quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Chatice tem cura

Ninguém discorda de que hoje em dia anda muito chato ver futebol, tanto nos estádios quanto pela TV, principalmente depois que apareceu o árbitro assistente de vídeo (VAR, em inglês), que busca justiça no resultado sem tirar a graça do esporte, mas que joga água fria na fonte primária de onde emana o calor do jogo: o grito de gol, agora solto em duas parcelas.

Sei que muito dessa chatice tem a ver com o reduzido número de gols por partida. Também com o fato de o jogo ser paralisado a todo instante por conta da evolução física dos atletas e pela mistura de covardia e vaidade do árbitro, a recorrer à cabine do VAR mesmo quando convicto de lances óbvios. Claro, ele precisa de exposição midiática "espontânea" onde antes não havia. Foram transformados em totens de "merchandising" e o anunciante cobra com razão a visibilidade de sua marca.

Gols não deveriam ser escassos. Se a dose certa de adrenalina provoca êxtase, ninguém deveria ficar satisfeito com escore abaixo de 3x3, isto é, um mísero gol marcado a cada 15 minutos. A emoção do basquete com seus placares elásticos é  indício de que o momento de gozo do futebol nunca será vulgarizado se acontecer com maior frequência.

Três remédios me ocorrem para arejar o ambiente: a) o lateral poderia ser cobrado com os pés, assim como acontece com os escanteios; b) os escanteios deveriam ser cobrados do ponto em que a linha de fundo é interceptada pela linha da grande área; c) após cinco faltas coletivas, poderia ser marcado tiro livre direto da meia lua do infrator, sem direito a barreira, admitindo-se, contudo, que o goleiro possa sair da baliza quando autorizada a cobrança da infração.

Mais três receitas simples para intensificar a dinâmica do jogo, com reflexo direto nas situações de gol: a) a partida deveria ser disputada em dois tempos cronometrados de 30 minutos, com intervalo para descanso de 10 minutos; b) as equipes contariam apenas com 10 jogadores (inclusive o goleiro), permitidas até cinco substituições; c) o time com a posse da bola, ao ultrapassar a linha central, ficaria impedido de retornar ao próprio campo, sob pena de tiro livre direto.

Há até quem defenda acabar de vez com a regra mais difícil de ser aplicada: a do impedimento. Discordo.  Seria chato  – e basta de chatice! – ver um brucutu colado no goleiro adversário durante toda a partida. Mas entendo que a regra poderia ser aplicável apenas a partir de uma linha intermediária, a ser introduzida nas duas metades do campo de jogo, entre as linhas de fundo e divisória do campo. 

Sobre o VAR, reconheço: é a credibilidade do futebol que está em jogo. Mas concordo com um amigo quando diz que, assim como no vôlei, deveriam deixar com os treinadores a prerrogativa de pedir a revisão eletrônica. Cada time teria o direito de acionar o árbitro de vídeo por duas vezes a cada tempo. Ficaria menos midiático e acabaria com a mistura de covardia e vaidade que se vê atualmente. 

Estou seguro de que essas modificações teriam o condão de estimular o surgimento de novas estratégias e táticas de jogo, de preparação física, por combinar redução do número de atletas na disputa, ampliação de espaços e maior tempo de bola em jogo. Com um detalhe muito importante: a implantação não implicaria gastos adicionais com aumento de campo, balizas ou aparato tecnológico. 

Você, que, assim como eu, já viveu um pouco mais, deve lembrar de "General", personagem de “Viva o Gordo”, da “TV Globo”, criado por Jô Soares. Amigo do então presidente Figueiredo, sofrera um acidente e passara seis anos em coma. Ao despertar, ligado a aparelhos hospitalares, descobriu que já não havia ditadura e que seu amigo não ocupava mais a presidência; pior, quem sentava na cadeira agora era Sarney, um civil. "General" enlouquecia toda vez que era contrariado pela realidade dos fatos: “Me tira o tubo! Me tira o tubo!”

Do jeito que o futebol anda chato, se nada for feito para soprar as brasas dessa paixão, daqui a pouco todos nós, amantes do esporte, teremos que macaquear o personagem inconformado de Jô Soares e pedir que nos desliguem os aparelhos.

