quinta-feira, 30 de maio de 2019

Agora sou do tamanho do que vejo



De cócoras, fumando um cigarro de corda ao lado dos caçuás de inhame e mangas-espada que trouxe do Sítio Jacaré, na cangalha de sua besta, para vender na feira livre de Itabaiana, Tio Olívio apontou para a Matriz de Nossa Senhora da Conceição e comentou com sua irmã, Tia Creuza:
– Pode ter igual mas duvido que tenha igreja no mundo maior do que essa aí?

Ninguém traduziu de forma tão clara o que Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) quis dizer no poema "Da minha aldeia", no livro “O Guardador de Rebanhos”:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”

Meus tios praticamente nunca deixaram o Sítio Jacaré, no Agreste paraibano, onde seus bisavós, avós e pais nasceram e se criaram. Plantavam frutas, legumes e verduras; engordavam novilhas e porcos e criavam galinhas e guinés.

Vendiam aquilo que não consumiam para poder comprar o que não extraíam da terra: açúcar, café, sal, roupas. Lápis, cadernos e livros nunca foram prioridades.

A mesma história de vida de tanta gente. A maioria dos pequenos produtores rurais brasileiros habitavam e desenvolviam suas atividades econômicas em pequenas propriedades, com mão-de-obra familiar. 



Essas terras, quase sempre, não dispunham de recursos tecnológicos como máquinas agrícolas, ordenha mecânica, adubos e fertilizantes. Nem tampouco técnicos, como agrônomos e veterinários. 

Ainda assim, 70% do alimento que abastecia a mesa dos brasileiros vinha desses sítios. Grandes propriedades costumam exportar sua produção, mesmo porque exploram culturas que não participam do "pão nosso" de cada dia-a-dia: algodão, soja, sorgo, dentre outras.

Voltamos ao Tio Olívio. Ele morreu por conta de um câncer de próstata. É provável que não tenha visto necessidade do toque retal que eventualmente algum médico lhe propôs. “Carece disso não, doutor, estou bem. Onde já se viu?!” – pode ter dito.

Deixou um filho, que foi abandonado pela mulher que o pariu – típico caso de "toma que o filho é teu!" – assim que veio ao mundo. Dona Eudócia, minha mãe, acabou cuidando dele, em Alagoas, como se fosse sua décima cria. 

Tia Creuza
Tia Creuza nunca quis casar nem ter filhos. A vida inteira ajudou aos pais e, em seguida, a Tio Olívio, que assumiu as rédeas do Sítio Jacaré. Vive agora um tanto solitária, nem alegre nem triste. Para ela, Deus quis que seu inseparável irmão fosse primeiro. 

Tios Olívio e Creuza nunca precisaram de paletó, gravata ou tailleur para conseguir o suficiente para sobreviver em paz. Nunca dormiram preocupados com o fechamento do balancete no final do dia ou com a reunião das nove da manhã seguinte. Nem mascaravam sentimentos para agradar ninguém.

Ao refletir sobre tudo isso, penso que minha vida poderia ter sido mais simples. Eu deveria ter me inspirado mais do jeito de ser de meus tios todas as vezes em que desejei ter mais do que aquilo que me bastava. Ou quando quis algum poder a mais do que tive, na falsa ilusão de que faria meu trabalho melhor do que fiz.

E se fosse diferente, teria sido melhor? Nunca se sabe. Desde que não me faltassem bom plano de saúde, sólido fundo de aposentadoria, ar condicionado na hora de dormir, notebook, livros e, acima de tudo, netos para me convencerem de que ainda estarei por aqui depois que a "festa" acabar. 

"...Temos, todos que vivemos,
uma vida que é vivida
e outra vida que é pensada.
E a única vida que temos
é essa que é dividida
entre a verdadeira e a errada..." 
(Fernando Pessoa)




quinta-feira, 23 de maio de 2019

Estrelas nem sempre brilham


Nem Sivuca, Dominguinhos e Gonzagão, com seus contatos celestiais, conseguiram evitar o aborto do que poderia ter sido mais uma estrela a brilhar na constelação da música instrumental brasileira. Pena!

Nezin dos Anjos andava exultante. Depois de mais de três décadas de trabalho em um grande banco, havia aposentado e iria realizar o sonho de sua vida: aprender a tocar sanfona para poder cantar o melhor da discografia de seu ídolo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião.


