A professora Inacinha ouviu baterem palmas à porta de casa, próxima à Praça da Faculdade e ao Cemitério São José, no Prado, em Maceió. Lá fora, deu de cara com Baiano e Fumanchu quicando bola na calçada, a recrutarem interessados no racha das quatro da tarde:
– Goiabinha tá aí? – quis saber um deles.
– Aqui não mora nenhum Goiabinha! – respondeu uma zelosa tia – O nome é Paulo Fernando Paraíso de Carvalho, por sinal, um bonito nome.
Anos depois, já funcionário do Banco do Brasil, lembrava disso toda vez que seu nome completo era mencionado no ambiente de trabalho e os colegas – inclusive alguns comparsas de infância – completavam numa só algazarra:
– Por sinal, um bonito nome!
Teimoso como poucos, sim, mas nunca deu motivos para queixas sobre pontualidade, lisura ou desempenho no trabalho, embora não tolerasse usar gravata. Como não podia mudar o padrão de vestuário estabelecido pelas normas da empresa, cortava-a pela metade, a tesoura, e amarrava o resto ao pescoço sem o menor compromisso com a elegância.
Fazia sentido. Por que alguém, lutando pela sopa de cada dia numa cidade litorânea, com temperatura média de 26ºC, deveria macaquear um hábito europeu? A gravata (cravate, que no idioma francês significa “croata”) surgira na França do final do século 17. Os gauleses, conhecidos pela afeição à moda, adaptaram uma indumentária do regimento croata, de passagem por Paris em 1668. Usava-se cachecol de lã ou linho para aquecer o pescoço nos dias de inverno.
Goiabinha, porém, já fora bem mais teimoso. Contam antigos companheiros – com quem dividiu uma república em Viçosa, interior de Alagoas, no início da carreira profissional – que certa noite, após o jantar, ele se preparava para descascar a sobremesa quando começou a discutir com alguém sobre política ou futebol, com a banana em riste. O tempo passava e nada. Pouco antes de dormir, ele ainda argumentava balançando a fruta, àquela altura imprestável até para vitamina com farelo de aveia.
Sindicalista de fibra – louve-se, sem qualquer filiação político-partidária com agenda de interesses particulares –, daqueles que escaparam por um triz de cassetetes, choques elétricos e paus-de-arara, nem a gagueira lhe inibia de proferir inflamados discursos nas assembleias dos bancários. Quando subiam a temperatura e o tom, então, batia duro com a língua na perereca móvel sem medo de terminar banguela ou de perder o cargo de confiança que exercia.
A fama de teimoso tornou-se lendária quando Goiabinha, contrariando a opinião de vários amigos, decidiu não assinar o termo de opção pelo Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS), sob o argumento de que sua liberdade não estava à venda por dinheiro nenhum no mundo. “Dinheiro só compra pessoas baratas”, pregava.
Resgato que o FGTS foi criado em 1966, a pretexto de assegurar ao trabalhador demitido sem justa causa certa segurança financeira (cada ano trabalhado equivalia ao salário de um mês). Em contrapartida, o empregado abriria mão da chamada estabilidade decenal (quem atingia 10 anos de trabalho só podia ser demitido por justa causa) prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), regra que só seria extinta em 1988.
Algo que deixava Goiabinha furioso eram as chamadas propagandas enganosas que infestavam jornais, rádios e tevês, na segunda metade dos anos 1970. E uma livraria e papelaria famosa na Rua do Livramento, além de popularizar slogan de terrível mau gosto (“se no Recife tem, na Casa... também tem”), pisoteando os calos de quem vivia numa capital de menor porte, orientou as balconistas a nunca admitirem a falta de um produto. Quando se pedia uma mercadoria em falta, respondiam sem qualquer pudor: “não tem, mas vai chegar”.
Aborrecido com aquilo, um dia dirigiu-se ao balcão da famosa loja e falou alto a ponto de ser escutado por outras pessoas presentes:
– Aqui tem o livro Anatomia Patológica?
– Qual o autor?
– Paulo Fernando Paraíso de Carvalho.
– Não tem, mas vai chegar! – disse a atendente, quase acrescentando "por sinal, um bonito nome".
– Vai chegar uma porra! – protestou Goiabinha, para espanto geral – Quem lhe disse que escrevi algum livro?!
Com o passar dos anos, perdi o contato com ele. Há duas semanas, contudo, um amigo em comum compartilhou comigo áudio-mensagem onde Goiabinha, visivelmente comovido, celebra ter escapado das garras cruéis da covid-19. Teimou tanto, imagino, que o abominável vírus das trevas desistiu.
Dá para imaginar o desfecho da encrenca no hospital, ele relutando com a besta-fera, com o dedo indicador da mão esquerda em riste:
– Nem vem que ainda tem querosene em minha lamparina!
– Deixe de ser teimoso! Quem você pensa que é?
– Não sou ninguém, mas não abro nem para um trem sem freio quando entro numa briga! Sai pra lá, fi-da-peste, infeliz-das-costas-ocas! Tá aqui pra você! – e encerra a prosa com uma banana daquelas de estalar a palma da mão direita na dobra do antebraço esquerdo, de punho cerrado.
Domingo que vem, 4 de abril, Goiabinha completa 82 anos muito bem vividos. Deve almoçar com a mulher Lúcia, os filhos Paulo, Eduardo, Andreia e Adriana; as netas Caroline, Beatriz e Larissa, além dos três bisnetos Lucas, Téo e Dante. Por sinal, bonitos nomes, como diria tia Inacinha.
Antes do cafezinho, com os bisnetos no paraíso da sala de estar, cairia bem uma colherada de doce de goiaba em calda com creme de leite. Sobremesa mais que merecida.