quarta-feira, 24 de julho de 2024

Ao pé do ouvido

Desde criança ouço falar sobre Guilherme Tell, herói ligado à independência da Suíça. A lenda diz que ele era um atirador excepcional com uma besta, um tipo de arco e flecha. No século XIV, desafiou uma das mais influentes famílias nobres da Europa, os Habsburgos, também conhecidos como a Casa da Áustria, que dominava a Suíça.

Um governador austríaco tirano ordenou que um chapéu com as cores da Áustria fosse pendurado na praça central da cidade onde Guilherme Tell morava. Todos que passassem por lá deveriam saudar o chapéu. Um dia, passeando com seu filho, Guilherme não fez a saudação e foi preso. Como castigo, o governador ordenou que ele atirasse em uma maçã sobre a cabeça da criança. E com uma precisão cirúrgica, ele acertou a fruta, tornando-se um mito e ajudando, mais adiante, na revolta que libertou a Suíça.

Quando escutei essa história pela primeira vez, fiquei impressionado com a coragem e a frieza com que pai e filho enfrentaram o castigo do tirano. Na minha meninice, imaginei fazer algo parecido usando um estilingue e uma goiaba sobre a cabeça de um dos coleguinhas de rua. Como nunca fui muito bom de pontaria e era enorme o risco de levar uma surra memorável, caso não fosse competente como Guilherme Tell, morreu ali a ideia de virar lenda no sertão paraibano dos anos 60.

Sobre ter ou não ter pontaria, aliás, me vem à cabeça o caso de Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, que recentemente, a uma distância de apenas 150 metros, de cima do telhado, disparou um fuzil e errou os disparos que fez contra o ex-presidente Donald Trump na Pensilvânia, nos Estados Unidos. Minutos depois, as redes sociais se encheram de especulações e ódio, acumulando milhões de visualizações no X (antigo Twitter). "Parece encenado", escreveu um usuário. "Ninguém na multidão está em pânico!", disse outro.

As teorias cresceram com as primeiras imagens, especialmente uma do chefe de fotografia da Associated Press em Washington, mostrando Trump com o punho erguido, sangue escorrendo da orelha, assumindo o figurino de mártir político com a bandeira norte-americana ao fundo – houve quem dissesse que escapou da morte para cumprir uma missão que, por ser divina, está escrita nas estrelas. Pelo sim, pelo não, o atual presidente Joe Biden botou as orelhas de molho e desistiu da campanha pela reeleição.

AP Photo/Evan Vucci

Comparações surgiram com o ataque a faca sofrido por Jair Bolsonaro seis anos antes, em Juiz de Fora (MG). O próprio Bolsonaro identificou paralelos, afirmando que "somente pessoas conservadoras sofrem atentados".


Durante um evento de campanha à Presidência, Bolsonaro era carregado por uma multidão de apoiadores quando Adélio Bispo de Oliveira chegou próximo e o esfaqueou. O candidato – que meses depois seria eleito presidente do Brasil – sofreu uma grave hemorragia e precisou passar por várias cirurgias. Adélio foi preso no local do atentado, e uma investigação policial concluiu que ele agiu sozinho, sem mandantes.


Nos Estados Unidos, Thomas Crooks, que atingiu de raspão a orelha do ex-presidente Trump, não teve a mesma sorte: foi abatido no esplendor da vida, antes mesmo de prestar esclarecimentos sobre seu gesto. Se havia uma razão especial, guardou consigo, para sempre.

Alguém deveria ter avisado a Adélio e Thomas que trabalhos estressantes e arriscados exigem intensa preparação. A competência não surge assim de repente. É algo que os outros percebem a nosso respeito e que precisamos manter. Sonhar em entrar para a história matando alguém importante não é para qualquer um. Pode-se sonhar com algo mais simples, como escrever um livro ou tocar piano fumando charutos, feito Tom Jobim, cantando “Luíza” (aquela do “raio de sol nos teus cabelos que explode em sete cores”). 

O problema é que, ultimamente, quase não identifico o que é falso ou verdadeiro no noticiário. Na era das redes sociais, influenciada pelas narrativas midiáticas sobre a percepção pública, tudo fica extremamente volátil. 

Ando me sentindo feito a Velhinha de Taubaté (personagem do genial Luis Fernando Verissimo), que se tornou celebridade por ser a última pessoa no Brasil a acreditar na versão oficial dos fatos. Durante o governo Figueiredo, ela virou uma atração turística. Estandes de tiro ao alvo, venda de estatuetas dela, uma roda-gigante, caldo de cana e pamonha cercavam sua pequena casa de madeira, onde morava com um gato chamado Funaro e morreu convicta de que o Plano Cruzado, do governo Sarney, uma hora ainda daria certo e mudaria de vez a nossa vida.

É por essas e outras que, ao pé do ouvido, aconselho a quem anda sendo facilmente influenciado por intrigas e pegando em armas (seja estilingue, peixeira ou fuzil), a refletir: se você não é um Guilherme Tell, não vale a pena tentar matar nem o seu pior inimigo, quanto mais um candidato à Presidência. Vai que a coisa foge do controle e a história é alterada por absoluta incompetência.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

A vida é mesmo muito frágil

Aos 61 anos, Nando Reis continua um dos grandes personagens da música brasileira. Suas canções, imortalizadas por bandas como Titãs, Skank e Jota Quest, além da parceria inesquecível com Cássia Eller, destacam-se por letras enigmáticas e instigantes. Tanto que mantém um canal no YouTube para explicar suas letras.


 

Fui apresentado a ele há 20 anos, nos bastidores do Multiplace Mais, em Meaípe, Guarapari (ES), após um show memorável. "Parabéns, Nando, foi espetacular!" – cumprimentei. E aquela figura humilde e insegura me perguntou baixinho: "Você gostou mesmo?"

 

Na noite anterior, ele não conseguiu terminar a segunda música, praticamente desfalecendo no palco, sob vaias de um público estimado em três mil pessoas. Uma banda local teve que substituí-lo para acalmar a plateia.

 


Recentemente, no programa Maria vai com os Outros do Canal UOL, direto de sua casa em São Paulo, Nando expressou o desejo de viver até os 104 anos: "Quero viver mais de 100. Claro que com lucidez e saúde. Tenho 60, e desperdicei muito tempo bebendo e cheirando. Preciso compensar esse tempo perdido."