Amarrada por barbantes, uma velha mala chamava à atenção na esteira do aeroporto em Brasília: continha uma Scandalli de 80 baixos seminova, verde, adquirida em Maceió. Nezin se atracou rapidamente com seu pacote e apressou sua mulher Lacinha que, suando em bicas, borrava a maquiagem a carregar o restante da bagagem. 

Dia seguinte, escorado no método de acordeão Mário Mascarenhas, já apalpava as primeiras teclas do instrumento quando recebeu um telefonema de Cabeção, ex-chefe e velho amigo, querendo saber como estava seu "dolce far niente"

Nezin disse que andava se sentindo leve, outra pessoa. Falou do bem que lhe fizera a visita aos familiares em sua terra natal e da expectativa de poder, finalmente, realizar o antigo desejo de aprender a tocar sanfona. Queria mostrar pros amigos que existem sutis diferenças entre baião, forró pé-de-serra, xaxado e xote.


Só não imaginava o que alguns ex-colegas de trabalho (Pacheco, Bené e Tonha) seriam capazes de fazer com a informação ingenuamente fornecida sobre sua meta para os próximos meses.

Na tarde daquele mesmo dia, devidamente pautado, Pacheco ligaria para Nezin (de telefone fixo para fixo, para escapar do identificador de chamadas), modificando a voz ao puxar pelo sotaque carioca para não ser reconhecido:
– Mermão, na moral, você não vê que essa parada tá enchendo o saco dos vizinhos aqui no prédio?! Todo mundo tá ficando meio bolado.
– Me desculpe... Tô começando a tocar hoje. É meu primeiro dia...
– Caraca, você chama isso de tocar? Procure uma escola, pô!
– Desculpe... 

Outra ligação não demorou meia hora, agora do gremista Bené, que também disfarçou a voz:
– Mas bah, fiquei sabendo pelo carioca do 305 que tu andas tocando gaita aqui no prédio. Isso é trilegal, tchê!
– Mas ainda estou aprendendo...
– Que nada, tchê! Deixe de modéstia! Que tal no próximo sábado irmos pro salão lá na cobertura, de bombacha, chapéu e lenço no pescoço, assar uma costela e tocar alguma coisa de Borguettinho?
– Mas eu ainda não sei tocar... Nem acabei a primeira lição...

De noite, Nezin procurou Cabeção, que fez “cara” de surpresa, claro! Preocupado com o rumo dos acontecimentos, contou ao amigo o que se passava:
– Ainda bem que joguei duro com aquele carioca do 505! Fui logo dizendo pra ele: aqui na minha casa, mando eu. Não vou parar de tocar de jeito nenhum!
– Sei... sei...
– E amanhã, logo cedo, vou dizer pro gaúcho: nada de churrasco no sábado! Só quando estiver me sentindo à vontade com a sanfona... O que você acha?
– Certíssimo, Nezin, bote para quebrar com essa gente! Onde já se viu querer se meter na vida alheia! Acha que de Minas pra cima só tem besta!

Mais confiante, Nezin retomou os estudos no dia seguinte, logo após o café da manhã. Só parou pra descansar quando Lacinha serviu o almoço. Mas antes da primeira garfada, o telefone tocou novamente: era Tonha, mineirinha muito ligada às práticas religiosas, também do “grupo teatral”, com sua fala caipira.
– Ó, moço, tô sabendo que meu marido ligou procê ontem. Doidimais! Ele é folgado como todo carioca, mas tá ficando pior depois de velho!
– Não tiro a razão dele, minha senhora. Eu ainda não toco direito. Deve tá muito chato me ouvir nesse começo...
– Procevê, ele não gosta de música e saiu de casa dizendo que vai reclamar no síndico... Ai que vergonha que tô dele... Podeixá que resolvo isso assim que voltar da igreja!

Nas 48 horas seguintes aconteceram mais uns dois ou três telefonemas dos envolvidos, cada qual torrando ainda mais a paciência do esforçado aprendiz, que a esta altura era o retrato do desencanto com o universo musical.

