Havia uma explicação para o pitstop rotineiro no começo da tarde: todo dia acordava bem cedinho, por volta das cinco. Esperava o sol nascer a flanar na internet em sites de notícias, fazendo anotações ou a garimpar imagens nos álbuns digitais da família.
O único barulho que lhe deixava numa aflição inexplicável — coisa de outras encarnações, diriam os especialistas no assunto — era o “flap! flap!” do helicóptero da PM a sobrevoar os quarteirões do bairro, dando apoio às viaturas no asfalto que garantiam a tranquilidade dos donos de hotéis, bares e restaurantes da orla, fechados por conta do turbilhão virótico.
Naquele começo de tarde, sua mulher levaria pelo menos meia hora no banheiro entre shampoo e cremes. Ele poderia, portanto, após generoso prato de carne de sol com macaxeira e vinagrete, cair no sono até que a parceira de quarentena reaparecesse na varanda.
Vê o tal helicóptero fazendo voos rasantes, como se tentasse inibir um arrastão na praia, enquanto um pelotão de policiais corre para o local. Pergunta-se: o que leva o piloto a fazer manobras tão arriscadas, com tantos prédios na orla abrigando famílias confinadas nesses dias de ansiedade e tédio?
De repente, a hélice da aeronave choca-se com o apartamento dois andares acima do seu. Na mesma hora, exala um cheiro forte de combustível e surgem as primeiras labaredas em meio a tufos de fumaça escura.
A onda de calor lhe faz numa fração de segundo correr até a porta, mas o fogaréu, para seu desespero, já se alastra pelos corredores e desaconselha qualquer tentativa de fuga pela escada.
Atordoado com a gritaria e o alarme estridente do edifício, passa por sua cabeça num piscar de olhos as cenas que vira pela tevê dos atentados terroristas às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, quando uma das aeronaves perfurou os prédios como pregos em barras de sabão.
Ainda cogita se trancar na suíte, ligar o chuveiro e deixar jorrar água na banheira até a chegada dos bombeiros, mas talvez não houvesse tempo. A única saída seria amarrar alguns lençóis e descer dois ou três andares, onde aguardaria o resgate.
Teria que ser rápido porque a estrutura do prédio, naquela temperatura, talvez não resistisse e desmoronasse. Ao começar a descida, no entanto, a corda de lençóis não suporta o seu peso e desata justamente onde fora amarrada no parapeito da varanda.
O horror do corpo em queda livre lhe fez acordar quase urinando de agonia e desespero. Pulou fora da rede e correu até o lavabo, onde esvaziou a bexiga e lavou o rosto, enquanto o coração voltava ao ritmo normal.
Diante do espelho, esboçou um sorriso sem graça, reflexivo: “E aí, meu velho, quase foi embora sem ver filhos e netos pela última vez? Sem ter dito o quanto ama cada um deles? Qual é a graça de partir sem ver a cara das pessoas que ficam? Quem iria chorar a sua ausência?
Foi quando lhe veio à cabeça o que escreveu Sêneca (4 a.C — 65 d.C), escritor, dramaturgo e filósofo do Império Romano: “... Nisto todos erramos: ver a morte a nossa frente como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte”. E ainda diria noutra ocasião: “Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela.”
Se ela soubesse que por pouco não perdeu para sempre a grande paixão de sua vida, não perguntaria pelas sementes de tangerina no chão. Quem sabe até sairiam juntos pela orla — de máscaras, claro! —, a jogarem pelo caminho, como diria Quintana, “a casca dourada e inútil das horas”.