 

Eu não tenho mais a cara que eu tinha, Nando, mas posso me adaptar. Bancário aposentado, 66 anos, minha ambição é um pouco mais modesta. Se chegar consciente e bem-humorado aos 88, ficarei satisfeito. Não usei cocaína ou outras drogas pesadas, mas gostava de beber e de fumar. Cada encontro com amigos, cada gole, cada trago, foi um momento vivido em sua plenitude. Não seria honesto, de minha parte, pedir reposição por algo tão bem aproveitado.

 

Nando agora se cuida para alcançar sua meta, equilibrando suas alegrias e contradições. Em depoimento à revista Piauí, no ano passado, ele se identificou como alcoólatra e falou sobre seus oito anos de sobriedade, motivado a recuperar o tempo possível.

 

Dei mais sorte. Tive outros vícios imperdoáveis, considerados lícitos, como trabalhar inclusive nos feriados e fins de semana. Ainda assim, fiz o possível para estar com minha mulher e meus filhos, e reconheço que o preço não foi tão alto para lidar com a ansiedade e a presunção do dever cumprido.

 

A qualidade de vida que Nando leva hoje o faz refletir: "A angústia que tenho, com a tristeza e tudo mais, me faz querer viver bem... Eu me cuido para viver bem. Adoro a vida, quero viver muito. Tenho projetos, quero ver meus netos crescerem. Por isso me angustia ver o planeta ser destruído."

 

Quem não sonha ver os netos crescerem e se preocupa com os rumos da humanidade? Lembro do que previu o falecido empresário Antonio Ermírio de Moraes, há alguns anos: “nossos netos e bisnetos viverão num crescimento perigosamente desequilibrado, com dois terços do planeta em nações pobres”.

 

A preocupação com o meio ambiente levou Nando a investir num projeto de reflorestamento na fazenda herdada do avô, no interior de São Paulo, sua forma de dar visibilidade a uma causa importante e manter seu vínculo com a natureza.

 

Sorte a dele! Meus avós não puderam me deixar um pedacinho de terra sequer para investir num projeto de reflorestamento. Mas deve existir outras formas de promover a preservação ambiental. Escrever sobre o assunto pode ser uma delas.

 

"Sou apegado aos meus filhos e netos, quero vê-los se casar, quero ver as árvores que plantei em Jaú crescerem. Quero ver meu projeto de reflorestamento. [...] Quero muita coisa”, pontuou Nando.

 

Quem de nós, Nando, com mais de 60 anos, não deseja ver os netos casarem e a vida fluir como um rio rumo ao mar? Quem não teme por eles "quando o segundo sol chegar, realinhando as órbitas dos planetas", como você nos alerta há tempos. Essa história de aquecimento global anda queimando inclusive o nosso juízo e não dá sossego a ninguém. 

 

Você diz que sua meta de viver mais de cem anos é uma forte e constante confirmação de seu desejo: “...É quase uma piada. Gosto de ser enfático e provocativo, mas é meu propósito”.

 

Você tem razão, Nando, quando canta em “Por onde andei” que “a vida é mesmo coisa muito frágil, uma bobagem, uma irrelevância, diante da eternidade, do amor de quem se ama”. Ou ao pedir em “Sutilmente”, composta com Samuel Rosa, que “quando estiver triste, simplesmente me abrace... Quando estiver fogo, suavemente se encaixe... Mas quando eu estiver morto, suplico que não me mate de dentro de ti...”.

 

Se eu tivesse um terço da sua habilidade de compor e cantar, talvez fizesse um requerimento (não em papel timbrado, com firma reconhecida e sob carimbo identificador!) ao proprietário do tempo – fonte de onde tudo emana e para onde tudo se encaminha – pedindo a prorrogação do jogo.

 

Como não tenho, Nando, se chegar lúcido e rindo de mim mesmo aos 88 anos, contando histórias e podendo beber uma taça de vinho ouvindo suas canções, vou-me embora numa boa. Sem queixas. 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Nao dá pra esconder

Há duas semanas, uma cantora pernambucana interrompeu um show em Mossoró, no Rio Grande do Norte, por um motivo insólito: um pum afastou parte do público da frente do palco durante a festa de São João na cidade. Após notar a dispersão, a artista brincou: "Pensei que fosse uma briga, mas soltaram um peido aí, foi? Tá podre mesmo. Carniça!". E compartilhou em suas redes sociais: "Já parei o show por vários motivos, mas por causa de um peido foi a primeira vez".


Essa situação inusitada me fez lembrar de um velho amigo, poeta matuto paraibano que vive "defendendo sua poesia a golpes de declamações por todo o Brasil em tons solenes e brincativos", como ele mesmo diz, a quem manifestei minha preocupação de vê-lo nessas aglomerações juninas regadas a comidas à base de milho verde, manteiga e leite de coco. 

Ele me tranquilizou ao explicar que, no caso de suas geniais apresentações, um pum pode mudar de um lado pro outro sem maiores consequências para o recital ou para o efeito estufa (camada de gases que envolve o planeta). “Se tem uma coisa que não se esconde é paixão, febre e catinga de peido”, pontuou.

A ocorrência também me fez recordar dos dias que sucederam o enterro de meu pai, há mais de meio século, quando minha mãe, que até hoje morre de medo de alma penada, convocou os nove filhos a dormirem ao lado dela, espalhados em colchonetes pelo quarto de casal. 

Na terceira noite, após rezar o terço pelas almas do purgatório e a luz ser apagada, um de meus irmãos libertou uma daquelas ventosidades silenciosas que fazem os olhos lacrimejarem e queimam os pelos das narinas dos circunstantes. Nem ele mesmo suportou o ambiente insalubre e se entregou nas justificativas: 

– Mamãe, acho que aquele cuscuz com graxa de galinha no jantar me fez mal... 

– Deixe de conversa! Onde já se viu cuscuz fazer mal a ninguém? Tu tá é podre, miserável! Saia daqui agora e vá dormir lá na sala! – sentenciou, tapando o nariz e levantando-se aos engulhos para abrir janela e porta do quarto.

Esses momentos burlescos escondem uma realidade mais séria sobre os gases que emitimos. Todo animal, inclusive os racionais, produz gases intestinais. Estudos mostram que um humano adulto pode liberar gases até 20 vezes por dia. A libertação de um flato na atmosfera decorre de reações químicas promovidas pelas bactérias que atuam nos intestinos, intensificadas por alimentos como feijão, ovo e repolho. Apesar de ser um processo natural, o "efeito bufa" dos outros é insuportável, especialmente em espaços fechados.