Fulo da vida, Nezin chamou Lacinha e os dois filhos na sala de jantar, tomou o Rivotril do dia, abraçou o instrumento e decretou em alto e bom tom:
– Se for preciso, a gente muda daqui! Eu vendo esta bosta deste apartamento mas não vendo minha safona!

Só no terceiro dia, ao tomar conhecimento da "performance do grupo teatral”, Vera, mulher de Cabeção,  cobrou do “diretor da peça” que acabasse com aquela molecagem, poupando o coração do velho amigo.

Cabeção relutou. Queria que a “peça em cartaz" pelo menos por uma semana, inclusive com a introdução de novos personagens, mas acatou o pedido e ligou para Nezin:
– ... É tudo brincadeira da turma, sem maldade. Eu, Pacheco, Bené e Tonha... Aconteceu assim, assim... Mas como Vera gosta muito de você, pediu pra gente parar.

Nezin, que estudava bem baixinho para não incomodar a vizinhança, emudeceu com o que ouviu e desligou o telefone, antes de explodir na gargalhada. Em seguida, largou a sanfona no sofá, foi ao banheiro, sentou sobre a tampa do vaso e, aliviado, gozou da imagem que viu no espelho:
– Tu és um nezin mesmo, hein?!

Logo depois lembrou que precisava ligar com urgência pro Correio Braziliense e pedir pra cancelar o anúncio de venda do apartamento que mandara publicar. Balançou a cabeça conformado quando abriu uma cerveja pra relaxar, ligou o som e a primeira canção que escutou foi “Amigo é pra essas coisas”, interpretada pelo MPB-4.


Lacinha, que havia saído para comprar umas pamonhas pro lanche do final da tarde, mal abriu a porta de casa e o marido contou a novidade:

– Mulher! Que Nossa Senhora me defenda dos amigos, que dos inimigos me defendo eu... 

Há quem diga que Nezin empacou de um jeito que não mais quer saber da sanfona, embora jure de pés juntos que "não dá, não vende nem troca". Os amigos, velhos parceiros de copo e de cruz, não acreditam nisso! 


Que ninguém se surpreenda se qualquer dia desses ele deixar a moita onde ensaia escondido e brilhe como um dia cintilaram Sivuca, Dominguinhos, Gonzagão... e até mesmo a estrela solitária do Botafogo.


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Memória de minhas surras tristes


Apanhar de cinturão tornou-se uma experiência inesquecível para mim. Não apenas pela dor física, mas porque nenhum de meus irmãos apanhava tanto quanto eu e isso abalava a confiança que deveria haver em quem me batia.

Não se falava em "bullying" no Sertão da Paraíba nos anos 60. Se muito, em menino buliçoso, danado. Meu passatempo favorito naquela época, não nego, era torrar a paciência dos irmãos mais novos com apelidos, caretas  e cutucadas nos redemoinhos de cabelo do topo da cabeça deles. Por isso, imagino, apanhava tanto.

Não devia ser fácil para meus pais, sobretudo aos sábados e domingos e durante as férias escolares, manter o sossego numa casa com sete filhos entediados (os últimos nasceriam em Alagoas), todos com menos de 10 anos, a arengar do jardim ao quintal disputando brinquedos, a abrir e fechar a geladeira ou o filtro d'água na cozinha.

Levei tantas surras que aprendi a retaliar com pequenas maldades. Na única vez em que testemunhei uma discussão mais áspera entre meus pais, havia experimentado mais uma, logo cedo, por um motivo besta qualquer. À noite, antes de dormir, minha mãe costumava checar se estava tudo em ordem nas redes em que os filhos dormiam. Ao vê-la entrar no quarto, arranquei a casca de uma ferida antiga, o suficiente para brotar um filete de sangue no joelho e tingir de encarnado o lençol.
– Acorde, meu filho, o que é isso? – alarmou minha mãe.
– Foi a fivela do cinturão de papai.  – respondi, descaradamente fingindo dor e sono.
O coitado ainda tentou argumentar que não era doido a ponto de bater no filho com a fivela, mas, em voz alta, ela disse por mim tudo aquilo que eu não ousaria dizer, sob pena de mais uma pisa memorável.

