quarta-feira, 30 de março de 2022

Batuque dobrado

Esta semana revi o documentário “Pelé”, dirigido pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas (disponível na plataforma Netflix), mesmo sabendo que não traz novidades sobre a carreira do Rei do Futebol. 

Explicação para a ausência de fatos inéditos: embora o “monstro” tenha emergido, nos confins da Via Láctea, na metade do século passado, quando a televisão ainda engatinhava entre nós, a sua trajetória foi fartamente documentada com a criação do videoteipe nos anos 1960. Seus feitos mereceram ampla cobertura jornalística e grande parte está no YouTube


Como não existe lenda sem mistério, resta inédito o que é considerado, pelo próprio autor, seu gol mais espetacular, na vitória do Santos por 4 a 0, diante do Juventus-SP, no dia 2 de agosto de 1959. Sobrevive apenas na memória de poucas testemunhas e em nossa imaginação.


Apesar do risco inerente à biografia de pessoas vivas – o passado pode mudar a qualquer momento –, vale a pena rever a saga de um mito em carne, nervos e ossos, já machucado pela brutalidade do tempo, preso ao andador ou à cadeira de rodas, sem o brilho de antes nos olhos. 



Contraste tocante para aquele cujas condições atléticas transcendiam as exigências do esporte, isso mexe com quem o viu gingando, correndo, saltando, sorrindo, marcando gols e mais gols. Tanto mais quando o herói entra em cena batucando um dobrado numa caixa de engraxate, a despertar dentro de si a criança que ajudava o pai no provimento da casa, antes de transformar-se num cidadão cosmopolita, conhecido do Afeganistão ao Zimbábue.   


O documentário explora algo que Pelé sempre relutou em fazer: opinar sobre a “redentora”. Não mente quando diz que sua vida continuou a mesma depois do golpe militar de 1964. Os produtores até tentam compará-lo ao boxeador Muhammad Ali, que na mesma época bateu pesado no governo norte-americano, por conta da Guerra do Vietnã, como se o ídolo devesse pedir perdão aos brasileiros por não ter agido da mesma forma contra a ditadura militar. Não fazem ideia, óbvio, do que lhe poderia acontecer.


Os contextos de liberdade de expressão em que viviam Pelé e Ali eram bem distintos. Quem agiria de outro modo se tivesse a mesma origem, a mesma trajetória e fosse tido como um semideus em sua aldeia? Seus críticos, no entanto, gostariam de ter visto somente gestos inatacáveis. 

 


É dolorido, sim, para muitas famílias, rever o lendário jogador abraçando o general Médici, após a conquista do tricampeonato no México, em 1970. Na época, os militares sabiam que a imagem do Rei seria impagável para projetar 
slogans ufanistas do tipo: “Brasil: ame-o ou deixe-o” ou “Este é um país que vai para frente!”.

 

Os “deslizes”, se houve, relacionados a questões políticas e pessoais (por exemplo, a paternidade não reconhecida de Sandra Regina Machado, cujos traços dispensavam testes genéticos), não diminuem o tamanho do atleta que alcançou nível incomparável, apesar dos vacilos humanos, queiram ou não seus críticos.  

 


Após o fracasso da seleção na Copa de 1966, na Inglaterra, Pelé declarou que nunca mais participaria de um Mundial. O documentário sugere que teria mudado de ideia por causa de pressões dos quartéis. Nada mais falso e injusto! Cineastas também são humanos e vacilam. Na cabeça do Rei, além da coroa, ainda pesavam o vexame da desclassificação e o medo (a mais elementar das sensações) de novo fracasso.  

 

Mas tinha apenas 25 anos. Era natural que disputasse pelo menos a Copa seguinte, independentemente da vontade dos quartéis. A vitória épica na Copa de 1970, portanto, se deve a ele e a um timaço de coadjuvantes (jogadores e comissão técnica) jamais visto na história do futebol. Nunca ao esquadrão verde-oliva, que tinha outras preocupações na alça de mira.


De lá pra cá, a coisa piorou bastante na aldeia. Hoje, o individualismo, a mentira e a vaidade saltam aos olhos em todos os quadrantes da cena nacional, inclusive no futebol, aqui por conta da overdose de dinheiro, para dizer o mínimo, de procedência duvidosa. 