Mas a questão vai além do desconforto imediato. A produção mundial de carne tem uma responsabilidade significativa na emissão de gases do efeito estufa, superando até a quantidade de gases emitidos pelos automóveis. A digestão dos animais libera metano (CH4) na atmosfera, um gás com um potencial de aquecimento global cerca de 25 vezes maior que o do dióxido de carbono (CO2), resultante da queima de combustíveis fósseis.

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Circula na internet, inclusive, a notícia de que a Dinamarca vai tributar pecuaristas pelos gases de efeito estufa emitidos por seus animais. A medida, acordada entre agricultores, indústria, sindicatos e grupos ambientais, ainda aguarda aprovação parlamentar, mas promete revolucionar a política climática do país. Enquanto especialistas dinamarqueses calculam os impostos, os criadores de bois, ovelhas e porcos terão de pagar 300 coroas (aproximadamente R$ 237) por tonelada de dióxido de carbono equivalente. O valor subirá para 750 coroas (R$ 592) até 2035, com direito a uma dedução fiscal de Imposto de Renda de 60%.

Apesar de se falar muito de CO2, o metano, principal gás emitido pelos animais, preocupa mais pelo seu potencial de aquecimento do planeta. Responsável por 32% das emissões de metano, o setor pecuário se destaca no centro na agenda ambiental global.

Assim, seja no palco em Mossoró, na casa de minha mãe ou nos campos da Dinamarca, o impacto dos gases emitidos pelos viventes, embora muitas vezes encarado com humor, constitui uma ameaça que não pode ser desprezada. 

O pum que dispersou o público em um show ou a bufa silenciosa que causou risos e desconforto em família, ambos são lembretes de nossa natureza animal. Contudo, é importante não perder de vista que esses mesmos gases contribuem para um problema ambiental grave.

Portanto, enquanto brincamos sobre a carniça no São João ou debatemos políticas ambientais na Europa, não podemos esquecer que cada disparo, por mais engraçado que seja, tem um papel crucial na preservação da vida no planeta. Diminuir o consumo de carne e optar por dietas mais sustentáveis são maneiras de cada um de nós contribuir para a redução dos gases de efeito estufa.

Como o poeta diz que, "se tem uma coisa que não se esconde é paixão, febre e catinga de peido", talvez esteja na hora de não escondermos também a seriedade do impacto que cada um de nós pode causar ao meio ambiente, legando para as próximas gerações um planeta melhor. E mais cheiroso.


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Galope do tempo

Outro dia, um amigo me mandou uma fotografia de três décadas atrás fazendo uma ressalva que me deixou apreensivo: “Cá pra nós, não estou me dando muito bem com o galope do tempo. Custei a vergar, mas ultimamente...”

Curioso, perguntei sobre a amplitude do “ultimamente” mencionado. Disse-me, no seu gauchês, que é só “o somatório de várias constatações nos últimos tempos: Correr todo duro, sem qualquer molejo; tontear ao abaixar; ficar ofegante a partir do quinto degrau de uma escada; não aguentar mais uma churrascada como antes; querer dormir mais que a cama; esquecimentos frequentes... Isso sem falar da necessidade dos ‘azulzinhos’ para qualquer saliência com minha deusa morena...”

Exagerou, sem dúvida! Aos 68 anos, continua o brincalhão debochado, sarcástico, tocando seu trombone maravilhoso e provocando Deus e o mundo, como quando citou Woody Allen em nossa conversa: “Não é que eu tenha medo de morrer; é que não quero estar lá na hora que isso acontecer.”


Ele sabe que a possibilidade de vida eterna só nos traria problemas, isso sem falar nos transtornos que seria para os nossos planos de saúde e de previdência complementar. O “fim da aventura” sempre foi uma angústia humana, mas serve também de consolo, pois nos desobriga de refletir sobre a dúvida de Caetano Veloso: “Existirmos: a que será que se destina?”.

A crença na vida após a morte, portanto, tem seu lado interessante porque admite a eternidade sem as dúvidas, já que é pouco provável que as divagações metafísicas continuem no outro plano. Lá, sem a necessidade de morrer novamente (exceto para os que acreditam em sucessivas reencarnações), não tem o que especular sobre como toda essa bagunça que reina por aqui um dia vai acabar. 

Resolvi então provocar meu amigo utilizando um tom coloquial, mas explorando conceitos complexos sobre o tempo. Perguntei: você sabe o que é o tempo? Não parece, mas a física moderna revela que o tempo, em grande parte, é apenas uma ilusão – alertei-o.

Não me respondeu até agora. Se o fizer, pretendo recomendar algo bastante simples: imagine que seu relógio em casa marca 7h quando você sai para caminhar e 8h quando retorna. Parece que uma hora se passou, mas na verdade, como você se movimentou, o tempo para você foi um pouquinho mais curto. Uma diferença imperceptível, mas real, como Einstein mostrou. O tempo não é universal; ele é pessoal. Cada um de nós vive sua própria versão. Sentimos o tempo passar, mas essa sensação é mais psicológica.

Essas reflexões sobre o tempo me fizeram lembrar de uma manhã, muitos anos atrás, caminhando à beira-mar. Encontrei uma senhora, no auge de seus 70 anos, usando uma bandana e uma blusa onde estava escrito: “A velhice é uma conquista.” Isso me fez pensar em quantas pessoas não chegam a conquistar essa medalha, muitas vezes derrotadas por um gol contra do destino, como uma complicação besta de uma virose de inverno.

Desde então, interessei-me por envelhecer compartilhando memórias, inclusive as minhas mais doloridas lembranças. E se um dia os neurônios vacilarem – engolidos pelas sombras do esquecimento –, espero que as pessoas que ouviram guardem minhas palavras, distorcidas ou não pelos filtros de meu ego, na versão que lhes contei.

Conto também que jamais perderei a capacidade de engolir seco, de travar a garganta diante das coisas mais banais do noticiário – como uma mãe que agradece a chance de poder catar restos de comida no lixão –, nem tampouco a capacidade de aceitar minhas contradições e meus medos. 

E tenho repetido a mim mesmo que seguirei garimpando velhas e novas preciosidades pelos caminhos que trilhar, sendo menos ranzinza e mais bem-humorado, ácido quando for necessário e, na medida do possível, senhor de minhas vontades. Se não der, que me seja concedido aceitar as limitações impostas pela fragilidade da condição humana.