Pode ser melhor assim. Nem teria mais que ouvir Tite falar das  "sinapses no último terço" ou dos "extremos desequilibrantes". Haja saco!    

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Papo reto


Era o próprio coronel Amaral, ex-secretário de Segurança Pública de Alagoas, que, no final do século passado, já se dizia adepto do discutível lema “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos só para humanos direitos”. Ai de quem duvidasse disso!

Conheci-o em meados de 1995. Acompanhava numa audiência, que me solicitara no dia anterior, seu velho amigo oficial da reserva do Exército, coronel Humberto Bezerra, sócio-proprietário e então presidente do BicBanco, credor de várias operações vencidas em nome de prefeituras alagoanas.

Embora o Banco do Brasil fosse responsável pelo pagamento  do Fundo de Participação dos Municípios – por ordem do Tesouro Nacional –, esclareci que não seria possível retirar das contas das prefeituras os valores em atraso sem expressa autorização. Mas me dispus a orientar nossos gerentes para que tentassem convencer os prefeitos a renegociarem as dívidas atrasadas.

Satisfeito com o desfecho da audiência, o coronel Amaral fez questão de registrar na saída: “Soube que você chegou criança aqui em Alagoas e vejo que é gente boa. Se precisar de mim, é só ligar. Nada como uma conversa franca pra conhecer uma pessoa...”. Devia falar daquilo que hoje em dia a molecada chama de um papo reto.

No dia seguinte, chegou à recepção da superintendência um pacote em meu nome, contendo algo incomum: um revólver calibre 38, prateado, seis balas, com documento de porte, segundo o remetente para “minha defesa pessoal”. Do seu jeito, quis o coronel apenas ser gentil, retribuindo a atenção dispensada a seu antigo colega de farda.

Com três filhos menores e sem nunca haver disparado um tiro sequer – a não ser de espingarda de ar comprido em "tiro ao alvo" de festas no Interior –, pensei em me desfazer do “mimo” mas logo percebi que não seria tão simples. Estava registrado em meu nome e poderia me complicar em eventual exame de balística, caso fosse utilizado de forma criminosa por terceiros.

Devolver poderia ser interpretado como desfeita de minha parte. Resolvi então separar os projéteis da arma de fogo e escondê-los até o dia em que deixasse Alagoas. O sossego só reapareceu lá em casa bem mais tarde, quando da campanha nacional de desarmamento da população.

Menos de três meses depois recebi o gerente de uma de nossas agências, bastante assustado com uma ameaça de morte que teria sofrido naquela manhã. Ele vinha conduzindo inquérito administrativo para apuração de irregularidades que poderia resultar na demissão de uma pessoa.

Contou-me que alguém ligou perguntando se ficara satisfeito com a peixada que comeu no almoço do dia anterior (um domingo), ao lado da mulher e dos filhos pequenos, num restaurante próximo de sua casa. Em seguida, perguntou se não temia o que pudesse acontecer, caso insistisse em prejudicar a vida dos outros.

Ouvi o relato e questionei se por acaso fazia ideia de quem estaria por trás daquela ameaça. Disse que desconfiava que poderia ser algum parente da pessoa que estava respondendo ao inquérito administrativo. Mas como não havia provas, não queria, óbvio, fazer ilações, levantar falso testemunho. 

Não era a primeira nem seria a última vez que me procuravam em pânico, sob ameaça, mas algo me dizia que se tratava de coisa mais séria. Era nessas horas que me perguntava diante do espelho: isso aqui é mesmo atividade bancária? Quem disse que "cão que late não morde"?

Lembrei do coronel Amaral, peguei o telefone e pedi sua opinião sobre o caso. Contei os fatos rigorosamente como me foram relatados. No mesmo dia, foram intimados a comparecer à Secretaria de Segurança Pública:  o gerente que se sentia ameaçado, a pessoa que poderia ser demitida e alguns de seus familiares, escolhidos, claro, nem tanto aleatoriamente.

Conhecido por seu temperamento imprevisível, o coronel começou a reunião em tom amistoso, falando sobre a enorme admiração que nutria pelo BB, do respeito pelo superintendente que conhecera havia pouco tempo, até chegar à ligação que recebera, reproduzindo-a passo-a-passo, esmiuçando cada detalhe de forma mansa e didática.

