mesmos.” (Orson Welles). Mesmo assim, arregacei as mangas e fui à luta. Primeiro ato: procurar apartamento para morar.

Dia seguinte, já no novo ambiente de trabalho, era apresentado a Chico Gonçalves, a quem iria substituir e que fora afastado do cargo sem motivos concretos para a troca. Falou-se na sede do banco em “falta de perfil ”, “já deu o que tinha pra dar” e outras tolices sem nexo. Conversamos longamente, desde as circunstâncias de sua saída até a transição no trabalho.

Uma hora depois, se muito, ouvi dele algo inesperado e marcante: ao supor que eu teria dificuldades em conseguir fiador para o contrato de locação do imóvel que iria alugar, Chico prontificou-se a afiançar dizendo que fazia questão de dar a mão a qualquer colega que estivesse chegando à capital baiana sem conhecer ninguém.

Notei que acreditara quando lhe disse que, para mim, a indicação de meu nome teria sido para preencher cargo vago. Pensei: o que leva um homem, ainda sangrando, sentindo-se injustiçado, a não esmorecer em sua prontidão para servir ao próximo? De quantos “chicos” precisávamos para mudar o mundo?

Nem foi necessária a fiança. Mas perdeu completamente o sentido o velho conceito que dizia que as pessoas passam e as instituições ficam. Nenhuma instituição é eterna; todas desaparecem com o tempo. As pessoas, sim, perpetuam-se – em pensamentos, palavras, atos e omissões –, na tapeçaria de ambições e frustrações de que é feita qualquer grande empresa.

Em menos de um ano o vento sopraria noutra direção e as velas do barco foram reposicionadas. Foram trocados os dirigentes que implantavam no banco o Novo Rosto e Chico Gonçalves resgataria o cargo que ocupava.

Eu voltaria para Alagoas pouco tempo depois para administrar uma pequena agência na periferia de Maceió, no bairro Tabuleiro dos Martins. Na viagem pela BR-101, lembro de ter ouvido no toca-fitas, dentre outras canções,  Disparada, do paraibano Gerado Vandré. “... mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo, e nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando até que um dia acordei...”

Passados nove anos, retornei à Bahia em junho de 1999, agora nomeado superintendente estadual. E logo no primeiro mês fui convidado a participar de um almoço com funcionários aposentados, onde reencontraria o semblante fraterno, o novo rosto de paz e bem-estar de Chico Gonçalves, em seu merecido “dolce far niente”.

Pude então resgatar o que acontecera naqueles dias de incerteza e agradecê-lo de novo pela generosidade quando ali cheguei pela primeira vez. E me veio à cabeça outra vez os versos de Vandré: “... porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente...”

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Cocorotes

Sei que fui um menino arteiro, buliçoso, gaiato e outros adjetivos que quisessem dar, apesar de nunca ter preocupado meus pais em termos escolares. Sei também que eles não souberam metade do que aprontei quando criança e que nem devo contar agora para não servir de mau exemplo para os netinhos.

Estaria até hoje sob penitencia se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão na capela do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB). Mas tudo me leva a crer que os cocorotes que colecionei em minha agitada cabeça purgaram todos os pecados, veniais e mortais, até a terceira geração de meus descendentes diretos.

Para quem desconhece o termo, cocorote (cascudo ou croque) é aquela pancada seca no cocuruto, com o dedo médio saliente da mão fechada de quem bate. Provoca uma dor lancinante, capaz de escurecer a vista e fazer o moleque gemer por uns cinco minutos. Dói mais do que topada no dedo mindinho. E, no meu caso, havia agravante: cocorote quase sempre vinha “com sobremesa” – beliscão ou puxão na orelhas, a depender da natureza do delito.

Cocorote, beliscão e puxão de orelhas eram considerados pequenos castigos para traquinagens de menor relevância como arengar com um irmão e ser alvo de delação premiada por parte de outro, fazer algazarra e acordar o pai no cochilo após o almoço ou não parar quieto um minuto sequer enquanto os cabelos eram penteados pela mãe, coitada, esbaforida em seus múltiplos afazeres.

Por falar em cabelos, a tolerância doméstica com castigos aparentemente brandos estimulava excessos até de pessoas alheias à casa, feito certos barbeiros. Como se não bastasse o corte militar, algumas vezes o cangote ardeu por conta da navalha passada às pressas, enquanto meus outros três irmãos (Nena, Lica e Dula) aguardavam o martírio mensal. Deve ser por isso que nunca esqueci a marca “Ferrante”, cunhada no pedal das cadeiras da barbearia.

De dentistas, cruz-credo, nem tolero lembrar. Desconheço sessentão que tenha passado a infância no interior e que ainda possua a dentição original em perfeitas condições. Já fomos a nação dos desdentados. O número de pessoas que não possuía sequer um dente da boca era enorme, talvez porque não se tinha a exata noção daquilo que mais provocava pânico na criançada: doido na rua a jogar pedras, “papa-figo” e dentista com a broca na mão, sorrindo, a dizer que não iria doer nada.