Já havia sido castigado uma vez por conta de minha curiosidade sexista. Aos cinco anos, no Jardim da Infância do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB), não sabia se freira era homem ou mulher. Irmã Priscila não pintava unhas, não usava batom como minha mãe, nem tampouco se tinha ideia do tamanho de seus cabelos. Resolvi tirar a dúvida lhe puxando o véu e minha saliência foi devidamente punida quando cheguei em casa. 

Outra surra inesquecível aconteceu numa manhã de domingo. Ao tentar escapar para não levar mais chibatadas, pisei de propósito dentro da lata de lavagem – sobras de comida estocadas ao ar livre, no quintal, para alimentar os porcos de uma vizinha – e corri para a sala de jantar, lambuzando tudo, para desespero de minha mãe que acabara de limpar o chão. E ainda existe quem duvide se crianças conhecem estratégias de manipulação psicológica.

Como a crônica de mais uma surra anunciada, ficaram na memória algumas sentenças:
– Vou contar pro seu pai quando ele chegar do trabalho, ouviu?
– Se correr vai apanhar mais, cabra safado!
– Não quero escutar nem mais um pio, ouviu?
– Se apanhar na rua dos moleques, vai apanhar de novo em casa!

Eu me perguntava até virar adulto: por que meu pai, cidadão de bem, amante de livros, cinema e música, que nunca sofrera um beliscão ou puxão de orelhas sequer de Tio Enoch – irmão mais velho com quem morava em Caxias(MA) –, recorria a cinturão de couro para "educar" os filhos? Logo ele, meu primeiro ídolo, referencia em quem me espelharia pro resto da vida! 

Não chegamos a conversar sobre o assunto depois que cresci. Morreu antes. Jurei a mim mesmo que faria diferente quando chegassem os meus filhos: nem palmadas na bunda. Parece que deu certo.

Se ele soubesse dos "pequenos saques" que eu fazia na bolsa de minha mãe para poder ajudar na compra de camisetas e bolas dos times da Rua Bossuet Wanderley, em Patos(PB), por exigência dos moleques mais velhos da vizinhança, aí sim é que teria motivos de sobra para umas boas lapadas no meu espinhaço. Não sabia.

Também não sabia dos banhos e das pescarias na “Ilhota” e na “Terra Cavada”, no Rio Mundaú, em União dos Palmares (AL), quando acabei "íntimo" da ancilostomíase (amarelão) e da esquistossomose (barriga d’agua, doença do caramujo). Se soubesse, é provável que o couro de minhas costas ficasse bem mais curtido.

De tudo restou a certeza de que a maior parte das surras que levei aconteceu por motivos banais, sem maior gravidade. Meu pai nunca soube dos mais sérios, inconfessáveis e obscenos. 

Mas não conseguiu da última vez que tentou. Em 1971, com quase 13 anos,  no primeiro golpe eu segurei firme na outra extremidade do cinturão e o puxei com força. Ao perceber que o filho já era taludo o bastante para não mais apanhar, desistiu.

Após a sua morte, um ano depois, virei adolescente impulsivo e sonhador, porém embrutecido e irascível. Nunca cogitei experimentar drogas, mas passei a fumar cigarros e a beber até cachaça com os amigos da Gruta de Lourdes, bairro em que morava, em Maceió(AL).

Quando jogava futebol, se em qualquer disputa levasse uma pancada ou me sentisse ameaçado, reagia, de forma desproporcional, a chutes e murros. Arrepender-se em seguida não me impedia de repetir a dose no próximo racha, só violência onde deveria haver apenas diversão e prazer.

Era tão atormentado que certa noite – Carnaval de 1975, no Iate Club Pajuçara, aos 17 anos –, depois de uns goles de cerveja, apavorei a namorada ao lhe dizer que iria procurar confusão. Saí esbarrando em um e outro até o tempo fechar e alguém partir para o revide me arremessando um copo com gelo. 

Se o mundo fosse justo, na melhor das hipóteses eu deveria ter sido expulso do clube naquela madrugada. Não fui porque, de forma autoritária e cretina, me identifiquei aos agentes de segurança na base do “você sabe com quem está falando?”:
– "Peraí, pô"! eu sou funcionário do Banco do Brasil!

E a estupidez em carne e osso quase joga no lixo o pouco que havia conseguido na vida até ali, ao usar em vão o nome da empresa que lhe acolhera como Menor Aprendiz havia nove meses. Quanto ao rapaz que ao jogar o copo com gelo apenas revidara uma agressão gratuita e imbecil, acabou retirado à força do clube. 