Já se passou uma semana e meu amigo ainda não respondeu à minha provocação. Talvez ele mesmo tenha se perdido nas suas reflexões ou simplesmente decidido ignorar minhas teorias sobre o tempo. Pensando bem, talvez seja melhor não esticar a conversa. Ou dizer a ele apenas para esquecer essa coisa do “somatório de várias constatações”. 

Afinal, chega uma hora em que começamos a pensar no que dirão no nosso velório, sem que nada possamos fazer a não ser olhar para trás e ver não o que perdemos, mas tudo o que ganhamos ao longo da jornada, com gratidão pelas memórias que construímos, pelas risadas que compartilhamos e até pelas lágrimas que derramamos.

E que possamos seguir em frente, mas reconhecendo a inutilidade de espernear contra o indomável galope do tempo.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Os sem-noção

Três semanas atrás, publiquei aqui neste espaço uma crônica sobre a chatice que gerou uma boa discussão entre os leitores, os quais, assim como eu, se identificaram como chatos ocasionalmente, o que é natural. Mas, dentro desse universo, existe um grupo que merece destaque especial: os sem-noção.

 

Não falo apenas daqueles que, em um churrasco entre amigos, soltam perguntas sem graça do tipo: “o que o azeite disse para o vinagre?”. E ele mesmo, em seguida, responde: “Digo nada... Só óleo”. Ou daqueles que adoram expressões de duplo sentido, como "o negócio continua de pé, só esperando uma posição sua". Aqui o problema é outro, bem mais grave.

 

 

Ilustração: Umor


Os sem-noção, que variam de folgados a malas sem alça, são aqueles que, sem qualquer consciência de espaço ou decoro, acreditam ser o centro do universo. Eles criticam, impõem suas opiniões, falam demais, e o pior, pensam que todos ao redor o adoram – quando, na realidade, são insuportáveis. São criaturas dignas de pena, com uma autocrítica praticamente nula.

 

Você certamente conhece alguém assim. Alguém que demonstra uma intimidade que não existe, fala pelas suas costas e se acha infalível em todas as áreas do conhecimento humano. Quando alguém, estarrecido com tal comportamento, exclama “Meu Deus!”, é prontamente corrigido: “Não, sou eu... Fulano de tal...”

 

Um amigo me contou sobre um livro espírita que retrata a Terra como um vale de provações. Os seres mais evoluídos habitariam esferas superiores, livres de trivialidades terrenas como boletos, doenças e insetos incômodos. Na minha visão, os sem-noção são comparáveis aos insetos dessa narrativa – testes para nossa paciência, que se esgota cada vez mais com o passar dos anos. 

 

Eles são como mosquitinhos irritantes, existindo apenas para perturbar – os cachorros que o digam! – sem contribuir positivamente para o mundo. Seria ideal que predadores naturais como aranhas, camaleões, sapos, tamanduás e muitas espécies de passarinhos e peixes, além de se alimentar de outros insetos menos incômodos, pudessem erradicar essa praga. Nossos amigos caninos ficariam eternamente agradecidos.

  

Mas vamos falar sobre os sem-noção que encontramos todos os dias, como aqueles que nos tiram do sério no trânsito. Digo dos apressadinhos que colam na traseira do nosso carro (mesmo quando a rua está congestionada, cheia de crateras ou o semáforo à frente está vermelho) e os que ultrapassam pelo acostamento. Sem perder de vista os desgraçados que estacionam nas vagas reservadas a cadeirantes, grávidas ou idosos. 

 

No supermercado, são os que deixam o carrinho bloqueando o corredor como se não houvesse mais ninguém ali. Quem abre o freezer, mexe e remexe tudo, não pega nada e ainda deixa a porta aberta. Ou abandonam carne, peixe ou frango descongelando fora do lugar apropriado. Sem falar dos que furam potes de iogurte ou furtam uvas. E o que dizer de quem disputa tangerinas e tomates como se estivesse na primeira infância? Ou aquele que larga o carrinho na fila, esperando que o próximo o tire da frente? Ou ainda de quem não empacota as próprias compras, esperando que o caixa termine de registrar para começar a embalar? A fauna é grande e não para de aumentar.

 

Minha filha, recentemente, observou que o jeito como as pessoas lidam com carrinhos de supermercado ao terminarem suas compras diz muito sobre a civilidade de um lugar. E realmente, nada fala mais sobre o conjunto de princípios e os valores de uma comunidade do que esses pequenos gestos com grandes significados.

 

As redes sociais também estão infestadas desses sabe-tudo que se arvoram juízes de todas as causas e distribuem sentenças a granel, ignorando o Marco Civil da Internet – criado para estabelecer o direito ao exercício da cidadania nos meios digitais, além da diversidade e da liberdade de expressão na rede. Marco, aliás, que apesar de seus 10 anos, pouco alterou a dinâmica da coisa no Brasil. A pancadaria segue comendo solta, muitas vezes em um linguajar de enrubescer a turma do “Porta dos Fundos”. 

 

Esses extremistas, sejam de que vertente político-religiosa ou seita ideológica for, não pensam por si: apenas ecoam o que leem ou escutam, propagando desinformação e discórdia. São como os mosquitinhos que só existem para irritar nossos amigos caninos.

Os sem-noção, enfim, são um recorte fascinante e frustrante sobre a falha humana em perceber o impacto de suas ações nos outros. Eles dominam tanto as vias públicas quanto as digitais, espalhando sua falta de consciência despreocupados com as consequências. E não apenas irritam, mas refletem uma falha mais ampla em nossa sociedade: a cultura de impunidade que estimula tais comportamentos. 

Com as eleições de 2024 se aproximando, é crucial refletir sobre como cada um de nós pode contribuir para uma sociedade mais consciente e responsável, desafiando a lógica de que "falar sem pensar" é aceitável. Afinal, pequenos gestos podem revelar grandes verdades sobre o caráter de uma nação.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

O dever de tentar

Aos 85 anos, uma querida amiga minha decidiu renovar a CNH para adquirir um novo carro. Ela pretende retomar as rédeas de sua vida: ir à praia, à igreja, ao supermercado, à farmácia, ao salão de beleza e aos bailinhos da penúltima idade, sem depender de ninguém.