De repente, seu rosto transfigurou, ficou encarnado. Voltou-se então para os familiares – que ouviam a tudo com ar de “onde ele quer chegar com essa conversa mole?” –, deu um tapa na mesa e esbravejou: “se não for nenhum de vocês, procurem e achem quem anda fazendo isso com o gerente do BB, se não todos irão prestar contas comigo, fui claro?!” 

De fato, nada como um papo reto. Não sei se foi apenas coincidência, mas o gerente pôde concluir em paz o trabalho que vinha fazendo. E nunca mais me procurou para falar de ameaças. Só de atividades bancárias.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Fantasmas não existem


Nomes agora não vem ao caso, mas tudo aconteceu ali na metade de 2002. 

Minha secretária sentiu-se aliviada quando lhe pedi que passasse a ligação telefônica de uma mãe desesperada, a dizer que só faria uma denúncia gravíssima se falasse diretamente com o diretor.

– Bom dia, posso ajudá-la?
– Não acredito! É o senhor mesmo?
– Claro. Pode falar, por favor.
– O senhor sabia que meu filho está perdendo o emprego porque é negro?
– Isso é muito sério. Conte mais, por favor.
– Ele é bom filho, estudioso, inteligente, mas trabalha no meio de gente metida a besta... Sofre muito. Sabe que vai ser demitido.
– Qual o nome completo dele? Vou ver o que está acontecendo e falo de novo com a senhora ainda hoje.
– Moço, me ajude! Meu filho não pode perder esse emprego. A gente é pobre, ele é nossa esperança...

Vi que se tratava de funcionário no último mês do chamado estágio probatório de 90 dias – processo que visa aferir se a pessoa aprovada em concurso público possui aptidão e capacidade para o desempenho do cargo no qual ingressou – que antecedia o ingresso em definitivo na empresa.


Morador de Samambaia, fora chamado rigorosamente dentro da ordem classificatória de aprovação no concurso público.  Preencheria vaga na unidade instalada no Itamaraty, Esplanada dos Ministérios, em Brasília.


A cidade-satélite de Samambaia, hoje com mais de 230 mil habitantes, nasceu oficialmente em 1985, com a remoção de áreas ocupadas de forma irregular, como Invasão da Boca da Mata, Asa Branca e outras. Era parte do Núcleo Rural de Taguatinga que, desmembrada, passou a ter administração própria no Distrito Federal.

Itamaraty é o nome do palácio que abriga o Ministério das Relações Exteriores, responsável pelo contato diplomático com governos estrangeiros e organizações internacionais, serviços consulares e toda a burocracia relacionada à proteção da imagem do Brasil no exterior.

Pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, código do consumidor, avaliação de desempenho, tarefas escolares na faculdade etc. –, o rapaz acabou desorientado, perdido.


Já não interagia de forma espontânea com clientes – boa parte engravatada, culta, poliglota, natural no recinto – nem com colegas de trabalho. Também demonstrava insegurança ao prestar esclarecimentos, pouca iniciativa e, por isso, havia "dúvida quanto à aptidão para a carreira”, no entender de seu chefe imediato.


À noite, retomei a conversa por telefone com a mãe aflita e disse sem muita convicção  que para mim o caso não envolvia preconceito. Não consegui enxergar com segurança,  naquele dia, se cor da pele, traje humilde e sotaque também  estavam de fato pesando na avaliação preliminar que se fazia.


Mas assegurei à mãe que, se o filho dela fosse bom mesmo, teria noutro ambiente mais duas semanas para provar isso. Já havia orientado meu pessoal a flexibilizar a regra – por minha conta e risco – para que o garoto concluísse o estágio probatório em Samambaia, onde nasceu e se criou.


Duas semanas adiante, liguei pro novo chefe dele para saber o desenrolar dos acontecimentos. A resposta me impressionou:

– O moleque já é o melhor funcionário que temos. A clientela gostou dele, é ligeiro, trabalha feliz e ainda ajuda os colegas porque conhece do serviço como nenhum outro.

Nem recordava mais do caso quando, meses depois, já como superintendente do Distrito Federal – havia sido exonerado do cargo de diretor em meio ao turbilhão de mudanças que sacudiu o país e a empresa no começo de 2003 –, participava de um café da manhã com clientes em Samambaia.


