Nem pense, meu caro, que só porque você falhou ontem à noite a vida perdeu o sentido. Como não vai morrer tão cedo, é bom ir se acostumando, pois haverá uma segunda vez, uma terceira... Ainda bem. Que sorte, hein?!
Ilustração: Umor |
Naquela época, as meninas hesitavam no último minuto, e eram trocadas por substitutas improváveis, como almofadas apaixonantes, travesseiros sedutores e a imaginação fértil na palma da mão (não havia joysticks!).
Agora, antes de mais nada, avalie se o problema não está escondido entre as suas orelhas, sob o que lhe resta de cabelos, talvez atormentado pela desilusão com os rumos da política partidária ou pelo lembrete de que o leão do imposto de renda não tem misericórdia e abocanha quase um terço de seus rendimentos.
Se não for isso, puxe uma conversa de gente grande com seu inseparável amigo careca, desdentado e feio, que anda cabisbaixo feito gato de armazém (dormindo sobre um saco enrugado). Entre vocês não existem temas tabus ou verdades inconfessáveis, e sim intimidade suficiente para tratar qualquer coisa sem frescuras. Afinal, juntos a partir dos primeiros tropeços da infância, compartilham segredos desde a chegada dos rascunhos de pentelhos.
Mas preste atenção! Não faça ameaças intimidatórias. Pressões exageradas podem levar a mal-entendidos catastróficos, abalando o respeito mútuo e, pior, comprometendo décadas de uma amizade inabalável. Seria o fim da picada – sem trocadilhos.
Chantagens na linha sugerida por Juca Chaves também podem não funcionar. Segundo ele, era comum fazer um comentário mais ou menos assim, quando o amigo dele pedia ajuda para alívio da bexiga (sua segunda função): “Veja como você pode contar comigo, na hora em que mais precisa!”
Lembra-se das incontáveis vezes em que seu amigo careca foi convocado para missões emergenciais, como aquelas escapadas heroicas enquanto sua sogra cochilava na cadeira-de-balanço, antes de chamar a filha pro sermão das dez da noite? Ou então das vezes em que ele estava ali, exausto, depois da pelada da tarde? À noite, era acionado, tendo que se levantar às pressas e, ereto, forte e viril, ir à luta de cabeça erguida.
Esses inesperados chamados ao dever, com o tempo, podem ter comprometido a prontidão do velho aliado de tantas batalhas, especialmente agora que, digamos, o combustível do tanque se aproxima da reserva e nenhum aditivo químico é garantia absoluta de autonomia de voo.
Você sabe, inclusive, que nem todas as pessoas que se identificam como machos possuem um amiguinho careca e vice-versa, e que as experiências de intimidade, desejo e insegurança são universais, transversais a diferentes identidades. Por isso, aceite meu conselho: conversem até ficarem roucos. Afinal, burros só trocam coices porque não sabem dialogar.
Já posso até antever a conversa:
– Quem diria que precisariam de mim tão cedo?! – exclamaria o careca, desdentado e feio – Ela e você ainda estavam naquela fase de amassos, beijos sem língua, nada de toque em partes íntimas…”
– Me pegou de surpresa... Mas não justifica! Você precisa estar alerta, pronto para entrar em ação. E por favor, nada de sair por aí reclamando que está sendo explorado em tarefas incompatíveis com suas funções, quando continua recebendo de mim um tratamento cinco estrelas!
– Tudo bem. É que nessas horas preciso de aquecimento, entende? Não daquele tipo que o treinador de futebol cobra de alguns atletas ainda no primeiro tempo, mesmo sabendo que não vai utilizá-los. Um carinho às vezes cai bem, como diz o poeta…
– Duro é que, do nada, ela achou de pronunciar aquela palavrinha cruel e me deixou numa sinuca de bico, de queixo caído. E quando falo de queixo caído, na verdade, não foi só ele que caiu.
– Qual palavrinha?
– “Bora”!
– Maldade... O “bora” realmente é uma armadilha capaz de causar ataques de nervos, de coração... Mas esqueça, já passou. Mude o canal...
– Pensando bem, foi melhor assim. Não era a pessoa ideal para juntarmos nossas tralhas e trilhos. É aí que a gente descobre…
– O que você descobriu?
– Ela exigiu luz acesa e espelhos pra conferir tintim por tintim. Queria preparar vídeos, virar musa do OnlyFans.
– Epa! Ficaríamos famosos, não?!
– Mas então me veio com aquele olhar esquisito, misterioso... Sei não! Parecia que se segurava pra não cair na gargalhada. E olhando pra você, meu amigo, que sempre esteve do meu lado, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza.
– É... Não ia dar certo mesmo. Amigo também é pra essas coisas.