Viúva, ela já não divide sua intimidade nem com as filhas descasadas. Mora sozinha, cuida da própria alimentação, assiste TV, reza e navega nas redes sociais. Temendo quedas, largou as caminhadas ao entardecer, aderindo à prática do pilates.  

 


Ela acredita que poderá contribuir bem mais para a economia de consumo, pois entrará no círculo virtuoso em que um bem durável não só gera lucro a quem o produz, mas também redistribui renda, desde grandes industriais até os guardadores de rua.


Alega também que apoiará vários segmentos produtivos, desde a indústria automobilística até petroquímicas, refinarias, destilarias de álcool, postos de combustíveis, fábricas de centrais multimídias, painéis digitais, couros, plásticos, pneus, rastreadores, tintas, lojas de autopeças e oficinas mecânicas.

 

Sua contribuição ainda alcançará fornecedores de bens e serviços a supermercados, passando pelos fabricantes de artigos cosméticos usados por sua cabeleireira, até o pessoal envolvido nos bailinhos das matinês de domingo (maître, barman, cozinheiro, garçons, músicos e dançarinos, entre outros).

 

Não esquece nem dos agentes de trânsito. No mínimo, aumentarão a arrecadação pública com multas por estacionamento de maneira inadequada, direção sem documentos de porte obrigatório e avanço de semáforos vermelhos. Se forem desonestos, optarão pelo “confisco privado”, certamente menos voraz, cujo resultado, de qualquer modo, retornará aos supermercados.

 

Por pouco a criatura não me convence! De tanto ver telejornal, parece jornalista cavando uma boquinha num ministério da área econômica. Me fez recordar do tempo em que, com quatro omeletes de carne moída e as sobras recicladas de arroz, feijão e farofa, superava o desafio de alimentar sua numerosa família na véspera do pagamento do salário do provedor geral, quando a geladeira exibia sintomas de falência de múltiplas gavetas.

 

Mas ela sabe que tudo depende da renovação da CNH. E que não há restrição legal ou regulamentar por idade, apenas por condições físicas e psicológicas, para garantir a segurança de quem está dirigindo ou, sobretudo, de terceiros desavisados que cruzarem seu caminho.

 

O entusiasmo é tão grande que eu não quero quebrar o encanto da exposição macroeconômica de motivos. Embora, confesso, me ocorra procurar o Detran munido de um relatório médico recomendando a suspensão do seu direito de dirigir. Pressentimento é coisa séria.

 

Seria traumático, entretanto. Então, resolvi conversar:

– Vale a pena a senhora enfrentar de novo o inferno do trânsito?

– Claro! Só saio de casa nos horários menos movimentados...

– Já pensou se levar outra fechada de ônibus daquela que teve que subir a calçada? E se atropela alguém? O que vai ser dos filhos desse infeliz?

– Vire esta boca pra lá! Você já viu um raio cair duas vezes no mesmo canto?

– E se derruba um motoqueiro no asfalto, sem capacete, de bermudas e descalço? É encrenca pro resto da vida, tá sabendo?!

– Meu filho, relaxe! Quem tem medo de fazer cocô, não come nem bolacha Maria!

 

Torço para que o perito do Detran perceba certa desatenção (ou que os reflexos já não são os mesmos) durante o exame de renovação da CNH, porém os próprios filhos concordam que o desfecho mexerá com sentimentos como felicidade, frustração ou tristeza. Para ela, dirigir sempre foi sinônimo de independência, e perder isso não é fácil, especialmente para alguém ainda ativa e lúcida, inclusive dançando arrasta-pé, baião, forró e xaxado nesta época do ano. 

 

Não me perguntem como, mas ela conseguiu a renovação da CNH. Nada mais me surpreende quanto à capacidade de persuasão dessa matriarca determinada, firme como uma baraúna. 


Mesmo assim, os filhos se reuniram para discutir como fazê-la desistir da compra. Então um deles se encarregou de comunicar a opinião unânime da família, inclusive de alguns bisnetos adolescentes:

– Quando a senhora precisar sair, combine com um dos 8 filhos ou 20 e tantos netos. Não é possível que não tenha ninguém disponível.

– E se for emergência?

– Chame um “Uber”. É menos arriscado.

– Você tá me achando com cara de rapariga pra ficar na calçada esperando um carro com o celular na mão?

 

E deu aquela rabissaca, gesto de desprezo bem nordestino, com direito a virada brusca do corpo, lábios cerrados e sacudidas da cabeça. 

 

Tentar ela tentou, mas acabou desistindo da compra porque, em geral, o mercado considera o limite de 70 anos para financiamento de veículos. Ficou triste, é verdade, mas só até ouvir um sanfoneiro cantar assim (referia-se ao carro, certamente!): "Eu não preciso de você/O mundo é grande e o destino me espera/Não é você quem vai me dar na primavera/As flores lindas que sonhei no meu verão...". 


Ainda bem. Pena que a economia brasileira jamais saberá o quanto deixou de faturar sem minha querida amiga circulando ao volante pelas ruas. 

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Golaços sociais


Dias antes das chuvas que provocaram inundações em quase todos os municípios gaúchos, no maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, o Juventude enfrentou o Corinthians pela segunda rodada do Brasileirão 2024. No Estádio Alfredo Jaconi, em Caxias do Sul, algo curioso chamou atenção antes do início da partida: a maioria dos jogadores usava óculos escuros.


 

Reprodução/Redes Sociais


A cena noturna poderia ser vista como um desfile de vaidades, mas, na verdade, era uma jogada de marketing da Chilli Beans. A marca aproveitou o evento com grande audiência para promover sua nova linha de produtos. Após a vitória do Juventude por 2 a 0, um vídeo viralizou nas redes sociais: o principal jogador do time apareceu como um astro de cinema, de óculos escuros (para se proteger dos flashs), simulando uma coletiva de imprensa.

 

Esse foi mais um episódio do chamado Marketing de Guerrilha. Criado nos anos 70 por Jay Conrad Levinson e inspirado nas táticas de guerra do Vietnã, essa estratégia busca surpreender o público com ações criativas e de baixo custo.

 

Além disso, campanhas criativas podem servir a causas mais nobres. A Unicef, por exemplo, distribuiu garrafas de água turva nas ruas de Nova York (ninguém se animou a tomar alguns goles) para chamar a atenção para a falta de água potável em muitos países. O mundo, alterado pelo clima, também está mudando as crianças, afetando sua saude física e mental. A ação gerou empatia e incentivou doações generosas. 