Ainda bem que, em 1964, ano em que comecei a cursar a escola primária, já havia sido abolido o uso da palmatória – exceto em algumas delegacias, claro! – introduzido no País pelos jesuítas como forma de doutrinar os índios resistentes à aculturação. A prática continuou durante a escravidão como um dos castigos aplicados aos desobedientes. Quando a educação por aqui ainda engatinhava, no século XIX, a palmatória ganhou sobrevida na escola, pelo menos até o final dos anos 50.

Sobrevivi a cocorotes, beliscões, puxões de orelhas, navalhadas no cangote, doidos de pedra de tudo que era jeito, mas continuo sob o miserável risco de tortura da infeliz da broca dental. Fico calado para não parecer um velho covarde, porém toda vez que vou ao dentista, mesmo que seja apenas para fazer uma limpeza de rotina, penso numa anestesia geral.

Vai que durante a assepsia resolve cutucar os caquinhos e descobre que precisa refazer alguma obturação antiga. Sem anestesia geral, juro que prefiro um cocorote com “sobremesa”. Sei que também escurece a vista, mas dói menos.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

As coisas se arranjam

Na última frase da carta que deixou para sua mulher, Eudócia, antes de tirar a própria vida em maio de 1972, Agostinho lhe fez um compreensível e derradeiro apelo: “...Se puder viver sem outra companhia que não nossos filhos, faça-o.”

Não pôde. Aos 33 anos de idade, nove filhos para criar – aos quais, a bem da verdade, não deixaria nada faltar –, seria injusto negar àquela mãe o direito inerente ao “se”, exigindo-lhe que também renunciasse à vida. 


Se fosse comadre de Clarice Lispector (1920 – 1977), talvez tivesse ouvido algo assim: "A gente tem o direito de deixar o barco correr. As coisas se arranjam, não é preciso empurrar com tanta força..." 



Meses adiante conheceria Manelito, 36 anos, desenhista e publicitário, com quem viveria por 14 anos. Como se não bastassem os filhos que tinha para criar, trouxe da Paraíba para Alagoas sobrinho que fora abandonado pela mãe – clássico “toma que o filho é teu!" ocorrido com seu irmão Olívio. O instinto maternal ainda pulsava firme, apesar da ligadura de trompas.

Ciúmes e cerveja em excesso, por parte de Manelito, esgarçaram a relação. Acabaram separados. Ele até tentou reatar mas viu que não dava mais. Pouco antes de morrer, com diabetes descontrolada, pediu para revê-la mais uma vez e conseguiu. Já não havia paixão, mas compaixão. 


Quando seu filho Hélio (Lica) faleceu, em 1991, vítima do rompimento de um aneurisma cerebral, achei que ela, aos 53 anos, desabaria. Para mim, até hoje não sei como uma mãe aguenta sepultar um pedaço de si sem enlouquecer, com a alma dilacerada.


Ela ficaria viúva mais duas vezes. De Francisco, com quem conviveu apenas 12 meses, até ele sofrer infarto irreversível. E de Jailton, romance que não durou mais que seis meses. “O coitado já andava com o coração bem fraquinho”, ela disse. 


Se fosse vizinha de Cora Coralina (1889 – 1985), dela poderia ter ouvido: "Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras. E faz doces. Recomeça." 

Este mês completa 81 anos. Mora sozinha por opção, próximo à orla de Jatiúca, em Maceió, onde cuida de sua própria alimentação e faz caminhadas ao entardecer de três a quatro vezes por semana. Vaidosa desde menina, não vai nem à portaria do prédio sem antes retocar o batom e ajeitar os cabelos.

Não bebe nem fuma, mas adora ouvir e dançar boleros, sambas e valsas. Se existe algo que lhe chateia é gripar e não poder pegar seu carro e sair aos sábados e domingos a passear com Haydeé, filha mais velha. 

Do futuro, não espera muita coisa. Nada além de continuar a receber sua pensão todo dia 20 e ser bem assistida pelo plano de saúde que Agostinho lhe deixou. Espera ainda usar um vestido bem bonito e ser porta-alianças no casamento de Marina, 13 anos, primeira de 23 bisnetos.


Se fosse amiga de Cecília Meireles (1901 – 1964), eu diria que andaram orando juntas: "Senhor, fazei de mim como as ondas do mar, que fazem de cada recuo um impulso para ir mais adiante." 

Nunca leu Cecília, Clarice ou Cora Coralina. Nem precisou para ser feliz. Aprendeu cedo com o rio Paraiba a contornar pedras e seguir no rumo do mar. Livrou-se de uma vida sem graça, feita de amargura e ressentimento.