 

Não se sabe se o jogador que está na vitrine, atuando como titular de um time, é aquele que possui o empresário mais influente ou o atleta mais talentoso, mas que se recusa a jogar esse jogo. E isso contamina o ar até nas categorias de base, onde pequenos aspirantes à fama e à fortuna passam a inalar desde cedo dessa imundície. 

  

Para alguns pavões misteriosos, com seus cortes bizarros de cabelos, barbas e sobrancelhas, brincos, piercings e tatuagens até sobre a última vértebra da coluna dorsal, ter um número expressivo de seguidores e de curtidas em posts nas redes sociais é mais importante que um gol de bicicleta no minuto final de uma partida, ou servir de exemplo para uma criança com um par de chuteiras nos pés e a cabeça nas nuvens. 

 


Por isso, bateu uma vontade danada de rever o documentário, em especial o gol do moleque chorão, aos 17 anos, na final da Copa do Mundo contra a Suécia, em 1958: ele recebe a bola pelo alto, amortece no peito, dá um chapéu no zagueiro, toca por baixo do goleiro e corre para receber o abraço dos parceiros. Para espanto do resto do mundo.

Parece fácil, como batucar um dobrado numa caixa de engraxate. A lição sabemos de cor, mas quem disse que aprendemos? 


quarta-feira, 23 de março de 2022

Ela nunca soube dele

Circulou na internet, outro dia, a notícia de que o único hospital público da cidadezinha italiana de Catanzaro descobriu que um de seus funcionários faltava ao trabalho havia 15 anos. Durante o período, continuou constando na folha de pagamento, com salário integral. Parou de comparecer logo após ser contratado e teria recebido nada menos que 530 mil euros, cerca de 3 milhões de reais. 

O nome não foi revelado, mas o sujeito acabou acusado de fraude, extorsão e abuso de poder. Ainda em 2005, ele teria ameaçado o chefe para que não preenchesse o relatório de avaliação e disciplina de forma desfavorável. E depois que o chefe se aposentou, nem o sucessor nem o RH notaram a ausência.

  

O caso italiano me remeteu ao que acontecia nas catedrais bancárias que havia nas grandes cidades brasileiras, onde centenas de pessoas se espalhavam por vários andares, cada qual com sua sacola de interrogações sobre a vida.

 

Conta-se que uma sucuri de oito metros se escondeu no almoxarifado de um desses templos e se mantinha viva porque, de três em três dias, esmagava e comia uma pessoa. Como eram muitas, ninguém dava pela falta até o dia em que caiu na besteira de escolher o rapaz que servia cafezinho – esse, sim, imprescindível à rotina dos trabalhos. O gerente e dois chefes já haviam sido degustados, sem que ninguém se incomodasse com ela. 

 

Lenda urbana, óbvio, mas quando trabalhei na agência do Banco do Brasil em Maceió, na metade dos anos 1970, conheci Gabo (vou chamá-lo assim porque, se ainda estivesse entre nós, de rosto lembraria o rapper Gabriel, o Pensador), um caboclo sorridente com aparência de indiano, olhos apertados, barba rala e bucho de lâmpada. Parecia ter o dom da invisibilidade: ninguém notava, mas ele não perdia uma estreia no Cine São Luiz, isso em pleno horário do expediente.

 

No já distante 1974 em que a nação ansiava por liberdade – o ano anterior é reconhecido como o de maior repressão do regime militar –, fazia tremendo sucesso um produto genuinamente nacional: a pornochanchada, que derivou da chanchada, gênero cinematográfico onde predominava um humor inocente e popular.



As chanchadas apareceram entre os anos 1940 e 1960, revelando nomes como Adelaide Chiozzo, Anselmo Duarte, Emilinha Borba, Grande Otelo, Oscarito e Zé Trindade. Já as pornochanchadas vieram nas décadas de 1960 e 1970, destacando-se Vera Fischer, Otávio Augusto, Sonia Braga, Jorge Dória, Selma Egrei, entre outros.

 

Com roteiros rasos, focados em situações eróticas, maliciosas, algumas cenas de nudez nada explícitas, os donos de cinema dispunham de material abundante (e bota abundante nisso!) para lotar as salas por várias semanas. 