Montagem: Reprodução/Redes Sociais

 

No Brasil, há pouco mais de uma década, a camisa do Vitória da Bahia mudou de cor numa campanha de doação de sangue. As listras vermelhas se tornaram brancas e só voltariam ao original conforme os torcedores atingissem metas de doação. Essa campanha não só salvou vidas, mas também uniu a comunidade baiana em torno de uma causa nobre, reforçando o orgulho e a identidade local com cada gota de sangue doada. 



Reprodução/Redes Sociais

 

Os problemas sociais no Brasil são muitos. Desigualdade de oportunidades, desnutrição e desmatamento são apenas alguns dos mais graves. 


Marketing não serve apenas para conseguir novos clientes. Ele ajuda a fidelizar quem já conhece uma marca, fazendo com que voltem a consumir seus produtos. Quando bem-feito, expande a visibilidade junto ao grupo de pessoas mais suscetíveis a "comprar" inclusive uma boa causa associada.

 

Frente a tantas possibilidades, é fácil imaginar algumas campanhas que poderiam ser trabalhadas. Por exemplo, o verde da camisa do Palmeiras ou do Goiás poderia ser restaurado, a partir de um uniforme totalmente branco, à medida que novas árvores fossem plantadas. 


Grandes marcas do setor agropecuário poderiam bancar campanhas para reverter a devastação ambiental. E talvez se possa estabelecer uma cota permanente de doação de alimentos por hectare desmatado legalmente (não há que se falar em compensação pelo desmatamento ilegal: aí só punição mesmo!).


Outra ideia seria tornar as camisas de Botafogo e Santos totalmente cinzas, simbolizando a baixa alfabetização no Brasil. Um cinza grafite, claro, que nos lembre a ponta do lápis que faz falta nas mãos de mais de 10 milhões de brasileiros. À medida que a taxa de alfabetização melhorasse, as cores originais retornariam.

 

Em caráter emergencial (com a intermediação da CBF e da Conmebol junto à Fifa), penso que se poderia discutir uma ação global envolvendo os principais clubes de futebol das maiores ligas do mundo para a reconstrução do Rio Grande do Sul. Seria um divisor de águas na história do esporte mais popular do universo, pelo menos em termos de Europa e América do Sul.



Pode parecer egoísmo pensar apenas no desastre climático brasileiro quando existem crises humanitárias terríveis assolando nações como Afeganistão, Congo, Iraque, Síria, Somália, Sudão etc. Não é. Apenas se tornaria mais fácil escorar a campanha no peso da tradição do Brasil no contexto do futebol mundial. 


 

Esses exemplos ilustram a criatividade no marketing, mas também o potencial de transformar o esporte em um vetor de mudança. Imaginem camisas que, além de cores e patrocínios de bancos e casas de apostas, reflitam compromisso com educação, meio ambiente e igualdade social. Com sua popularidade e alcance, o futebol pode tornar a sociedade menos injusta.  

 

E você, como gostaria que seu clube de coração usasse sua influência? Como torcedores e membros da comunidade, é preciso incentivar iniciativas que transformem cada jogo numa oportunidade de marcar golaços na vida real, onde cada tento signifique um passo a mais em direção a vitórias que transcendem as quatro linhas do campo.


Não se deve mais ver um estádio de futebol apenas como um local de diversão. Trata-se de uma caixa de ressonância de sonhos e pesadelos coletivos. O esporte mais popular, de mãos dadas com o marketing, precisa ser um instrumento de justiça social, com impactos duradouros e significativos, fazendo do mundo um lugar melhor.



quarta-feira, 5 de junho de 2024

Que chato, não?!

Ninguém nasce chato. Ser chato é um estado da alma, uma dimensão do espírito que se apura em fogo brando. Existem aqueles que, desde os primeiros minutos fora do útero, abusam do direito de berrar, seguros de que se darão bem no novo mundo na base do grito.

Modéstia à parte, perdi a conta de quantas vezes fui tachado de chato pela minha mulher.  Apesar de mais de cinco décadas de mútua tolerância, ela, vez por outra, não hesita em soltar um contundente “ô cabra chato!”. Mas sabe que seria bem pior conviver com uma pessoa insossa, morna e previsível.


Ilustração: Umor

Não vou negar, às vezes reclamo de forma mais destemperada de certas coisas. Mas, no calçar das meias alheias, percebo que ninguém está livre desse rótulo. Somos, na verdade, uma multidão de chatos vagando pelo mundo, alguns em avançado estado de decomposição mental.

 

Para mim, o mais difícil de aturar é aquele que não tem a mínima ideia da extensão de sua chatice e passa o dia criando situações irritantes. Não sossega nem dá descanso a ninguém, validando a tese de Millôr Fernandes segundo a qual “chato é um sujeito que não pode ver saco vazio”. 

 

Sei que existem coisas que fogem ao nosso controle e que acabam enfurecendo os outros. Só para constar, reconheço que às vezes perco a paciência e fico intolerável. Em algumas ocasiões, reclamo de quem me irrita e depois me dou conta de que ajo da mesma maneira, como atravessar a faixa de pedestres de carro fingindo não ver quem espera na calçada.

 

Sou capaz de apostar que isso também acontece com você. Se não se lembra, vou refrescar sua memória com algumas situações em que quase todo mundo escorrega no piloto automático. Mas vou poupá-lo das mais tóxicas, isto é, daquelas que envolvem o embate político, religioso ou clubístico, principalmente com disseminação de notícias falsas.

 

Uma pessoa chata clássica, digamos assim, é aquela que fala alto ao telefone em espaços fechados ou públicos. Outra é a que, durante uma conversa, fica checando o celular com um rabo de olho. No mínimo, isso denota desinteresse pelo que está sendo dito ou que preferia estar com alguém supostamente menos desagradável que ela (se for possível!).  

 

E quem fala apenas sobre si mesmo no trabalho ou numa mesa de bar? Ou costuma chegar atrasado aos encontros marcados, desrespeitando o tempo alheio? E quem só conversa cutucando ou cuspindo em você? Haja aporrinhação! 

 

Poucas coisas são tão maçantes quanto receber mensagens picotadas no WhatsApp. Por que não escrever tudo de uma vez? É aflitivo esperar cada frase completar o raciocínio de meu interlocutor. Que desagradável, não?!