Na ocasião, falaram de uma pessoa que queria me conhecer. Fui até o rapaz que conversava com uma senhora na plataforma de atendimento. Ao me ver, levantou-se e estendeu a mão:

– Muito prazer! Eu queria apresentar minha mãe e agradecer o que o senhor fez por mim.
– Se você quer agradecer a alguém, dê um abraço em sua mãe, uma mulher corajosa, determinada, que nos poupou de um vexame, de cometer uma injustiça.
– Mas se o senhor não ouvisse o que ela tinha a dizer...
– Olhe bem: importante é você perceber que na empresa não existe preconceito. Surgem oportunidades todo dia e para quem quer crescer, o céu é o limite.
– Sei disso...  – respondeu, afagando os cabelos da mãe orgulhosa de seu rebento.

O tempo passou e a última notícia que tive desse colega foi em 2013, mais de 10 anos depois do episódio. Ocupava cargo de confiança na Ouvidoria Interna, canal de comunicação direta dos funcionários, especializada em receber denúncias sobre conflitos, desvios de conduta ética e descumprimento de normas.


Talvez veja fantasmas onde nunca existiram, mas continuo sem respostas para algumas perguntas que me fiz a vida inteira: por que não vi um presidente negro em mais de 40 anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só houve um em mais de dois séculos de história? 


Deve ser por isso que me assombram mais os vivos  com seus preconceitos de cor, gênero, origem, classe social, religião etc.  do que os mortos.      




sábado, 10 de agosto de 2019

O mito Miguel Arraes


Sufocada por dívidas, a Usina Catende teve sua falência decretada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco em 1995, agravando ainda mais o quadro de miséria instalado na Zona da Mata nordestina, com o fechamento de diversas unidades nos anos 90.


O então governador Miguel Arraes, preocupado com sinais iminentes de convulsão social numa das regiões mais desiguais do país, telefonou para o presidente do Banco do Brasil, Paulo César Ximenes, a quem pediu para que a instituição, como maior credora bancária, aceitasse ser representante do síndico da massa falida, única forma que enxergava de recuperar a velha fábrica de açúcar. ”Tudo bem, governador, se é pra tentar manter viva a usina e preservar centenas de empregos, vamos em frente, mas que fique bem claro: não podemos mais emprestar nenhum centavo de dinheiro novo!”, teria dito Ximenes.

Conheci Miguel Arraes de Alencar alguns meses depois, no início de 1996, quando cheguei em Pernambuco para trabalhar na superintendência estadual do BB e fui convidado por ele para conversar sobre o caso “Catende” no Palácio Campo das Princesas. Sabia que se tratava de um advogado, economista e ex-exilado político, que fora prefeito da cidade de Recife, deputado estadual, deputado federal e por duas vezes governador do estado, no exercício do terceiro mandato.


Descrente quanto ao sucesso do processo em andamento, tentei ser objetivo, indo direto ao ponto já na abertura da reunião: ”governador, com todo respeito que o senhor merece, não vejo como o banco possa evitar a falência da usina, que está devendo a trabalhadores, fornecedores de cana, governo, previdência e bancos, o equivalente a dez vezes o valor das máquinas e das terras que possui.”


Arraes acendeu o cachimbo, deu duas ou três baforadas, olhou firme para mim e sentenciou: “o senhor está enganado! Essa usina já foi a maior do Brasil e chegou a fabricar um milhão de sacos de açúcar por safra. Teve a primeira destilaria de álcool do país, 40 mil hectares de terras, 170 quilômetros de estradas de ferro e 80 engenhos de cana. Só na fábrica já trabalharam mais de 700 operários. E ainda tem uma vila operária com 200 casas e uma escola para 50 alunos. A Catende não pode nem vai desaparecer!”


Pensei: não vale a pena contra-argumentar agora, por exemplo, que sucesso no passado não assegura êxito no futuro. Àquela altura, a eventual saída do BB do processo teria consequências imprevisíveis. Minutos antes, tinha visto na antessala do gabinete uma gravura do governador Arraes, feita em naquim, a bico de pena, onde escrito na base o verso drummondiano “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”.