A poeira só tomou assento entre 1976 e 1977, quando me tornei estudante de Economia, funcionário de carreira do Banco do Brasil, marido e pai. Cansados, os bichos que me atormentavam caíram em sono profundo. Ainda bem.

Como um rio no rumo do mar, a vida seguiu adiante. Se hoje meu pai aparecesse na porta de minha casa, quem sabe me diria:
– Lembra quando eu lhe batia de cinturão? Me perdoa! Você não tinha culpa de nada do que se passava comigo.
– Faz tanto tempo, pai. Já esqueci. Senta e vamos tomar um vinho. Daqui a pouco seus bisnetos chegam por aqui...


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Vidas reinventadas


O que nos diferencia de outras criaturas do reino animal é a capacidade de lidar de forma criativa com os problemas do dia a dia. A eterna insatisfação com o que temos em mãos nos leva a descobrir novas ferramentas, novos materiais e objetos, que reinventam a todo instante o jeito como vivemos. Para o bem e para o mal, claro.

Foi assim que apareceram alguns inventos que mudaram bastante a vida do ser humano na face da Terra: roda, vidro, papel, eletricidade, fotografia, lâmpada, plástico etc. Mas poucos foram tão importantes quanto o que junta algumas dessas descobertas e inventa o cinema.

Importante porque o homem não evoluiu apenas provendo suas necessidades materiais. Cultivou também desde as cavernas o hábito de ouvir e contar histórias, inclusive através de pinturas. Vem daí o gosto por ler e escrever textos, ver filmes e até mesmo disseminar "fake news" nas redes sociais. Há gosto pra tudo.

Não sou cinéfilo. Por preguiça, reconheço, não cheguei a ver metade dos filmes que gostaria de ter visto, mas confesso que alguns mudaram meu jeito de enxergar o mundo e toda vez que isso acontece, preciso convencer pelo menos meia dúzia de pessoas a assisti-lo e me dizer depois sobre o que viram. Me faz bem.

Foi com esse espírito, há 20 anos, que procurei numa videolocadora um antigo filme com o qual sugeri uma reflexão coletiva sobre o propósito do Banco do Brasil e o sentido do trabalho diário de seus funcionários nas cidadezinhas do interior, junto a pequenos empresários urbanos e produtores rurais. Parecia um daqueles filmes de sala de espera de dentista. Não era, nunca foi. 

Queria conversar sobre planejamento de atividades, mas sem o rigor acadêmico. Juntei então numa sala vários gestores no final do ano, em Pernambuco (1998) e na Bahia (1999), e compartilhei com eles “A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life)”, um dos clássicos hollywoodianos mais inspiradores.

Naquele filme – produzido em 1946 de forma absolutamente franciscana, quando comparada às megaproduções de hoje –, um candidato a anjo chamado Clarence (Henry Travers) desce do céu com o desafio de convencer George Bailey (James Stewart) a não se matar. Se conseguisse, ganharia finalmente suas asas.

George, nascido e criado na cidadezinha de Bedford Falls, abrira mão do sonho de estudar, viajar e conhecer o mundo para cuidar do banco hipotecário de que seu pai era sócio até falecer em pleno trabalho, vítima de infarto fulminante.

O Sr. Potter (Lionel Barrymore), todo poderoso da região, provoca a insolvência do banco com manobras desleais para, no passo seguinte, tentar comprá-lo “na bacia das almas”. George não aguenta a pressão e, prestes a falir, deprimido, resolve antecipar a própria morte. 

Louco por um par de asas, Clarence tenta convencê-lo a desistir do suicídio falando de sua importância na vida de muita gente. Não consegue com argumentos. Resolve então mostrar em flashback como seria a vida se George não fizesse parte dela. Imagens sempre dizem mais que palavras.

A partir daí acontecem várias situações que nos induzem a uma reflexão sobre como seria a vida se não estivéssemos por aqui, passando uma temporada incerta, com todos os nossos vacilos por pensamentos, palavras, atos e omissões. No mínimo, instigante.

