quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Sou, mas quem não é?

Ao ler crônicas como "Memória de minhas surras tristes", "Cocorotes" e "Asas cortadas no ninho", uma amiga leitora me escreveu alertando que devo ser portador de um tal Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

Recorri ao Google e descobri que esse bicho de três cabeças aparece na infância e persegue o sujeito por toda a vida, sob a  forma de desatenção, inquietude e impulsividade. Pega 5% das criancinhas e em mais da metade dos casos, embora mais brando, permanece até a velhice — o pior de todos os males, a nos tirar todos os prazeres exceto o apetite.

Li ainda que o TDAH em geral é associado a dificuldades na escola e nas relações com outras crianças, pais e professores. A molecada portadora é vista como: “com a cabeça no mundo da lua”,  “desastrado” (derruba tudo que tem nas mãos) ou “com motor de popa na bunda” (não param quietas um minuto sequer!). 

Quando adolescentes, podem ter dificuldades em se sujeitar a regras e limites. Mais tarde, já adultos, surgem com frequência problemas de desatenção para coisas do dia a dia e com a memória (são muito esquecidos). São também inquietos (só relaxam dormindo), mudam de um assunto para outro em questão de minutos e também são impulsivos (“sempre avançam o sinal”). 

A boa notícia é que esse transtorno não é considerado uma doença, por isso ninguém pode dizer que “tem cura”. Se bem que TDAH é citada como doença em vários sites na internet, que chegam a prometer “a cura”. Nessas horas a indústria farmacêutica não brinca em serviço em nenhuma parte do mundo.

Sei não... Sinceramente, não sei em que minha querida amiga leitora se baseia para supor uma coisa dessas a meu respeito. Logo eu, uma criança que se tivesse nascido com asas poderia ser confundida com um anjo.  Que se transformou num adulto respeitável, capaz de permanecer desde a adolescência na mesma empresa e com a mesma mulher. Há algo que não se encaixa naquilo que apurei em minhas pesquisas. 

Sei que minha mãe continua impulsiva para dizer o que bem entende em qualquer situação. Sei também que meus filhos, assim como eu, vivem deixando torneiras ligadas, lâmpadas acesas e perdendo chaves, documentos, carteiras porta-cédulas, celulares etc; e alguns netos não relaxam nem quando dormem bem agasalhados, de barriga cheia.

Há quem diga que a avó materna é quem transfere a maior parte da carga genética dentre todos os avós. E a genética pula uma geração. Por isso, muitas crianças não se parecem com seus pais, mas sim com seus avós. 

E essa herança não seria nem tanto no aspecto físico, mas, por exemplo, no tique nervoso, no jeito de se comportar, na ansiedade etc. No meu caso, tirando as sobrancelhas, em nada lembro minha saudosa avó, Dona Carmelita, Mãe de Jacaré, cujas cantigas de ninar nunca saíram dos meus ouvidos.

Se eu contar ninguém acredita, mas ainda luto bravamente contra a vontade de provocar meus netinhos, tal como fazia com meus irmãos menores, quando nem se sabia o que vinha a ser bullying. Resisto o quanto posso para que não se zanguem comigo e se queixem junto à advocacia-geral da união familiar: Magdala, a avó. Senão lá vem aquela conversa moída em meus ouvidos!

Dizem que a infância é a idade das interrogações; a juventude, a das afirmações; e a velhice, a das negações. Pensando bem, não posso negar, minha amiga leitora está coberta de razão. Devo ser portador de TDAH, mas quem não é?

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Parece que foi ontem, Robertão

Ao retornar à Bahia, em maio de 1999, na largada quis provocar os colegas ao recorrer à canção de Caetano Veloso quando me dirigi pela primeira vez a centenas de administradores do Banco do Brasil: "Existirmos... a que será que se destina?" Parece que foi ontem que assumi a superintendência estadual.

Jaime, executivo que viera da sede da empresa, em Brasília, prestigiar a cerimônia de posse, no final entregou-me uma folha de papel com breve comentário: “Excelente discurso. Emoção e razão”. Guardei no bolso sem perceber que havia algo a mais escrito no verso. Na hora em que eu falava, ele usara o mesmo papel para comentar com Robertão, seu parceiro de trabalho, o que lhe chamara à atenção na primeira fila do auditório: “Belas pernas!”

