quarta-feira, 26 de julho de 2023

Não custa tentar

Meu avô deve pensar que está em baixa na memória afetiva dos netos porque um deles passou o dedo em sua testa e brincou: “Vô, de Uber, dá 10 reais do cocuruto à ponta do seu nariz!”. E outro completou: “Vô é legal, mas mija de hora em hora!”.

 

Foto: Poliedro / Divulgação (Facebook)

Em meio à algazarra, imaginei o troco (com delicadeza, claro!): “Pois é... Tomara que um dia vocês também cheguem lá e escutem isso de seus netinhos...”. Creio que evitou polemizar para não parecer intolerante, agourando os ramos noviços de sua própria árvore genealógica. 

 

Pensei em abraçá-lo e pedir que relevasse os gracejos de meus primos. Chega uma hora em que até a expansão desenfreada do desmatamento capilar, a próstata crescida e a velhice devem ser encaradas como conquistas. Mas me contive: ele nunca gostou dessa coisa de abraços (e beijos) em público, nem com minha avó.

 

Deveria haver um distintivo para compensar os avós contra os infortúnios a que estão sujeitos. Sei lá, uma tatuagem entre as sobrancelhas, como um estigma, que concedesse certos privilégios: garantia de acesso livre a cinemas, museus e teatros; proteção especial das autoridades constituídas; gratuidade nos correios para intercâmbio de livros com os sebos, disponibilidade de um ouvidor geral para acolher e encaminhar queixas junto aos santos, entre outros. Eis aqui uma dica de projeto de lei, com forte apelo popular, a ser submetido à deliberação de órgãos legislativos.

 

Os netos de hoje andam cada vez mais espertos. Outro dia, na praia, ouvi um menino (8 anos, se muito) falando com o pai e fiquei impressionado. Sim, conversava com o pai, mas aposto que seja neto de alguém.  Dizia do susto que tomara com a arrebentação de uma onda que lhe fizera engolir água salgada: “Pai, eu estava no raso, pensando na vida...”  

 

Só faltou filosofar sobre o sal e a doçura de viver; ou convencer seu pai de que, se não existe vida extraterrestre, a vastidão do Universo constitui um grande desperdício de espaço, algo incompatível com a inteligência divina. Mas não chegou a tanto, ainda bem! Foram apenas alguns goles de água salgada.

 

Se visse a cena, é provável que meu avô comentasse com a gente: “Ah, crianças, acreditem, eu só fui pensar seriamente na vida depois dos 30 anos, já casado e pai de três, quando resolvi largar o cigarro e beber menos. Ultimamente, me contento com duas ou três taças de vinho, em momentos cada vez mais raros. E lá se foram 35 anos em que não me dou o desfrute de três baforadas...”. 

 

Talvez acrescentasse, como li numa crônica que ele escreveu: “Até cinco ou seis anos atrás, todas as vezes em que tomava uma sopa em colheradas lentas, acompanhada de um pãozinho francês, batia saudade dos tragos que dei, daquela breve vertigem que me esfriava os dedos, deitado numa rede, a pensar na vida...Que vício desgraçado!”.  

 

Desconfio de que a gozação por parte de meus primos seja reflexo do fato de terem nascido, assim como eu, com livre arbítrio para escolher para qual clube torcer, desde que fosse o Vasco. Nada demais para quem, desde a vida intrauterina, dormia embalado por uma canção de ninar que começava assim: “vamos todos cantar de coração, a cruz de malta é o meu pendão...”. 

 

Ano passado, recebi de meu avô uma mensagem cujo arremate me comoveu: “Assumo minha culpa por nunca ter dito de todo o amor que sinto pelos meus netos, sentimento que não impõe condições nem espera nada em troca, exceto, se não for querer demais, um sorriso e dois dedos de prosa, de vez em quando...”.  

 

E me aconselhava a, por enquanto, deixar de lado o futebol. Dizia que só no YouTube vou saber quem foram Romário, Edmundo, Juninho Pernambucano e Felipe, que fizeram a cabeça de meu pai. Assim como Dinamite, Andrada, Zanata e Geovane fizeram a dele. Ou como Ademir Menezes, Barbosa, Danilo e Ipojucan balançaram o coração de meu bisavô, que nem cheguei a conhecer.

  

Brincalhão – os netos tiveram a quem puxar! –, agora está me sugerindo conversar com meus primos para tentarmos um esporte menos estressante, como o muay thai (boxe tailandês). E fala de seu desgosto quando nos vê cabisbaixos, com celulares nas mãos até na hora do almoço. 


“Tudo, menos celulares na mesa! Notem que já não vemos jogadores de futebol se abraçando após uma partida, como acontece com lutadores, que seguem amigos mesmo após uma sangrenta refrega onde cada um tenta acertar o outro com socos, cotoveladas e pontapés...” – pondera.

 

Não custa tentar. Vou chamar meu avô para jogar xadrez, baralho, dominó ou pega-varetas com a gente. Quem sabe nos ajuda a refletir sobre o sal da vida e a doçura de ainda tê-lo entre nós.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Por isso tô aqui!

