Já se foi o tempo em que, de tardezinha, mesmo nos bairros mais nobres das grandes cidades, era costume as vizinhas se darem boa noite, levarem cadeiras de balanço para as calçadas e baterem com gosto a língua nos dentes, retirando as aranhas da garganta, a falarem de tudo e de todos enquanto aguardavam a janta.
Vivemos em casulos domésticos desde antes da pandemia, o que tem nos isolado cada vez mais. Grades ou telas nas janelas não conseguem mitigar o tédio de almas carentes de calçadas e quintais, engolidas pelo uso desmedido de celulares e pela programação da TV divulgando da forma mais cruel a barbárie da hora.
Tiro por mim, aqui debruçado sobre uma triste constatação no fechamento do balanço de meus atos e omissões durante o ano. Moro há tempos em prédios residenciais e, afora os cumprimentos inevitáveis e protocolares no elevador ou na garagem, não me recordo de haver trocado três palavras com vizinhos sobre algo de fato relevante, capaz de propiciar retorno reflexivo mútuo.
Ilustração: Umor |
Nunca contei a meus vizinhos, por exemplo, de minha hipertensão arterial ou do déficit pulmonar crônico de que cuido com extremo zelo e custo para retardar ao máximo a aventura de uma internação hospitalar. Mas também nada sei (nem procurei saber!) da possível agonia deles com aluguel em atraso, disfunção erétil, frustração profissional, ingratidão de filhos, menstruação atrasada, queda de cabelo, risco de desemprego ou suspeita de chifre. É a indiferença recíproca escorrendo pelas frestas das portas.
Quando morei pela primeira vez na Bahia, no começo dos anos 90, certa noite ouvi gritos que vinham do hall de elevadores. Uma moça aflita, na casa dos 25 anos, estapeava a porta de meu apartamento, a pedir por tudo que a abrisse. Tinha hematomas em um dos olhos e sangue nos lábios, machucados. Acabara de ser espancada por um sujeito que escapuliu correndo pela escada de incêndio sem dizer uma só palavra.
Fiz o que pude para aliviar as dores da visitante e de um filho de três ou quatro anos que a tudo assistia, perplexo, sem derramar uma lágrima sequer até cair no sono. Ela não quis, de jeito nenhum, prestar queixa na delegacia, apreensiva com as consequências para o agressor. Ainda não se falava em Lei Maria da Penha para tratar casos de violência doméstica, mas já era bastante difundida a terapia aplicada por outros presos aos que se faziam de valentes com mulheres e crianças indefesas.
Uma semana depois, encontrei o casal na recepção do prédio. Aparentemente, ficaram constrangidos quando me viram. Estavam de mãos dadas, trocando arrulhos e olhares. Soube mais tarde que o marido ficara inconformado, naquela noite, com a proposta recebida de sua mulher, que se dizia apaixonada por uma amiga querida e pretendia partir, levando consigo a criança, mesmo abrindo mão de direitos sobre os bens do casal. Não sei o rumo que o caso tomou.
Dez anos adiante, já morando em Brasília, uma colega de trabalho, que também chegara do Nordeste trazendo na bagagem hábitos atávicos como compartilhar com vizinhos iguarias feitas em casa (canjica, pamonha, fatias douradas ou rabanadas etc.), estranhou bastante algo que lhe aconteceu.
Em sinal de predisposição à boa vizinhança, ela quis aproximar-se de sua vizinha de andar oferecendo metade de um bolo cremoso de milho verde com coco ralado que havia preparado.
Decepcionou-se. No dia seguinte, viu o embrulho que havia oferecido atirado na lixeira do subsolo. A vizinha, desacostumada com esse tipo de mimo, provavelmente temeu envenenamento ou coisa parecida e o descartou. Ainda bem que restaram dois dedos de lucidez: não cometeu a insanidade de doar o pacote à faxineira, se desconfiava de seu conteúdo. Também não sei do desenrolar dessa história.
Mas nem tudo está perdido. Em Alagoas, sei de uma viúva que, aos 83 anos, morando sozinha por opção (apesar de matriarca de uma prole de nove filhos, 23 netos e 24 bisnetos), nunca se acostumou a cozinhar exclusivamente para si própria. Quase todo dia minha mãe compartilha seu almoço com os empregados do prédio onde reside, recebendo em troca cuidado e gratidão.
Tudo bem, a exceção não conta! O mundo precisa – a partir de mim, reconheço – de mais gente aprendendo a lidar com o vizinho de porta, de prédio, de rua. Mesmo nesta época do ano, onde paramos para refletir sobre o que se fez ou deixou para depois, passamos uns pelos outros com o desdém de nossos silêncios, de nossa cara incrustada de convicções inabaláveis.
Penso que a meta fatal de alguns deprimidos – não é o meu caso, que fique bem claro! – somente é atingida porque falta um vizinho na hora mais solitária que pare por dez segundos, olhe bem dentro de seus olhos e lhe deseje, genuinamente, um ano novo feliz. Muda tudo!