Robertão era terrível. Do alto de seus quase dois metros de altura, sempre bem vestido, cabelos aparados, qualquer mulher que passasse diante dele era vítima do seu olhar de lascívia e sedução. E ai de quem desse algum sinal de retorno, por menor que fosse. Jaime, sabendo disso, ainda atiçava o instinto predador da fera. 

Não demorou uma semana e minha mulher, Magdala, ao arrumar nosso guarda-roupas, encontrou no bolso do paletó que usei na posse a tal folha de papel. Cuidadosa e desconfiada a vida toda, quis na hora saber a quem pertenciam as “belas pernas”. Dias depois, ao encontrar conosco num evento, Robertão morria de rir ao confirmar a versão do fato que contei.  

De humor contagiante, inteligente, onde estivesse só se ouvia a voz dele a declamar poemas, cantar suas canções prediletas ou a narrar as mais insólitas aventuras em que se metera. Mas nunca deixou de reconhecer em Ana, mãe de seus filhos Rafael e Robertinho, uma espécie de santa, retrato da resiliência ao fazer-se de cega, surda e muda, para poder viver em paz. Era como Nara Leão a cantar Chico:

“Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa (...)


Parece que foi ontem. Em 1996, trabalhávamos no Nordeste, ele no Ceará e eu, em Pernambuco, e por duas ou três vezes viajamos juntos para a Capital Federal, para participar de reuniões com a diretoria da empresa. Se algo me dava a tal inveja do bem era ver de perto a recepção calorosa de Seu Pelópidas e de Dona Carmelita ao filho amado, aos beijos e abraços na área de desembarque do Aeroporto JK.

Dez anos depois, na última sexta-feira de setembro de 2006, Robertão já morava em Brasília quando o destino lhe cravou no peito uma flecha que mutilou seu coração. Aconteceu um choque entre duas aeronaves, uma delas da Gol, que fazia o voo 1907. Saíra de Manaus e deveria ter chegado em Brasília às seis da tarde. Não chegou. A Força Aérea Brasileira já deslocara helicópteros para buscas na região da Serra do Cachimbo, no sul do Pará, na Floresta Amazônica. 

Havia 154 pessoas a bordo, inclusive Rafael, 28 anos, graduado em Ciências da Computação, primogênito de Robertão. E a área de desembarque do Aeroporto JK, em Brasília, palco de tantas cenas explícitas de amor e carinho, nunca mais seria a mesma.

Naqueles dias de chumbo e profunda dor, por mais que amasse a vida  música e poesia no meio —, Robertão não conseguia ouvir Zizi Possi cantar Chico:

“(...) Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi (...)”  

Parece que foi ontem, Robertão, meu velho parceiro de tantas jornadas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Eu confesso. E você?

Para quem trabalhou por mais de quatro décadas numa mesma empresa — hoje em dia, algo visto como falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, não chega a ser tão difícil listar algumas figuras especiais que encontrou pelo caminho. Pensei nisso e logo me veio à cabeça uma dezena delas.

Lembrei da "Arrogante", que sempre fazia questão de encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só via os outros de cima para baixo e tinha sempre um sorriso de deboche para qualquer comentário mais simplório numa reunião.

Também recordei da "Bocão". Falava sem parar de si própria (o que já era péssimo) e dos outros (inaceitável). Mesmo porque quem se enfeitiça com o som da própria voz pode até parecer interessante por alguns minutos, mas soa ridículo daqui a pouco e insuportável meia hora depois. 

 "Curiosa" chegava cedo e antes mesmo do “bom dia” cuidava de remexer papéis em minha mesa de trabalho; em seguida, bisbilhotava a tela do computador em busca de alguma coisa, convicta de que fofoca vestida de informação lhe tornaria poderosa.

E o que dizer da "Franca"? Via-se acima do bem e do mal por ser sincera “demais” (sic) e orgulhava-se de falar tudo o que lhe vinha à cabeça despreocupada se machucava ou não aos outros com suas palavras duras e frias.

"Gaveta" empurrava tudo com a barriga para o dia seguinte ou para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Não se dava conta de que uma máquina lenta era até tolerável, mas um ser humano, nunca!