Correu o mundo, semana passada, a notícia de que a madre superiora Teresa Agnes Gerlach, encarregada do Mosteiro Carmelita da Santíssima Trindade em Arlington, no Texas, Estados Unidos, foi acusada de enviar mensagens de texto com conteúdo sexual a um sacerdote, identificado como padre Philip Johnson.

 

Embora tenha confessado o envio das mensagens, ela alegou que nunca houve intimidade física entre eles. Demonstrando remorso durante uma audiência na diocese, Teresa disse que o vacilo foi motivado pelo amor que nutre pelo padre. "Eu cometi um erro terrível. Não estava em meu juízo perfeito. Até uma freira pode cair"

 

Por coincidência, isso me fez recordar de outro padre Johnson (deve estar bem velhinho!), um missionário canadense que viveu no Brasil em meados do século passado, que me matou a curiosidade sobre algumas hipóteses para o nome da missa celebrada na véspera de Natal. A mais aceita pela fé católica, segundo ele, diz que um galo teria cantado à meia-noite do dia do nascimento de Jesus, anunciando a chegada do Messias – a única vez que um galo cantou antes do amanhecer. 


Há quem diga que um galo cantou quando o apóstolo Pedro negou três vezes conhecer Jesus. Outros afirmam que o animal simboliza o amanhecer, celebrado pelos pagãos com gratidão ao Deus-Sol. Ou que a missa leva esse nome porque acaba tão tarde que os galos já estão "tecendo a manhã", como no poema escrito por João Cabral de Melo Neto, que levou mais de oito anos e 32 versões para ser concluído.

 

De fato, padre Johnson era bastante curioso, interessado nos mais variados assuntos, uma verdadeira “enciclopédia Barsa”. E lidava na paróquia com muitos adolescentes cheios de cravos, dúvidas e espinhas, a quem oferecia sábios conselhos, merecendo, por isso mesmo, o respeito das famílias do bairro. 

 

Tanto respeito, inclusive, o levava a benzer casas recém-construídas. Nada cobrava para si nem para a Igreja, mas exigia três coisas: uma barra de enxofre, um prato de sal grosso e uma lata de carvão vegetal. Só então tinham início as orações e o enaltecimento da imagem de Nossa Senhora. Depois, partiam para o quintal onde estava a cisterna ou o poço, onde ele despejava os materiais requisitados. E a casa estava abençoada.

 

Anos mais tarde, depois que retornou para a América do Norte, descobriu-se a lógica “espiritual” do benzimento: o sal grosso é fonte de minerais e de iodo, elementos importantes para a nutrição e a saúde; o enxofre fortalece a imunidade e participa da produção de colágeno; e o carvão, que além de eliminar cheiros e sabores desagradáveis da água, é grande aliado no tratamento de gases gastrointestinais, combate o inchaço e dores abdominais.

 

Curioso como poucos, numa época em que nem se cogitavam avanços científicos do porte de um chatbot online de inteligência artificial, padre Johnson sabia da vida de todos os moradores do bairro. Era estuário e cofre das confissões e segredos comunitários, dos pecadilhos veniais aos mais encardidos.

 

Fotografia: Dedé Dwigth


Certo dia, Teresa (outra coincidência, acreditem!), uma loirinha que morava no bairro, curtia cinema, teatro e dançar solta, livre e leve, ao ritmo  de Os Embalos de Sábado à Noite, procurou o padre Johnson bem cedo, indo ao ponto:

– Padre, eu sei que pequei, mas tô arrependida. Cometi um erro terrível. Não estava em meu juízo perfeito.

– Como foi isso, minha filha?

– Nem faço ideia. Me pegou desprevenida, juro! 

– Sei… E daí? 

– Daí que ele me perguntou se podia botar pra fora. 

– E você?

– Quase infarto. Tinha tão pouco tempo que a gente… 

– Quanto?

– Três semanas.

– Só?! Já tinha acontecido algo mais sério entre vocês?

– Nada demais… Só uns abraços apertados, dançando "Je t'aime... Moi Non Plus"Something... E um selinho na boca, vai! 

– Pois é… E ele?

– Ele o quê, padre?

– Botou pra fora?

– Nem me fale…

– Botou ou não botou?

– Não me deixe mais acanhada…

– Veja, filha, foi você que veio me procurar. Só posso ajudar se souber o que ocorreu – pondera o confessor, no auge da excitação de todo curioso quando prestes a descobrir um segredo felpudo.

– Não sei se vou ter coragem de contar.

– Por que não? O pior já passou, imagino…

– Sei não… Era enorme, padre…

– Eu devia ter desconfiado desde domingo... Você aqui na missa ao lado dele, toda animada... Tinha uma coisa esquisita no ar…

– Na hora, o susto foi grande, fiquei muda. Fechei os olhos e rezei baixinho…

– Seja mais clara, filha, me conte tudo o que houve.

– Assim que ele desabotoou, aquele troço deu um pulo…

– Você chegou a apalpar?

– Como?