O governador, consciente de que os empregados da usina eram credores privilegiados da massa falida, queria organizá-los numa grande cooperativa. Com o afastamento por determinação judicial dos ex-proprietários da “Catende”, o Bandepe, banco estadual, já havia até adiantado um crédito por conta da venda de açúcar da safra 95/96, para que fossem feitos os tratos culturais nas lavouras de cana e o chamado “apontamento” da fábrica - reparo de caldeiras, limpeza, substituição de peças gastas etc.


O BB já vinha tocando a gestão do dia a dia com a plena confiança do juiz responsável pela condução do processo falimentar, mantendo acesa a esperança de diversos interessados na sobrevivência da empresa - empregados, cortadores e fornecedores de cana, compradores de açúcar, governos municipal e estadual, além da própria comunidade do município de Catende(PE).


Em outubro de 1996, o que parecia um grande delírio ganha corpo e alma: a usina iria de fato esmagar a safra de cana-de-açúcar da região. Fim de tarde, sol desaparecendo no horizonte, palanque armado na carroceria de um caminhão, Arraes, aos 80 anos de idade, pega o microfone e com sua voz rouca se dirige a centenas de pessoas que esperavam por aquele momento: “Eu prometi, eu cumpro: a Catende vai moer, a Catende continua e o emprego de vocês também!”


Aquela gente humilde e suada, espremida próxima ao caminhão, quase não se continha de ansiedade e excitação. Era homem, mulher, menino, chorando, sorrindo, todos movidos pela esperança de dias melhores. Falou-se até que um antigo foguista da usina, já trôpego por conta da cachaça ao longo da tarde, teria dito em alto e bom tom: “Pode falar quem quiser, mas quando ‘Pai Arraia′ é governador, chove mais por aqui.” Ai de quem duvidasse disso!


Na euforia daquele momento faria todo o sentido reler o poema do pernambucano Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira (1895-1965), que narrou, na metade do século passado, uma viagem de trem de Maceió para Catende, ao som do sino, do apito e das rodas de ferro sobre os trilhos, falando de quem fica, do que fica e da vontade de chegar.


Três anos depois, em 1999, o BB, sem nenhum desgaste com o governo estadual, conseguiu renunciar ao cargo de representante do síndico da massa falida, com todos os seus atos sendo aprovados, com louvor, pelo juiz de falências. A Usina Catende, então, passou a ser administrada pela Cooperativa Harmonia, formada por ex-empregados.


Estabeleceu-se nos anos seguintes o maior projeto de autogestão e economia solidária da América Latina - nada menos que 4 mil famílias foram assentadas em 26 mil hectares de terras no denominado Assentamento Coletivo Governador Miguel Arraes.


O processo de falência, envolvendo apenas o que restou do parque industrial, arrastou-se por mais alguns anos, até 2018. Máquinas e veículos acabaram sucateados e a cada leilão frustrado, houve sensível desvalorização dos bens da massa falida. No final, apurou-se menos de 1% do montante da dívida atualizada.


E a Usina Catende foi varrida do mapa, como eu desconfiava, mas continua sobrevivendo a maioria dos trabalhadores rurais, como queria o governador. Para Aristóteles, “a politica não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça”. Miguel Arraes transformou-se em mito porque pensava assim.



Mitos também vacilam

Em maio de 1997, naquele cipoal de problemas em que se debatia a agroindústria canavieira em Pernambuco, no final dos anos 90, foi feito um acordo inédito na Zona da Mata Sul, envolvendo Banco do Brasil, Ministério de Política Fundiária, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Usina Central Barreiros S.A. e Cia. Açucareira Santo André do Rio Una. O desfecho, porém, poderia ter sido bem melhor.

As duas usinas do Grupo Othon Bezerra de Melo eram responsáveis por dívidas atrasadas no montante de R$ 16 milhões e, depois de longa conversa, toparam pagar a conta cedendo sete mil hectares de terras, a maior parte com canaviais desde 1885, ano da fundação da Central Barreiros, ou, quem sabe, desde a época da Carta de Doação da capitania de Pernambuco, assinada em 1534 por D. João III, em favor do capitão donatário Duarte Coelho, que se destacara nas campanhas lusitanas na Índia.