 

Tudo caminhava bem para eles até que os ventos mudaram com um surto de locadoras de vídeo e com a profusão de novos cultos pentecostais, envolvendo congregações que tomaram de assalto centenas de prédios na bacia das almas da recessão econômica no final dos anos 1980.

 

Mas voltemos a Gabo. Ao entrar em cartaz “Anjo Loiro”, protagonizado pela atriz Vera Fischer, ele escapuliu logo após o almoço na própria agência e foi assistir à primeira sessão. E como gostou! Tanto que, antes de voltar à labuta, resolveu comemorar com algumas tulipas no Bar do Chope (quase vizinho ao banco), por certo lembrando das cenas mais picantes.

 

Naquela tarde, apesar do calor, o tempo passou ligeiro. Quando deu por si, alguns colegas já tomavam o rumo de casa. Então pediu a conta, acendeu outro cigarro, levantou-se e saiu trôpego em direção ao ponto de ônibus na praça da Catedral. Não sem antes passar novamente defronte ao Cine São Luiz. Precisava rever o cartaz do filme. 



Gabo chegou cedo ao trabalho na manhã seguinte e assinou o ponto como se nada tivesse acontecido. E nada aconteceu mesmo, exceto a ressaca vulcânica cobrando um pote de água gelada, além da constatação de sua absoluta insignificância no pedaço. Sua ausência na tarde anterior passara despercebida até pelos comparsas de copo. 

 

Um deles, entretanto, que padecia do mesmo grau de invisibilidade corporativa, sensibilizado com a tristeza de Gabo, ofereceu café com pão e o ombro. E ouviu seus “ais”:

– Tô pouco ligando para o que pensam! – exclamou Gabo, conferindo de rabo de olho o entorno.

– Não entendi... 

– Duro é ela nem saber que existo… 

– De quem você tá falando?

– Ai, ai… – suspirou, inconformado – Se Verinha soubesse e topasse, teria casa, comida, roupa lavada, plano de saúde e pensão... Pro resto da vida.

– O que você sente, você atrai. O que você acredita, torna-se realidade, bicho! – filosofou o colega, admirador do astrólogo e radialista Omar Cardoso, para quem todos os dias, sob todos os pontos de vista, se dizia cada vez melhor.

 

Gabo, não. Durou pouco e cada vez pior. E sua musa, imagino, nunca soube dele. 

quarta-feira, 16 de março de 2022

Choro e ranger de dentes

Do jeito que as coisas andam, em breve assistiremos  em bares, telas e lares, a animais supostamente racionais se atacando a mordidas, entre grunhidos e rosnados. Isso, óbvio, caso prevaleça o bom senso: não se opte por algo mais natural aos seres humanos como o emprego de armas (brancas ou de fogo) para aplainar diferenças de opinião, inclusive entre membros de uma mesma família.

 


Não será novidade para quem, como nós, vimos o
ex-atleta corintiano Emerson Sheik quase arrancar um pedaço da mão do argentino Matías Caruzzo, do Boca Juniors, na final da Copa Libertadores de 2012, no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Ou o zagueiro italiano Giorgio Chiellini, sentado no gramado da arena das Dunas, em Natal, urrando de dor com o ombro cravejado pelos dentes do centroavante uruguaio Luis Suárez, na fase de grupos da Copa do Mundo de 2014. Ou, mais remotamente, o ex-pugilista norte-americano Evander Holyfield, em 1997, na arena MGM, em Las Vegas, nos Estados Unidos, espumando de raiva ao ser abocanhado por Mike Tyson, que lhe rasgou um pedaço da orelha e cuspiu no chão, o que só aumentou a dor da ofensa. 


Nos três episódios, um detalhe em comum me chamou a atenção: nenhum dos canibais utilizou um pedaço de fio dental ou um palito para limpeza da arcada dentária, higiene mínima antes da próxima investida. Nem mesmo aquela escovinha básica com as cerdas desgastadas e nojentas.

 

Mordeduras humanas são mais frequentes do que se imagina. Andei lendo sobre o assunto e descobri que ocupam a 3ª posição entre as dentadas de mamíferos mais comuns, atrás apenas das ocorrências envolvendo cães e gatos. Os bichos (inclusive o da Receita Federal que nos morde sem dó todo santo mês), entre latidos e miados, têm a seu favor o fato de não possuírem repertório de palavras e gestos para aparar as arestas numa discussão. Desconfio, aliás, de que Lobão (não o cantor e compositor de “Me chama”, mas um poodle que havia lá em casa) se fazia de surdo só para não ter que me trazer jornais, revistas ou água.

