Grandes espetáculos musicais vêm sendo cancelados ao redor do mundo por conta da pandemia que nos obriga a ficar em casa. Enquanto repensam como será a vida daqui para a frente, músicos e cantores promovem eventos virtuais online, o que ajuda na sanidade mental dos confinados, embora todos reconheçam que não é a mesma coisa.
Há 16 anos, de última hora caiu no colo da unidade em que eu trabalhava o desafio de organizar a festa de confraternização de Natal dos funcionários do Banco do Brasil que prestavam serviços na cidade-sede da empresa, no Distrito Federal.
Assustado com o tamanho da encomenda e com o prazo de entrega de uma semana, pedi a Antonio Fonseca e Karla Marino, parceiros de tantas jornadas, que aquecessem as turbinas e levantassem voo. Sabia que eram apenas bancários, sem experiência com eventos daquele porte, mas nunca refugariam sem pelo menos tentar superar o obstáculo.
Definiram, de cara, que a festa deveria acontecer numa quinta-feira. Seria mais fácil mobilizar recursos operacionais, evitando-se o final de semana. Também optaram por um local fechado com várias saídas de emergência, com boas circulação de ar, acústica e facilidade de acesso. O ginásio de esportes de Brasília atendia a essas premissas e fechou-se acordo nesse sentido com o Governo distrital.
O passo seguinte seria escolher uma atração que satisfizesse o público-alvo, estimado em cerca de 20 mil pessoas (funcionários e acompanhantes), a maioria entre 25 e 40 anos de idade. Chegaram a pensar em Paralamas ou Titãs, mas já corria dezembro e não havia agenda disponível. Optou-se então pela banda Skank, graças à boa vontade (e ao razoável cachê, óbvio!) de seu líder, o vocalista e guitarrista Samuel Rosa, que admitiu retardar as férias do grupo.
Há um ditado ídiche que diz: “o homem planeja e Deus ri”. No dia da festa, às três da tarde, chegou a notícia de que o alvará público que autorizava a realização do evento só permitiria a presença de 13 mil pessoas. Problema é que já se tinha a confirmação da presença de pelo menos 16 mil.
Àquela altura, como discriminar a entrada de quem já estava com as pulseiras de acesso? Que confraternização seria essa caso houvesse alguma forma de segregação? Juntos, assumimos o risco e apostamos na comunhão de almas da plateia — todos de uma mesma tribo, com hábitos e crenças estabelecidos através de valores, atitudes e expectativas mais ou menos compartilhados —, o que nos permitia supor que tudo acabaria bem.
Às dez da noite, com 18 mil pessoas a comer, beber, celebrar reencontros e cobrar a presença da banda no palco, foram fechados os portões do ginásio. Chovia muito lá fora e vários fãs do grupo na capital federal — sem convite, claro! —, atraídos pela multidão que se dirigia ao evento, tentaram invadir o local pelas portas de emergência, o que só foi contornado com a intervenção da polícia.
Skank era a banda mais ligada ao futebol no Brasil. Samuel Rosa e Henrique Portugal são cruzeirenses, Haroldo Ferretti e Lelo Zanetti, atleticanos. Divididos na paixão pela bola, os quatro, no entanto, sempre foram unidos na arte de encantar multidões através da música, trazendo a atmosfera dançante jamaicana para a tradição pop brasileira.
Nos bastidores, conversávamos amenidades, inclusive sobre a temporada mágica do Cruzeiro em 2003, vencedor do Campeonato Mineiro, do Brasileirão e também na Copa do Brasil, sob a liderança do treinador Vanderley Luxemburgo e do meio-campista Alex, um dos mais talentosos jogadores de sua geração.
Ao perceber minha apreensão com a ansiedade do público, Samuel Rosa tratou de piorar as coisas: “... A gente começa com duas ou três músicas mornas, depois pega fogo com Garota nacional, É uma partida de futebol, Jackie Tequila... Mas tudo acaba bem”. E em seguida o grupo subiu ao palco, quando o burburinho virou um demorado e ruidoso aplauso.
Quem veio, viu e viveu um momento singular. Milhares de pessoas encantadas numa noite de abraços, beijos, chuva, suor e cerveja, dançavam e pulavam como se estivessem comemorando o fim de um isolamento social qualquer.
Não houve praticamente nenhum incidente digno de nota. Apenas alguém mais excitado achou de passar a mão onde não devia, sem o devido consentimento, mas foi excluído do ginásio na mesma hora. À meia noite, a festa acabou e a multidão, entorpecida de prazer e morta de cansaço, voltava para casa.
Não houve praticamente nenhum incidente digno de nota. Apenas alguém mais excitado achou de passar a mão onde não devia, sem o devido consentimento, mas foi excluído do ginásio na mesma hora. À meia noite, a festa acabou e a multidão, entorpecida de prazer e morta de cansaço, voltava para casa.
No final do ano passado, a banda Skank anunciou que 2020 seria o último ano de atividade e que seus integrantes iriam em busca de novos projetos. O grupo, que tocava com a mesma formação desde 1991, garantiu que não houve nenhuma briga entre eles. Com escoriações, imagino.
Para celebrar três décadas de carreira e se despedir dos fãs, o grupo ainda faria a turnê “30 anos”, com 30 canções que fizeram sucesso, além de uma inédita. As datas e os locais dos shows chegaram a ser anunciados no começo deste ano. Não deu certo. De novo: “o homem planeja e Deus ri”.
Pude rever o Skank na penúltima sexta-feira do ano passado, no programa Conversa com Bial, da TV Globo. Numa de suas mais belas canções (clique e ouça), disseram: “O céu está no chão, o céu não cai do alto... é o claro, é a escuridão...” E arremataram: “... Só para conhecer o que a voz da vida vem dizer...”
E a voz da vida veio nos dizer que talvez nunca mais tenhamos outra noite como aquela, feita de abraços, beijos, chuva, suor e cerveja. Que a espécie humana continua sendo um projeto interessante, mas que não deu certo. Ainda.