Desde cedo dava para ver que o dia não acabaria bem após um desarranjo daqueles que acontecem de três em três anos, com chispas, faíscas e cólicas lancinantes, obrigando-me durante toda a manhã a não me afastar mais que 20 metros do banheiro. Aprendi a duríssima pena que não se deve comer na rua com congestão nasal, resfriado. Que convém nunca esquecer de que antes da primeira garfada, olfato é sentido mais importante do que paladar. Qualquer animal sabe disso, menos os tidos como racionais.
À base de chá de camomila, soro caseiro, maçã e torradas sem fibras, fiz de tudo para me recuperar a tempo e não perder o casamento de uma velha amiga. De tardezinha, apesar das olheiras e da tontura resultante da dieta, lá estava eu belo e perfumado, de terno e gravata, sapatos engraxados e pronto para a noitada. Foi só chamar minha mulher, certificar-me de que estava de posse do kit “c” (carteira, celular e chaves) e partir no rumo do Lago Sul.
Próximo ao local da cerimônia e dos cumprimentos aos noivos, embora fizesse aquele friozinho típico de julho no Planalto Central, já brotavam em minha testa algumas gotas de suor quando fui abordado numa blitz por um policial:
— Documentos, por favor...
— Boa noite... — respondi, ao repassar a papelada, seguro de que estaria no salão de festas em pouco tempo, com um banheiro limpinho, cheirando a lavanda ou eucalipto, à minha disposição.
De nada desconfiei quando o policial que me abordou recorreu ao que parecia ser o líder da patrulha e começaram uma conversa cheia de gestos e olhares em minha direção. Aguardei o desenrolar da prosa ainda convicto de que os documentos estavam em ordem, embora uma parte importante de meu organismo, àquela altura, cobrasse celeridade no desfecho. Logo em seguida, os dois se aproximaram e o chefão foi direto ao ponto:
— O senhor não deveria ter feito isso...
— Do que o senhor tá falando? — perguntei, já acionando o botão de culpa presumida que todos nós carregamos no subconsciente, mesmo sem motivo.
— O que significa este cheque aqui junto à CNH?
Tive dificuldade em convencê-los de que, dois dias antes, para evitar que um colega de trabalho perdesse a chance de fechar a compra de um imóvel que negociava havia meses e que recebera ultimato para pagar a entrada, emprestara aquela quantia. Ele, inclusive, já pedira resgate de um investimento cuja liberação se daria em uma semana e, para não abrir mão dos rendimentos da aplicação financeira, solicitou-me antecipar o montante de que precisava, sob a garantia do cheque pré-datado, cruzado e nominal em meu favor.
Prestes a ser injustamente acusado de crime de suborno — o que só agravaria o desarranjo contra o qual já se prenunciava o reinício de minha guerra visceral —, eu poderia, de molecagem, esclarecer aos policiais que uma "ajuda de custo" daquele tamanho só faria sentido se todos os estofamentos do carro, o porta-malas e o porta-luvas, estivessem abarrotados de cocaína e outras drogas alucinógenas como maconha, haxixe e ecstasy. Ou se escondessem armamentos pesados de uso privativo de traficantes e milicianos, com farta munição a granel. Afinal, além dos traços do arquiteto, até hoje tudo é possível sob o céu de Brasília.
Poderia também ponderar o que se aprende em qualquer apostila básica de técnicas bancárias para concursos públicos: o cheque nominal, cruzado, só poderia virar dinheiro se fosse depositado numa conta bancária, em meu nome ou sob minha ordem. Portanto, seria pouco inteligente duvidar da quantidade de neurônios deles e pagar propina com cheque rastreável até por um velho bancário como eu, ali cada segundo mais apressado por conta de chispas, faíscas e cólicas lancinantes que reapareciam a todo vapor.
Com os embalos intestinais em franca evolução, lembrei-me de um conselho de um amigo meu, advogado em Alagoas, que certa vez foi abordado por um agente público que insistia em encontrar razão para lhe multar ou até mesmo reter o veículo, mas não conseguia. Ele só foi liberado ao dizer o que muitos querem ouvir quando se instala impasse nesse tipo de blitz:
— Tá coberto de razão... Me desculpe! Em seu lugar, eu faria a mesma coisa. Com tanto bandido solto por aí, o que seria de nós sem profissionais como o senhor.
Optei, porém, por dizer a verdade: que não tinha, como de fato nunca tive, cofre onde pudesse guardar o cheque e preferi mantê-lo em lugar seguro e de fácil acesso (meu bolso), para não correr o risco de escondê-lo e não saber depois onde fora parar quando chegasse a data do depósito.
O ventinho cada vez mais congelante da noite, contrastando com o suadouro que já me encharcava, deve ter soprado dúvidas sobre meu argumento, o que levou o chefão da blitz a perguntar se poderia telefonar ao emitente do cheque e averiguar a veracidade do que eu afirmara. Creio que minha resposta, de tão direta e honesta, acelerou o desfecho do caso:
— Por favor, faça isso, mas corra senão quem vai fazer algo urgente aqui sou eu... — disse-lhe, segurando a barriga, dando pista de que o mais comum dos apertos a que sujeito qualquer animal estava prestes a produzir seus efeitos líquidos em plena via pública.
Deu certo. Dispensado, fui-me embora e mal cheguei à toalete do salão de festas, fiz o que precisava e deveria ser feito. Lá dentro, aliviado, deu para ouvir a marcha nupcial embalando o desfile ao altar de minha velha amiga, a quem mais adiante me expliquei por deixar para trás o melhor daquele 17 de julho de 2004:
— Ninguém merece... — balançava a cabeça minha mulher, a caminho de casa, com pena de mim ou, o que é mais provável, a lamentar a perda dos embalos de um sábado à noite inesquecível.