 

Em crianças, ao que apurei, os estragos causados pelas dentadas são mais corriqueiros nos braços e nas mãos, no tronco ou no rosto. Já em adultos e adolescentes, nos membros superiores, principalmente quando do revide a murros ou tapas contra a boca. 

 

Em adultos, cerca de 15% das lesões por mordidas curiosamente acontecem durante as estripulias sexuais. Os experts não deixam claro quais seriam as partes mais afetadas nem se isso estaria ligado à fúria ou ao prazer dos envolvidos. Se bem que, tirante aquelas pessoas que nunca experimentaram da fruta ou não sabem do que estou falando, todos fazem ideia de como essas coisas acontecem.

 

Descobri que os molares do ser humano podem apertar mais de 100 kgf (quilograma-força). Superam inclusive o orangotango, mas ficam atrás do chimpanzé e do gorila, por exemplo. Não são as mordidas mais perigosas e temidas do reino animal, porém são capazes de causar lesões graves e amputações em dedos, nariz, lábios, orelhas e até órgãos genitais, onde a pele é mais fina e sensível, por supuesto

 

Pior que a boca do agressor abriga uma vasta comunidade microbiana, com muitas bactérias que se fixam na mucosa, na língua, na gengiva e nos próprios dentes, entre as quais Staphylococcus, Streptococcus pneumoniae, Treponema pallidum, etc. A depender da “pegada”, quando algum desses micro-organismos cai na corrente sanguínea da vítima, é aí que o bicho pega. Literalmente.

 

Pois bem. Se a mordida do ser humano, que possui 32 dentes (mais que cão ou gato), produzir mais que um rasgo superficial, atingindo articulações e tendões, há risco de causar graves problemas, como hepatite, sífilis, tétano ou tuberculose. O bafo-de-onça aqui é o de menos! 


Podem argumentar que estou sendo exagerado, paranóico, mas, insisto, do jeito que as coisas andam... A língua, por mais afiada que seja, corta bem menos que os dentes. E a forma como certos homens públicos (e seus seguidores) se olham ou se referem aos adversários me leva a crer que estamos prestes a assistir a milhares de mordidas furiosas, com direito a choro e ranger de dentes na fornalha eleitoral que vem aí.


O ser humano é tido como animal racional porque reflete e possui o dom da fala. É criado solto, sem coleira nem focinheira. Mesmo assim, vira e mexe morde o seu semelhante. E é mordendo que ele acaba revelando o animal que é. 

 


quarta-feira, 9 de março de 2022

O último ao cair da noite

Vem de longe a paixão pelo futebol, desde o vexame na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966.  Aos oito anos, passava férias no sítio onde viviam meus avós maternos, à margem do rio Paraíba, quando aprendi com um de meus tios a “ver” futebol ao pé do rádio. 


Ninguém imaginava que naquele 12 de julho de 1966, em Liverpool, berço dos Beatles, Pelé e Garrincha disputariam contra a Bulgária sua última partida, juntos, pela Seleção brasileira. Uma história curta e intensa de 16 jogos, com duas conquistas mundiais. E se os deuses da bola não reservaram melhor sorte para o Brasil, foram justos com os dois maiores gênios da bola forjados nos campinhos de terra batida do interior.

 


Pelé abriu o placar aos 15 minutos do primeiro tempo e Garrincha ampliou aos 18 minutos da etapa final, ambos em cobrança de falta. Mais tarde, pude rever nas páginas da revista Manchete o que a imaginação me antecipara pelo rádio.

 

Três dias depois o rei não pôde enfrentar a Hungria, recuperando-se dos pontapés sofridos na estreia. Sem ele, o Brasil foi derrotado por 3 a 1. Tentaria a classificação para a fase seguinte contra Portugal. Mas, com o craque de novo caçado em campo e nove alterações em relação à partida anterior, a Seleção perdeu pelo mesmo escore. 