Cinco mil hectares seriam repassados para o Ministério de Política Fundiária – que compensaria o banco com Títulos da Dívida Agrária, TDA – para assentamento, de forma pacífica, de 145 famílias sem-terra. Essas famílias, sob orientação técnica do Incra, passariam a explorar lavouras alternativas à monocultura da cana-de-açúcar. E os dois mil hectares restantes, localizados em áreas urbanas, seriam loteados para venda em condições normais de mercado.

Para fechar o acordo, o grupo Othon ainda exigiu novo crédito à “Santo André do Rio Una” porque, sendo mais moderna e melhor localizada, teria maiores chances de recuperação do que a antiga “Central Barreiros”. Buscaria, assim, reduzir de tamanho, ganhar eficiência operacional, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E não foi difícil convencer a diretoria do BB de que o negócio era vantajoso para todas as partes. O financiamento foi então aprovado, mas limitado a 10% do montante que seria recebido, em títulos, do Governo Federal.

Embora o setor açucareiro estivesse cada vez mais decadente e os usineiros não fossem mais a expressão da elite empresarial dos tempos de “Casa Grande & Senzala”, sabíamos que mexer naquela estrutura fundiária teria seus riscos. Cogitava-se, pela primeira vez, conjugar reforma agrária em larga escala com efetiva assistência técnica e diversificação de lavouras na Zona da Mata, para que o estado superasse sua mais grave crise financeira na história. Por isso, assim como os dirigentes do grupo Othon e do BB, o então ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, considerou o acordo  “um marco histórico”

Quem discordou e nem foi à solenidade de assinatura do acordo foi o governador Miguel Arraes, alegando, no dia do evento, que "o fato principal não é a reforma agrária, mas o saneamento das usinas". Disse ainda ser contra a posição do BB, porque o acordo seria "meramente financeiro e parcial, por não envolver as dívidas com o Estado de Pernambuco". 


Todo ser humano um dia acorda indisposto, chateado, e acaba tomando decisões que normalmente não tomaria. O mal humor matinal, reflexo de noites mal dormidas, passa. Mas algumas decisões impactam para sempre a vida de muita gente.

Penso que o governador naquela manhã não percebeu - ou não foi bem assessorado nesse sentido - que a única chance do estado receber seus créditos seria manter “viva” uma usina daquele grupo econômico, para quem o acordo era caso típico de “vão-se os anéis, mas que fiquem os dedos”. Ou talvez não visse com bons olhos o protagonismo no assunto de Raul Jungmann, político pernambucano de origem socialista que ocupava com relativo destaque, nos anos FHC, ministério-chave para o sucesso do negócio.

O processo evoluiu no que foi possível entre o banco, o ministério, o Incra e as usinas, mas, sem o apoio do governo estadual na largada, não teve a velocidade nem a convergência de interesses que aceleram transformações sociais num piscar de olhos. E as duas usinas acabaram indo à falência, anos depois, engolidas pela crise que fechou as portas de várias delas.

Depois de mais 20 anos, vejo esta notícia que me fez relembrar o caso:

"Incra em Pernambuco entrega primeiros títulos definitivos de 2018 a assentados

A Superintendência Regional do Incra em Pernambuco (Incra/PE), sediada em Recife, entregou... os primeiros títulos definitivos deste ano a beneficiários da reforma agrária. No total, 60 documentos foram concedidos a moradores dos assentamentos Baeté, no município de Barreiros, e Campinas, em São José da Coroa Grande, ambos localizados na Zona da Mata Sul do estado.
Com os chamados títulos de domínio em mãos, as famílias passam a ser proprietárias das terras e podem acessar linhas de crédito mais robustas que permitam incrementar a produção (...)
(...) Saulo José da Silva foi um dos contemplados com o título de domínio. ‘É uma alegria muito grande poder dizer agora que sou dono de parte das terras onde eu nasci e me criei’, disse o assentado, que reside no Engenho Campinas, antiga Usina Central Barreiros.”