E a "Inconveniente" era capaz de interromper pelo menos uma reunião por semana, entrar na sala sem ser convidada, fazer dois ou três comentários fora do contexto, despertar alguma compaixão no começo e, logo depois, rejeição ampla, geral e irrestrita. 

Lembrei da "Medrosa"avessa a qualquer novidade porque valorizava o que “sempre deu certo”. Não queria saber de nada que provocasse algum distúrbio em sua insuportável rotina, mas se roía de inveja quando alguém ousava e se dava bem.

Tinha ainda a "Mouca". Muitas vezes não escutava nem aqueles que concordavam com seus argumentos. Esquecia de que mesmo sendo obrigada a filtrar bobagens, se não soubesse ouvir perderia por completo a capacidade de conviver com colegas de trabalho.

"Rígida" era cruel. Não sabia perdoar aos outros nem a si própria pelos erros que cometia, tampouco era capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceitava um “não” porque se achava determinada, perseverante. Nem por um minuto se enxergava teimosa ou chata.

Já a "Tediosa" era de morte! Se enxergava a rolha do vinho servido na última ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vivia pelos corredores a repetir piadas sem graça, rindo não se sabia de quê. 

E havia ainda a "Dissimulada", a "Mentirosa", a "Otimista", a "Pessimista"... Agora é fácil falar sobre elas com alguma pilhéria e a distância crítica que a maturidade permite. Se você me leu até aqui, é provável que tenha reconhecido muita gente que cruzou o seu caminho. Quem sabe até você mesmo, numa circunstancia qualquer. 

No palco de minha vida profissional, não posso negar, confesso que também usei essas máscaras. Como qualquer pessoa  —  exceto as perfeitas, que nunca as encontrei mas devem existir —, era mais uma naquele teatro absurdo e grotesco em que ora nos vestíamos de fantoches ou marionetes, ora de cordéis manipuladores.

Aos amigos e amigas que me aturaram por lealdade e respeito; e mesmo àqueles que me engoliram por conta das cadeiras em que sentei por acaso, confesso que cometi meus pecados e por isso mesmo lhes peço perdão. Peço ainda que rogai por todos nós aos céus  — de novo, afora os perfeitos — para que nunca mais necessitemos de máscaras para contracenar, por dinheiro nenhum nesse mundo! 

Depois que me aposentei, juro de mãos juntas que trouxe comigo apenas uma máscara que todo dia revejo no espelho, cada vez mais serena e desassombrada, com algumas rugas a lembrar as histórias que conto aqui. Enquanto as cortinas não fecham.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Zé de Brito


O velho José de Brito Jurema, quase um clone matuto e carrancudo do genial dramaturgo, palestrante e romancista paraibano Ariano Suassuna (1927 – 2014), desmontou de sua égua em frente à única agência bancária da cidade de Itabaiana-PB, dirigiu-se ao balcão de atendimento, chamou no canto um baixinho franzino que orientava alguns clientes e foi direto ao ponto:
— Vosmecê pode me dizer qual é sua intenção com minha filha?
— Calma, seu José, vamos conversar... — ponderou Agostinho, que, quatro anos mais tarde, se tornaria meu pai.
— Me disseram que vosmecê tá se enxerindo pro lado da menina. Ela só tem 16 anos, viu?
— Seu José, eu já iria mesmo procurar o senhor lá no sítio Jacaré para pedir a mão de Eudócia. Nós vamos nos casar assim que correrem os papéis no cartório.

Meu avô andava bravo com as conversas de comadres que ouvia no sítio "Jacaré", a oito léguas da cidade, dando conta de que sua filha, balconista numa loja de tecidos, namorava um bancário forasteiro (sete anos mais velho do que ela) que chegara havia pouco tempo para trabalhar com mais três amigos solteiros. 

Naquele dia, ordenhou suas duas vacas antes do sol nascer, bebeu uma caneca de leite quente direto das tetas e partiu disposto a tirar a limpo inclusive o boato de que o rapaz que arrodeava sua filha era casado.

Em 1954, pouco antes de mudar para a Paraíba, Agostinho se envolvera com uma moça em Caxias-MA, cujo cunhado, delegado de polícia, ao tomar conhecimento de que ele fora aprovado em concurso público para ingresso no Banco do Brasil, praticamente o obrigou a casar. Nem que o matrimônio se desse apenas diante do padre, para que sua cunhada não ficasse “na boca do povo”. 