 

Disseram que o fracasso teria sido castigo por causa da desorganização e da arrogância dos brasileiros (dirigentes, comissão técnica e atletas), convencidos de que eram os melhores e se repetiria o êxito dos mundiais anteriores, realizados na Suécia e no Chile. Engoli assim minha primeira frustração esportiva. Mesmo sem saber o que era “arrogância”, que me soava mais um desconforto na barriga. 

 

Quatro anos mais tarde, já em Alagoas, vi (pela TV) Pelé, Jairzinho, Gérson, Rivellino e Tostão encantarem o planeta com um futebol de outra galáxia. Aos 12 anos, a paixão revelava traços patológicos: obcecado até pelo cheiro de tinta da revista Placar, sabia de cor e salteado nome e sobrenome dos heróis que trouxeram do México, em 1970, a taça Jules Rimet. Mesmo sem saber da dor daqueles que sofriam com o sumiço por aqui de entes queridos.

 

Doze anos adiante, em 1982, o Brasil, que já havia conquistado três mundiais e se consolidara como principal potência no esporte mais popular do mundo, chegou à Espanha como favorito ao título, com um time excepcional (Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior). Mas, aos 24 anos, meus vizinhos tiveram que ouvir meia dúzia de palavrões felpudos quando da queda da Seleção diante da Itália. Castigo pelos erros individuais e, de novo, pela soberba coletiva.

 

Vi também pela TV, em 1994, o tetra de Romário, Bebeto, Dunga, Aldair e Taffarel. E, em 2002, os Ronaldos, Rivaldo e Roberto Carlos conquistarem o penta. Porém já não éramos os mesmos: nem a Seleção, nem eu, àquela altura aos 44 anos, com os filhos criados. A vida embrutece paixões, desconstrói castelos. Deixa acesa apenas a lamparina da esperança com dois dedos de querosene, luz opaca e oscilante, como no sítio de meus avós ao cair da noite.

 

Quase 20 anos depois da última conquista mundial relevante, outro dia ouvi que “a Seleção se distanciou do torcedor". Foi Neymar, 30 anos – idade com que Pelé sagrou-se tricampeão mundial. "Hoje, a Seleção não tem mais a mesma importância, não sei como chegamos a esse estado", disse ele no podcast Fenômenos, apresentado pelo streamer Gaulês e por Ronaldo, hoje dono do Cruzeiro de Belo Horizonte. 

 

Em sua longa adolescência, Neymar não sabe, mas pouca coisa me encanta (ou espanta!) na terra onde os últimos ex-presidentes da “dona” da Seleção (a CBF) perderam o cargo envolvidos em escândalos de corar certos políticos. Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero foram banidos por corrupção ativa e passiva. E Rogério Caboclo, por assédio moral e sexual. Talvez não tenha dado tempo de se igualar, na folha corrida, aos antecessores. 

 

Enquanto isso, a Premier League (Inglaterra), La Liga (Espanha), Bundesliga (Alemanha), Serie A (Itália) e Ligue 1 (França), brilham no topo das ligas de futebol mais organizadas e rentáveis do mundo, saboreando o crème de la crème, inclusive uma porção bem servida por expatriados brasileiros ainda crianças.

 

Faltam alguns meses para a Copa do Mundo Qatar – 2022. Não sou de rogar praga, mas penso que o Brasil nunca esteve tão próximo de repetir o fiasco ocorrido na Inglaterra, em 1966, voltando mais cedo para casa. O triunfo dos incapazes (ou desonestos) continua sendo apenas uma hipótese estatística. Ainda bem. 

 

Novo vexame pode ser o abano da brasa que ainda queima nos campinhos de periferia onde os times são escolhidos no “par-ou-ímpar”, não precisa árbitro e, pouco importa o placar parcial, ganha quem marca o gol da lua – o último ao cair da noite, o único que faz da guerra perdida a vitória arrebatadora. 

quarta-feira, 2 de março de 2022

Cabeças desocupadas

Meu vizinho outro dia apareceu na piscina do prédio com uma conversa esquisita que me deixou preocupado. Ele não é médico, mas é daqueles que adoram ler bula de remédios recém-lançados para encher o saco do farmacêutico da esquina, criticando o peso dos interesses econômicos na saúde pública. Coisa de cabeça desocupada.