Quem leu meu último post (O mito Miguel Arraes) pode ter ficado com a impressão de que figuras lendárias são infalíveis e acertam sempre. Todos nós, seres humanos de carne e osso, acertamos e erramos todos os dias. "Só os médicos são profissionais de sorte. Seus acertos brilham ao sol. Seus erros, a terra cobre" (Molière)


Doidice de menino


Toda vez que perguntei a uma criança o que ela gostaria de ser quando crescesse, quase sempre ouvi respostas parecidas: advogado, médica, engenheiro, professora, policial. Natural que fosse assim. Afinal, são atividades ainda com certo glamour por envolver doses de heroísmo, vida e morte, justiça e liberdade, ensino e aprendizagem. Mereceram até grandes filmes como “A Sociedade dos Poetas Mortos”, “Patch Adams - O Amor é Contagioso”, ”A Ponte do Rio Kwai”, “Tempo de Despertar”, “12 Homens e uma Sentença”, “Cabo do Medo”...

Quando alguém dizia que gostaria de ser bancário, eu desconfiava: a bem da verdade, queria ser como o pai, o tio ou o primo. Virou profissão tão sem graça que está em processo de extinção e até hoje nem novela de TV foi feita tendo bancário como protagonista. Claro, não estou falando do mercado financeiro em si, que inspirou os ótimos “Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme” e “O Lobo de Wall Street”.



Afora meus primeiros anos de vida, quando disse a minha mãe que seria vaqueiro - até hoje, não posso negar, gosto de cheiro de curral, de capim molhado, de ouvir aboio e mugido de bezerro -, coloquei na cabeça desde cedo que iria trabalhar no Banco do Brasil. Não porque nasci para ser bancário, mas porque queria fazer o que fazia meu pai: receber gente que precisava guardar dinheiro no banco ou tomar empréstimos, escrever cartas com máquina de datilografia, carimbar e assinar papéis com caneta tinteiro Parker 51, tudo isso numa sala simples com mesa de trabalho, cadeira, arquivo com gavetas, ventilador e lixeira.


Mais tarde, quando a fome apertasse, iria para casa encontrar minha família  e almoçar bife “marinheiro” com arroz, feijão e farofa. Depois, cochilaria uns 20 minutos antes do segundo turno. Na boca da noite, ao retornar de vez, acharia graça vendo meus filhos disputarem o “direito” de trazer minhas sandálias, antes de lhes contar histórias de “O Mundo da Criança”. Todos dormiriam felizes, de banho tomado e barriga cheia, protegidos das almas penadas por mosquiteiros, lençóis cheirosos e pelos poderes do Sagrado Coração de Jesus da parede da sala de jantar.


Sei que mais parece doidice de menino   - bem que meus avós diziam “esse menino é cheio de marmota!” -, mas lembro do tempo em que resolvi ser bancário toda vez que releio o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade.


“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.”

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Manias de uma paixão


O grande Graciliano Ramos (1892 – 1953) pisou na bola em sua crônica “Traços a esmo”, de 1921, publicada em “O Índio”, jornal do Agreste alagoano, ao profetizar: “... O futebol é uma moda fugaz; vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha que não durará um mês...”

Monstros sagrados que surgiram por aqui na segunda metade do século passado – Pelé, Garrincha, Didi, Tostão, Carlos Alberto, Gérson, Rivellino, Ademir da Guia, Dirceu Lopes, Zico e outros – destruíram sem dó a profecia de Mestre Graça e me fizeram até sonhar ser como Roberto Dinamite, maior artilheiro da história do Vasco da Gama. Mas uma miopia acentuada, o início do curso científico (2º grau do ensino secundário) e o primeiro emprego, aos 16 anos, cuidaram de sepultar na origem o meu delírio. 

Minha cabeça, no entanto, já havia sido feita pelas transmissões esportivas da "Rádio Globo", da TV Bandeirantes e TV Educativa, e pelas matérias da revista "Placar" e do "Jornal dos Sports". O futebol – diria o poeta – era meu vício desde o início, meu bálsamo benigno, paixão e carnaval, meu zen, meu bem, meu mal.

Dos 10 anos de idade em diante, quase todo dia curtia rachas (peladas, babas) em campinhos de terra batida, gramados, quadras de cimento ou na areia das praias da Avenida ou de Paripueira, em Alagoas, até o anoitecer. E ainda cuidava com zelo e carinho de meu "bicho de estimação": um rádio “Phillips” com que seguia o CSA, em minha “aldeia”; e o Vasco, no resto do mundo. 