Eu e meus irmãos mais velhos (Haydeé e Agostinho, filho) só soubemos desse episódio dali a 18 anos, em Maceió-AL, após a morte de nosso pai. Eudócia, nossa mãe, casada “de papel passado em cartório e tudo”, nos contou que
 poucas semanas depois de seu casamento apareceu em Itabaiana-PB uma mulher morena, bonita, dizendo a todo o mundo que Agostinho “já era dela”. 

Uma tia nossa, furiosa como uma gata parida quando tem cachorro por perto, de pavio curto feito seu pai Zé de Brito, procurou a moça na pensão em que se hospedara cuspindo maribondos:
— Desapareça daqui, sua cabrita, senão eu vou lhe dar uma surra com uma correia de máquina de costura que você nunca mais vai esquecer!

Mais tarde a moça foi vista embarcando na estação ferroviária. Disseram que partiu para os lados de Pernambuco, primeira escala antes de seguir no rumo da Bahia. E dela não mais se ouviu falar na Paraíba.

Embora meu avô fosse um pequeno ruralista inculto e tosco, de quem nunca se viu um gesto de carinho sequer para com os netos  exceto com meu irmão Agostinho Filho, no dizer dele o calmo “Neninha” —, é possível que eu tenha sido o único que lhe fez perder a paciência e sacar o cinturão de couro em duas oportunidades. 

Na primeira, meus pais haviam viajado até a capital paraibana, João Pessoa, deixando os filhos sob os cuidados dos avós. Curioso, enquanto meus tios escutavam pelo rádio a transmissão de Brasil e Bulgária, direto da Inglaterra, na abertura da Copa do Mundo 1966, achei de testar qual seria a reação de um peru caso inalasse a fumaça de um retalho de pano em chamas preso a uma vareta que amarrei em seu pescoço. 

Ao ver o "teste", o velho Zé de Brito correu atrás de mim em torno da casa-sede de taipa do sítio "Jacaré" na inútil tentativa de me dar uma surra. Quando sentou ofegante no alpendre, eu não parava de rir de sua falta de ar, certamente reflexo do cigarro de palha que vivia no canto da boca.

Na segunda vez, meu avô já estava sob tratamento médico em Patos-PB procurando resolver sérios problemas cárdio-pulmonares. No seu jeito naturalmente descortês, pediu água num dialeto estranho para quem, como eu, já lia e escrevia com alguma desenvoltura:
 Ô minino, vigie um caneco d’água mode matar minha sede!

De novo, caí na gargalhada e ele por pouco não me ensinou a respeitar os mais velhos da forma que aprendeu a educar seus filhos. Mas não aguentou a falta de ar, tossiu e voltou resmungando para a sua rede. Morreria alguns meses depois, já de volta ao “Jacaré”, torrão natal onde sempre viveu.

A vida seguiu e, com o passar do tempo, percebi que Dona Eudócia esquecera por completo que havia compartilhado com alguns filhos a história do casório no religioso por parte de meu pai. 

Eu já morava na Bahia, no começo dos anos 90, quando, em férias, ao visitá-la em Alagoas, provoquei:
— A senhora não vai acreditar no que me aconteceu! Outro dia fui procurado em Salvador, no trabalho, por uma mulher bonita, bronzeada, cabelos grisalhos, que jurava ser minha mãe. Tomei um susto danado! Não é que me achei parecido com ela...
— É mentira daquela sem-vergonha! Você é meu filho e nasceu um ano depois de Haydeé — atalhou Dona Eudócia. 
— Calma, mamãe, é gaiatice minha! Esqueceu que nos contou que papai era casado no religioso quando se mudou para a Paraíba?

Ela ainda quis pegar no cabo da vassoura para me botar pra correr da sala de jantar, mas, digamos assim, percebeu que tinha agora diante de si um pai de família sério, trabalhador, que já contribuía com sua parte para o nosso belo quadro social. 

Do moleque de antigamente restara apenas o que minha avó, Dona Carmelita, “Mãe de Jacaré”, questionava nos meus primeiros anos de vida: 
— Repare mesmo, Doça, esse menino é cheio de marmota! A quem ele puxou? 
— Não sei, só sei que ele é assim... — diria Chicó, personagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, se visse a cena.