 

Falava ele da natureza humana, que o homem (leia-se: a pessoa do sexo masculino, enquanto essa classificação fizer algum sentido) desde criança tem uma certa sensação de imortalidade. Passa boa parte da vida livre dos transtornos que a mulher sofre, o que o faz mais relaxado com a própria saúde. Com o tempo, porém, percebe que a coisa não é tão simples como ele imagina e passa a dar mais valor aos cuidados médicos preventivos.

 

O que mais mete medo no homem – prosseguia – são os problemas com a próstata, as disfunções sexuais e a decadência física, ressalvando que isso também mexe com a cabeça da mulher. Para meu vizinho, a mulher pauta a vida em função da beleza e o homem, da força e da virilidade. E quando surgem os primeiros sinais de fadiga do material corpóreo – fenômeno natural até no campo da Física –, ele constata que tem prazo de validade. 

 

Ao me ver atento ao que pregava, engoliu corda e passou a discorrer com fartura de detalhes sobre seus achados literários. Para ele, dos grandes temores do homem, o pior é o crescimento benigno da próstata, que ocorre praticamente com todos (até com os gorilas), exceto com os natimortos e os mentirosos. 

 

Após os 40 anos – enfatizava ele, já assumindo um certo tom pedagógico –, a danada da glândula aumenta de tamanho e pressiona o canal da uretra. Isso faz com que o sujeito comece a urinar várias vezes ao dia, a perder o foco numa reunião se estiver distante do banheiro e a levantar-se de madrugada uma ou duas vezes, comprometendo o sono e o humor no café da manhã. 

 

Mas garantiu que esse crescimento benigno é quase inevitável. Todos vão ter, se bem que apenas um terço acusará sintomas mais significativos, capazes de exigir suporte médico. Nesse caso, assegurou que existem remédios que desobstruem parcialmente a uretra e permitem urinar e viver melhor. E que só 5% dos homens necessitam de cirurgia para desobstruir a uretra. 

 

Ainda segundo meu vizinho desocupado e estudioso, o problema não tem origem claramente definida. Surge por conta de um desequilíbrio hormonal no homem maduro, quando as células do órgão se multiplicam desordenadamente. E não tem como prevenir, só remediar.

 

No final, praticamente nos obrigou – eu e meia dúzia de moradores do prédio, que prestava atenção ao relato – a rever os testamentos e procurar saber o custo de um jazigo, quando arrematou convicto: “todo homem que chegar aos 99 anos vai ter câncer de próstata”. 

 

Metade dos que estavam na mesa foi procurar o que fazer noutro lugar. A outra metade, encharcada de cerveja e caldinho de peixe, preferiu assistir pela TV da guarita da portaria aos requebros da inesquecível Clara Nunes, entoando “Morena de Angola”, em videoclipe de 40 anos atrás. 

 

Muitos ainda relutam em ir ao médico fazer exame de próstata e só vão quando a mulher os empurra. Conheço um médico, aliás, que me contou que até nisso o papel delas na vida dos homens é decisivo. Para o doutor, “quem tolerou bem 20 ou 25 anos e superou as encrencas da vida conjugal é um casal sólido e a mulher possui um senso de preservação da família bem mais firme que o do homem...” 

 


E complementou: “sempre falo a meus pacientes da existência de dois tratamentos: um que prolonga a existência dele, mas pode causar alguma desordem sexual. Outro, que cura menos, mas preserva mais. E quase todo homem balança antes de optar. A mulher nunca hesita. Prefere o que assegura um pouco mais de vida ao maridão, apesar do risco de sacrificar o mais barato dos prazeres. Nunca vi uma aconselhar o tratamento que dê menos chance de sobrevivência, desde que ele se mantenha duro na queda. Ela prefere preservar algo mais grandioso que construiu com ele…”

 

Pois bem. Se você quer saber por que a conversa com meu vizinho me deixou preocupado, sobretudo depois que a juntei com aquilo que havia me contado o tal médico, devo confessar que este texto é puramente ficcional. Esses personagens não existem.   

 

Ou talvez existam. Já não estou tão certo. Dúvida também é coisa de cabeça desocupada que não tem nada mais sério a fazer do que se deitar numa rede limpinha e cheirosa vendo o sol se pôr, sem pressa alguma de chegar aos 99 anos.