 

Outra maluquice é demorar ou não responder a uma mensagem importante. E o pior: ver (eu me recuso a usar aqui o verbo “visualizar”) e não dizer nada. Mais aborrecidos ainda são aqueles que se julgam tão importantes que desativam os tiques azuis, deixando a incerteza no ar sobre se receberam a mensagem ou se não querem respondê-la. 

 

E tem o dissimulado, que diz que achou que tinha respondido a mensagem (ou que deixou para depois), como se isso aliviasse a frustração de quem aguarda a resposta.

 

Outro chato é aquele que interrompe alguém no meio de uma história um pouco mais demorada, mesmo que seja para acrescentar algo importante. Nada pode ser tão valioso a ponto de quebrar o clímax e forçar o interlocutor a retomar o raciocínio.

 

Tem mais. Imagine-se em sua caminhada matinal e alguém à sua frente falando ao celular, andando lentamente, quase parando. Já pensou você pisar descalço em cocô ou xixi de cachorro nessa hora? É enorme o risco de perder a compostura, rosnar alto e ser chamado de chato.

  

Outro dia encontrei dois chatos num congestionamento, pareados na chatice como se estivessem em bluetooth. O primeiro, achando-se mais importante do que todos, resolve ultrapassar pelo acostamento com sua vistosa camioneta. O segundo, apesar da caneta e do bloco de multas na mão, desvia o olhar e finge não ver a infração, talvez com medo de desagradar o apressado. Pensei em perguntar o motivo pelo qual fez vista grossa, mas olhei para minha mulher e li no rosto dela algo como: “ô cabra chato!”. No trânsito, todos têm razão, menos o santo de casa. 

 

E quer ver um monte de gente se afastar de você, tachando-o de um sujeito intragável? Fale só a verdade e cobre isso de todos a seu redor. Nada cria mais inimigos do que não mentir. Demora, mas a maturidade ensina: não acredite quando alguém lhe sugere “fale com toda franqueza!”.

     

Não vou mais me alongar e correr o risco de receber de alguns leitores, que me aguentaram até aqui, aquela mensagem cruel: “ô cabra chato!”

 

Enfim, Deus me proteja de mim e da chatice geral, pois só a minha faz sentido. 

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Raízes e horizontes

O romancista e poeta baiano Carlos Barbosa me contou que “O Meu Pé de Laranja Lima”, um clássico da literatura brasileira escrito por José Mauro de Vasconcelos, publicado originalmente em 1968, acaba de alcançar a marca de 400 mil exemplares vendidos na China. Trata-se da história de Zezé, um menino de cinco anos muito esperto e sensível. Tornou-se leitura escolar para as crianças chinesas.


A tradução foi feita por Ma Guangping e publicada pela primeira vez em 1983. Ela é conhecida por trazer várias obras literárias brasileiras para o público chinês, ajudando a promover nossa literatura no Oriente.


A notícia me fez lembrar da história de meu amigo Maneco. Ele passava horas contemplando a sombra de uma varinha cravada no chão do quintal, que mudava de posição a cada instante, até o pôr-do-sol: 

– O que você faz aí, hein? 

– Tô vendo o tempo passar, mãe...


No terreiro, além da cerca de avelós, do pé de manga espada e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o alerta materno:

– Tá na hora de lavar os pés, beber água e dormir! 

 


Ele e Jacira, sete e oito anos, os caçulas dos sete filhos de Chicão e Mariquinha, nasceram num pequeno sítio à margem do rio São Francisco, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento de todos vinha da pesca, da engorda de algumas crias e do plantio de mandioca, milho e feijão. 

 

Em noites de lua cheia, um impulso misterioso levava algumas mães na zona rural a, de repente, querer mudar para cidades maiores, na esperança de que os filhos descobrissem um mundo novo, aprendessem a ler, a fazer contas, a enxergar na escuridão. Não foi diferente com Mariquinha, na metade do século passado: 

– Chicão, nem pense que vou deixar esse menino ser criado aqui como Deus criou capim. Nem ele nem a irmã, viu?

– Ficou doida, foi? 

– Se quiser ficar, fique, mas vou levar os dois pra estudar na cidade.

– E vão viver de quê?

– Não sei. Deus dá jeito...

 

Contrariando o marido, que permaneceu no sítio na companhia do primogênito, Mariquinha partiu resoluta, carregando os filhos mais novos. Ao chegar em Pedregulho, alugou uma casa na periferia e conseguiu empregos menores para os três filhos mais velhos, agora responsáveis pelo sustento da família. E decidiu alfabetizar os caçulas.

 

As crianças estudariam numa escola profissionalizante. Jacira não se animou, mas o menino até pensou virar alfaiate para costurar aquelas roupas elegantes que os mais abastados vestiam na igreja. Durante o ano letivo, ambos se destacaram, sendo Maneco escolhido orador da turma na festa de formatura. E ela, integrante do coral, de última hora foi substituída por uma filha da elite local.  

 

Escondida da mãe, Jacira chorou muito. A professora, buscando contornar a situação, a fez declamadora. E lhe ensinou um poema sobre as dificuldades de uma órfã num mundo hostil do pós-guerra. No dia do evento, a menina, com olhos úmidos e mãos espalmadas, foi intensa e comoveu a todos, inclusive sua mãe:

– Chore não, minha filha, sua mãe tá viva! Olhe pra mim, bem aqui na sua frente!

 

Depois Maneco subiu ao palco e leu um discurso redigido pelo diretor da escola, começando assim: “O tempo pode ser medido pelas batidas de um relógio ou pode ser medido pelas batidas do coração...” E arrematou com “O trabalho”, de Bilac: 

“(...) É preciso trabalhar.

Não nasce a planta perfeita

E nem nasce o fruto maduro.

Para se ter a colheita

É preciso semear (...)”

 

Para quem assistiu, nascia ali uma grande atriz como Bibi Ferreira, digna de sonhar com cinema e teatro. Nascia também um escritor. Maneco devorava livros de Monteiro Lobato, fascinado pelas aventuras de Emília, uma boneca de pano com sentimentos e ideias libertárias.

 

A mãe exultava àquela altura, ainda mais porque o pai, tangido pela saudade, já se desfazia do sítio para se juntar aos seus no Natal de 1958.

 

O relógio, ansioso a vida toda, andou ligeiro desde os tempos em que a sombra de uma varinha no quintal mudava a cada instante, até o pôr-do-sol dos dias de hoje. 