Não quero frustrar a expectativa quem não viu o filme e pretende assisti-lo. Mas posso assegurar que várias pessoas lembram até hoje do que balançou dentro delas não só no sentido profissional, no ambiente de trabalho, no universo em que viviam, mas também nas relações com cara-metade e filhos.

"Num filme, o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação" (Charles Chaplin). Todos nós temos na memória  pelo menos três ou quatro filmes que, ao vê-los pela primeira vez, mexeram no que estava quieto, adormecido.

Feito o mar, a vida desperta e se reinventa em ondas depois de um filme inspirador. Nem precisa pipoca e refrigerante. 


domingo, 5 de maio de 2019

O dia em que o mundo acabou

Tudo aquilo que o ser humano ignora não existe para ele. Por isso, o universo de cada um se resume ao tamanho de seu conhecimento, dizia Einstein.

Luiz, 4 anos, e sua irmã Eudócia, 8 anos  – minha mãe, tempos depois –, tomavam banho no Rio Paraíba, próximo à casa de taipa e de chão batido onde moravam no Sítio Jacaré, zona rural de Pilar(PB), quando Nina, a irmã mais velha deles, chegou aos gritos: 
– saiam daqui, vão embora pra casa que o mundo vai acabar agora!

De repente, o dia começou a escurecer, o calor diminuiu, os pássaros silenciaram, as galinhas buscaram os poleiros e duas crianças em pânico correram assustadas com o que viam.

Luiz se cansou a poucos metros de casa e pediu ajuda à irmã, que o acolheu nos braços. Mas desfaleceu antes que Eudócia pudesse deitá-lo na primeira rede que encontrou. 
– José, corre aqui que Luiz desmaiou! – gritou Carmelita para o marido ao ver a filha, de olhos arregalados, tentando reanimar o irmão.

José, que ordenhava no estábulo, chegou depressa, examinou o filho desacordado e balançou cabeça.
– Adianta não. O menino tá morto. O que aconteceu, Doça!?
– Foi Nina, pai! Luiz me chamou para buscar ovos de guiné na beira do rio e depois tomar banho. Ela chegou dizendo que o mundo ia acabar... começou a escurecer... 
– E aí?
– Luiz começou a tremer. E a gente correu pra casa, com medo...

O corpo foi sepultado logo após o médico em Itabaiana(PB) constatar que “coração fraco” fora a causa da morte. Não resistira ao susto com o eclipse solar que a Folha da Noite – diário vespertino que circulou de 1921 a 1959, primeiro jornal publicado pelo Grupo Folha –, assim noticiou em sua edição de 20 de maio de 1947:

“A lua começou a invadir o disco solar às 8 horas, 20 minutos e 6 segundos... 
Às 9 horas , 30 minutos e 1 segundo já se sentia a temperatura bem mais baixa e a escuridão já era quase total, impedindo a visão perfeita à distancia de cinquenta metros. Pouco depois surgiram as primeiras estrelas ante o entusiasmo curioso dos locutores e jornalistas que pela primeira vez puderam observar com uma perfeição indescritível o espetáculo que a natureza lhes oferecia.
O eclipse total começou às 9 horas, 34 minutos e 8 segundos. O globo solar ficou inteiramente coberto, observando-se sobre o firmamento um resplendor impressionante, como se houvesse um grande luar sobre o horizonte visual. A temperatura no primeiro minuto do eclipse baixou a 19 graus centigrados. Às 9 horas e 38 minutos começou a clarear rapidamente, notando-se então os contornos dos corpos sobre o solo, à medida que a lua foi baixando...” 

De volta ao Sítio Jacaré, José estava enfurecido. Desceu do cavalo, tirou o cinturão das calças e deu a maior surra que Nina levaria na vida para que nunca mais assustasse aos irmãos daquele jeito. E ainda alertou outra filha, que a tudo assistia:
– Você abra o olho e deixe de fazer medo a Doça, ouviu?

Essa outra irmã vivia ameaçando colocar um “colar” de caçotes – pequenos sapos amarrados pelas pernas – no pescoço de Eudócia ou uma bacia de baratas na rede em que ela dormia. Morria de inveja da sobrinha preferida das tias que moravam “na cidade”. 