Mesmo depois de casado, com filhos para criar, permanecia horas em transe quase hipnótico ouvindo rádio, vendo TV ou lendo jornais e revistas, quando não estava no meio do mundo jogando bola com os amigos. Longe do que pensava Mestre Graça, comigo essa paixão sem limites por futebol nunca foi fogo de palha.

Diferente de mim, nada fazia com que minha mulher relaxasse e se desligasse totalmente do que estava acontecendo com o resto de nossa família. Só sossegava quando dormia ou alimentava nossos filhos. Mas até nessa hora era capaz de olhar o que estava escrito na palma da mão e lembrar que precisava estudar para uma prova, aguar o jardim, concluir um laudo no trabalho ou ir ao supermercado.

Aprendi há muito tempo que não existe nada nesse mundo que consiga fazê-la se concentrar numa única coisa. Se está com os filhos, pensa no marido; se está com o marido, pensa nos netos, e sempre com algum remorso, claro. Tudo me leva a crer que já nasceu com o chip da culpa instalado no cérebro.

Quando trabalhava fora, preferia estar viajando; se ficava em casa, tinha acessos nostálgicos relembrando os bons tempos em que, àquela hora, poderia estar tomando uma caipirosca com polvo ao vinagrete na Praia de Ipioca, em Maceió, a negociar com o sol o bronzeamento com o mínimo de manchas a serem eliminadas pelo dermatologista.

Isso acontece porque a imaginação feminina é bem mais fértil do que a de qualquer marmanjo. A maioria das mulheres é inquieta e falante. Não consegue jamais ficar horas vendo alguns bípedes esbaforidos a correrem atrás de uma bola, esgoelando-se em palavrões, a trocarem pontapés para, no fim do racha, discutirem sobre o que poderia ter acontecido ou não.

Deve ser difícil para qualquer mulher compreender como alguém consegue criar teias de aranha nos sovacos diante de uma TV, principalmente depois do apito final de um jogo, a ouvir desculpas esfarrapadas dos perdedores e ver a arrogância desmedida dos vencedores. Já não perco meu tempo com isso, mas ainda me flagro lendo o que disseram os "experts" em engenharia de obras feitas.

Fato é que, apesar de conformada com minhas manias, Magdala, minha mulher, nunca engoliu me ver deitado na sala, com um punhado de pipocas na mão e os olhos na tela, sacrificando nossas tardes de domingo. Tanto mais porque já não contava comigo nas noites de terça e quinta-feira, além das tardes de sábado, dedicadas aos rachas até o pôr do sol.

Mesmo depois de deixar as peladas há mais de 20 anos, ela insiste em dizer que para mim nada existe a não ser o futebol em suas variadas nuances. Chega a dizer que se houver plantão do JN dando conta de que há tsunami se formando no Atlântico, ou que vem aí um terremoto de oito graus na escala Richter, com epicentro no quintal de nossa casa, é provável que eu nada perceba se estiver vendo meu time jogar.

É capaz de jurar que se o telefone tocar e for minha mãe, eu lhe pedirei: "veja o que está acontecendo ou diz pra ligar mais tarde." Não passará pela minha cabeça, lógico, que minha mãe possa estar com um pico de pressão ou uma crise de labirintite, pelo menos antes do jogo acabar.

E se por acaso, só de brincadeira comigo, resolver fazer um teste e passar na frente da TV, diz que, no mínimo, correrá o risco de ouvir algo indelicado como: “Minha filha, saia da frente senão dá azar... Desse jeito meu goleiro vai acabar sofrendo um gol”. 

Exageros à parte, melhorei bastante. Ela também. Talvez até peça daqui a pouco a um de nossos netos para lhe explicar o que é “jogar sem a bola”, “cruzar no segundo pau”, “acertar chute de três dedos” ou "fazer gol do meio da rua". Pode até passar a gostar de ler Armando Nogueira (1927 – 2010): “No futebol, matar a bola é um ato de amor”.

Depois de quase meio século de convivência, ela sabe que desfruta de cadeira cativa com estofo de pena de ganso em "meu estádio". Sabe também que, a esta altura do campeonato, no jogo da vida o placar é o que menos importa: 1 a 0, duas vezes por mês, é goleada. Sem direito a replay.