 

Maneco e Jacira, hoje meus vizinhos de prédio, setentões, aposentados e viúvos, até conseguiram graduação universitária, mas não foram longe. Ela se casou com um comerciante, virou dona-de-casa e teve três filhos, que lhe deram seis netos. Ele também se casou, possui dois filhos e dois netos, e trabalhou por três décadas num grande banco estatal que lhe pagava o suficiente. 


Voltaram a viver juntos durante a pandemia, cuidando-se mutuamente, das caminhadas matinais aos remédios de cada um. E passam horas ouvindo as batidas de um velho relógio na parede da sala-de-estar, ambos com as retinas ressequidas de tantas telas. Não mais se debatem contra fatos e feitos. Quando o futuro vira passado, de nada serve o que podia ter acontecido.

 

Ontem, vendo o pôr-do-sol à beira-mar, Maneco comentou que gostaria de reencontrar sua mãe, a avisá-lo de novo: “Tá na hora de lavar os pés, beber água e dormir”. Do seu lado, Jacira fez o sinal da cruz e ressalvou: “Sem pressa, meu irmão!”.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Pedacinho do céu


Como é curiosa e tragicômica nossa pátria de contradições, onde o futuro é tão incerto quanto a próxima nota de um chorinho que se repete, ano após ano, como se estivéssemos presos num ciclo sem fim. 

Há três semanas o Brasil respira ofegante, tenso, acompanhando os dias de horror e os desdobramentos da maior tragédia climática de sua história.

A devastação que atingiu centenas de municípios do Rio Grande do Sul (que poderia ter ocorrido no Rio, em São Paulo ou Alagoas) expôs o melhor e o pior de nós. De um lado, a generosidade de voluntários, vindo de todas as partes, empenhados em salvar vidas e ajudar aos desabrigados. De outro, a crueldade de marginais que invadiram casas, lojas e fazendas para saquear o que restava, e de predadores que, em meio ao caos, cometeram atrocidades até contra crianças. 




Fragilizada como uma teia de aranha numa tempestade tropical, a nação oscila ao sabor da popularidade passageira e dos interesses pessoais de meia dúzia de figuras. A cada quatro anos, escolhemos um novo “salvador”, nos planos estadual e federal, convictos de que "desta vez vai ser diferente", esperançosos e iludidos como quem troca de canal buscando algo melhor nos reality shows.

 

Já passou da hora de intensificar a educação cívica de nossa gente. Nas escolas e nas mídias sociais, é inadiável que surjam programas e campanhas focadas na importância da responsabilidade cidadã, do voto consciente, desvinculados de figuras messiânicas. Como fazer isso sem puxar a brasa pro nosso bife? Não sei, mas tem quem saiba entre nós.

 

Toleramos, segundo o IBGE, o desperdício de um terço dos alimentos aqui produzidos com a resignação de quem leva uma torta na cara e ainda aplaude. É emergente discutir políticas públicas e iniciativas privadas que otimizem a logística de distribuição, eduquem sobre o aproveitamento integral e o combate ao esbanjamento. Como fazer? Tem quem saiba, juro!

 

Enquanto com uma mão jogamos algumas moedas aos mendigos, com a outra entregamos o ouro aos senhores vorazes dos orçamentos públicos. E o “castelo” nunca fica do lado dos vulneráveis. “Eu quero que pobre se exploda”, diria o deputado Justo Veríssimo, personagem antológico de Chico Anysio.

 

E a fama de que somos um povo trabalhador? Ultimamente, o que mais existe são artesãos do ofício de não fazer nada ou de adiar para o dia seguinte. Boa parte condena os espertalhões e ao mesmo tempo deseja calçar seus sapatos, tirando uma lasquinha do banquete financiado pelo suor alheio. Quer coisa mais contraditória em nossa pátria amada? 

 

Vivemos numa democracia virtual. Um lugar onde todos têm direitos, mas responsabilidades são ignoradas, parecendo um asilo ou um circo decadente. O infame “jeitinho”, nossa suposta malandragem, nos afunda cada vez mais enquanto nos gabamos como se ainda fôssemos respeitados pelas conquistas de Pelé e Ayrton Senna, únicos heróis nacionais indiscutíveis. 

 

O gigante adormecido ainda ronca alto no berço esplêndido do país do futuro. Talvez um dia acorde, e os bons finalmente tomem as rédeas, aproveitando nossa abundância natural, em vez de reduzi-la a apenas mais uma nota triste do chorinho que se repete.

 

Mas tenha cuidado: se sábado você resolver almoçar uma feijoada e for pego numa blitz após tomar dois goles de caipirinha, prepare-se para uma multa salgada de quase R$ 3 mil e a perda da carteira de motorista. Se optar por drogas mais pesadas, talvez nem lhe incomodem.

 

Porém se você tem menos de 18 anos, pode até cometer crimes como atropelar, roubar, assaltar, estuprar e matar, sem muitas consequências, pelo menos se as redes sociais não derem visibilidade ao caso. Mesmo se estiver pilotando um Porsche, em velocidade superior três vezes à permitida na via.

 

E se possui uma arma em casa (eu não tenho, vou logo avisando!), mesmo que seja um estilingue ou um canivete, e acertar as nádegas do sujeito que invadiu o seu quintal para fazer sabe-se lá o quê, você vai responder por tentativa de homicídio e pagará indenização à vítima por danos físicos e morais.

 

Mas preste atenção: se o invasor for menor de idade, só Jesus na causa! E se estiver desarmado, você estará perdido! Vai ser acusado de tentativa de homicídio doloso e qualificado, por motivo indecoroso, infame ou torpe. 

 

Portanto, tome nota: antes de reagir (argumentando “tolices” como a defesa de filhas e netas), pergunte educadamente o que ele deseja, se está armado e se por acaso possui cédula de identidade, título de eleitor ou passaporte provando que já fez 18 anos. 

 

Mas veja bem: antes de sair por aí repetindo que cada povo continua experimentando do inferno que merece, faça a sua parte: berre até ficar rouco cobrando políticas de segurança pública que integrem ações sociais, como programas de educação e profissionalização para jovens em risco, além de reformas no sistema de justiça que busquem a reintegração, em vez de apenas punição (sobretudo para pobre, preto e puta).

 

Se, mesmo assim, você acha que estou exagerando e que “desta vez vai ser diferente”, quem sou eu para duvidar? Quem sabe o chorinho monótono que ecoa por aqui ganha novas notas e vira um "Pedacinho do céu". Sem tantas contradições, por favor!