Semana passada quis saber de Eudócia, agora com 80 anos, 24 netos e 23 bisnetos, qual teria sido a reação de minha avó Carmelita, “Mãe de Jacaré”, ao receber a notícia de que o filho estava morto, naquela manhã há 72 anos.
– Chorou, mas quase todo ano morria um anjinho, meu filho. Doía mais quando já era crescido, como Luiz – respondeu.

Eu nasci 11 anos depois que o mundo acabou para Tio Luiz. Não pude ouvir a sua voz me dizendo coisas como: “Deus te abençoe, meu sobrinho!” 

Se hoje lhe pedir notícias do mundo de lá, como na canção de Milton e Brant, talvez me fale sobre dois lados de uma mesma mesma viagem. Que o trem que chega é o mesmo trem da partida e que a hora do encontro é também de despedida. Que todos os dias é um vai-e-vem e que a vida se repete em cada estação. E tem gente que vem só olhar.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Millôr tinha razão

O impagável Millôr Fernandes (1923 – 2012) dizia que “a única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira é muito mais comum”. Seria loucura minha duvidar de sentença tão lúcida. Isso só aumenta a certeza de que está em minhas mãos resolver um pequeno problema que me aflige desde moleque.

Sei que se trata de compulsão mais difícil de superar do que o tabagismo. Eu, por exemplo, já não fumo desde abril de 1990. Se bem que até agora quando preparo meu cuscuz com ovos mexidos e café preto, bate saudade dos últimos tragos numa rede no alpendre da casa em que morava em Porto Calvo, Norte alagoano.

O tal distúrbio, osso duro de roer, começa na infância e metade das pessoas em idade escolar vive às voltas com ele. Comigo foi exatamente assim. Surgiu entre dois e três anos de idade lá onde nasci, em Itabaiana, Agreste paraibano, terra muito bem descrita por seu filho mais ilustre, o músico e compositor Severino Dias de Oliveira, vulgo Sivuca, que resgatou da memória imagens assim: 

"Fumo de rolo, arreio e cangalha,
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada,
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Pé-de-moleque, alecrim, canela,
moleque sai daqui me deixa trabalhar!
E Zé saiu correndo pra Feira de Pássaros
e foi ‘passo-voando’ pra todo lugar.
Tinha uma vendinha no canto da rua
onde o mangaieiro ia se animar,
tomar uma bicada com lambu assado
e olhar pra Maria do Joá...”

Mas não teve Maria do Joá que me curasse da bendita compulsão. Dona Eudócia, minha mãe, deve ter se perguntado: por que só ele, coitado, dos nove filhos? Tive que suportar olhares curiosos desde cedo. Por isso considero falha imperdoável dos estudiosos do assunto que suas causas ainda sejam desconhecidas. 

O que se descobriu até agora é que a crise aparece de forma automática, especialmente quando a pessoa está envolvida numa atividade imersiva, como: ler, escrever, ver filmes, ouvir música ou assistir a uma partida de futebol quando seu time está perdendo, sob ameaça de ser rebaixado de divisão. 

Existe alguma explicação para isso? Nenhuma. O perigo é que maioria de nós sente prazer e relaxamento quando a crise se instala, mesmo sabendo que está  sujeito a outras doenças associadas, como os chamados transtornos de ansiedade. Millôr tinha razão: "não devemos resistir às tentações; elas podem não voltar".

O prejuízo de quem sofre com esse distúrbio não é apenas estético. Já foi demonstrado que pode causar anormalidades na arcada dentária, na língua ou até causar complicações mais graves - infecções da pele, gengivites, dentre outras.

Não duvido nada já haver deputado federal rascunhado projeto de lei voltado para criação de espaços especiais onde possam nos confinar sem a menor crise de consciência. E o cartel das empreiteiras, de olho nas chamadas oportunidades de mercado, quem sabe anda discutindo as regras básicas para constituição de um novo propinoduto.

Paciência. Como ainda me sinto um idoso ligeiramente jovem – velho só é velho quando não pensa noutra coisa –, espero qualquer hora dessas, com um pouco mais de força de vontade, resolver de vez o meu problema. 

Millôr dizia também que “certas coisas só são amargas se a gente as engole.” Por isso continua tão difícil para mim resistir à compulsão de roer às unhas.

Das mãos, que fique bem claro! Pra não dar mau exemplo pros netinhos.