– Filha, das passagens bíblicas que tratam do pecado da luxúria, uma das mais incisivas é a que está em Gálatas 5:19: “Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem”. E em Colossenses 3:5-6, tem outra referência: “Assim, façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês: imoralidade sexual, impureza, paixão, desejos maus... É por causa dessas coisas que vem a ira de Deus sobre os que vivem na desobediência”. Mas, me diga uma coisa: o que você tá chamando de “troço”?

– Padre, tô falando da hérnia no umbigo dele… Parece uma bola de ping-pong de couro! – explicou, com um sorriso ambíguo.

– Eu, hein?! Pensei que…

– Também pensei, padre… Por isso tô aqui!




quarta-feira, 12 de julho de 2023

Divinas tetas

Numa época em que se recorria muito a falas estereotipadas, o humorista Max Nunes afirmou que “o casamento é como a pessoa que quer tomar um copo de leite e compra uma vaca”. E o cartunista, escritor e dramaturgo Millôr Fernandes completou: “se, de vez em quando, o leite azeda por aí, não tenho nada com isso; a vaca não é minha. Escolham melhor na próxima vez”. 

 

Mais tarde, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor contradisse seus velhos amigos. “Para todos os homens que perguntam ‘por que comprar a vaca se você pode beber o leite de graça?’, aqui está a novidade: hoje em dia, 80% das mulheres são contra o casamento e sabem por quê? Porque perceberam que não vale a pena comprar um porco inteiro só para ter uma linguiça!”. 


Reprodução/Redes Sociais

Sobre vacas, aliás, você sabia que uma startup gaúcha (a CowMed) conseguiu decodificar, com Inteligência Artificial (IA), o que elas falam, pensam, querem ou sentem? Uma coleira tecnológica que interpreta o comportamento bovino foi apresentada ao mercado como uma ferramenta poderosa para ajudar os pecuaristas a se comunicarem melhor com seus rebanhos. 

É uma peça de nylon, com autonomia de cinco anos, capaz de monitorar os animais por 24 horas, em tempo real, enquanto o criador recebe, no celular, notebook ou tablet, uma espécie de tradução. Ajuda-o a descobrir com antecedência as necessidades mais prementes das vacas. O aparelho analisa cada movimento ou som e informa o que pode ser: cansaço, cio, dor, fome, sede etc. Ansiedade, bullying, compulsão por redes sociais ou transtorno obsessivo-compulsivo, ainda não. 

 

Também monitora variáveis como tempo que leva se alimentando, tempo de ruminação, de descanso, de caminhada, qualidade da respiração etc. Com esses dados, utiliza-se a IA para interpretar a “alma” da vaca.

 

Tenho para mim que essa ferramenta terá uso adicional bastante útil noutro tipo de rebanho, mas isso seria assunto para outra crônica.

 

A peça identifica ainda, com até cinco dias de antecedência, se a vaca vai ficar doente. “Existem sinais clínicos imperceptíveis, porque o bovino, por ser uma presa, tem a característica de esconder a doença. Com o sistema, é possível analisar os sinais e fazer um diagnóstico precoce”, pontuou um dos acionistas da CowMed.  

 

Em resumo: após o pagamento da primeira parcela, o produtor recebe o kit de instalação com colares, antenas, material de treinamento, acesso à plataforma web e o aplicativo. Precisa apenas ligar o equipamento na tomada e colocar uma coleira em cada animal. A comunicação se dá por radiofrequência e Wi-Fi. A partir daí, só Deus sabe o que vai rolar na “conversa de pé-de-orelha”.

 

Foi-se o tempo das vacas magras, ainda que os ossos nos ofereçam as melhores sopas. 

 

Essa “humanização” me fez recordar da célebre crônica “Por vários motivos principais”, de Stanislaw Ponte Preta, acerca de um jantar envolvendo a fina flor do high society da capital da República, quando uma provecta senhora declarou que adorava a sua obra. E mais: que estava ansiosa para ler o próximo livro, cujo título, se possível, gostaria muito de saber em primeira mão.

 

“Fiquei meio chateado de revelar o nome... Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse: Vaca, Porém Honesta” – escreveu o genial cronista.

 

Segundo ele, “a madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original”. Vai ver ponderou que por aqui vaca é sinônimo de concubina, devassa, galinha, oferecida, marafona, meretriz, piranha, promíscua, prostituta, puta, quenga, rameira, rapariga, tolerada, vadia, vagabunda, dentre outros. 

 

Quase sempre, o uso desses sinônimos não passa de exagero em relação à vizinha ou à amiga do marido. Se bem que já testemunhei machão brincando que “nunca viu gato de botas, mas já viu vaca de salto alto”. Só depois do divórcio, admitiu outra pesada sentença: “Duro não é suportar o peso dos chifres, é continuar sustentando a vaca”. 

 

Essa visão distorcida sobre a gloriosa fêmea do gado bovino, mãe de leite de quase todos nós, talvez tenha sido ampliada quando Gal Costa, no Rock in Rio, em 1994, subiu ao palco com os seios à mostra para cantar "Brasil", de Cazuza.

 

“(...) Brasil, mostra a tua cara.

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim!

Brasil, qual é o teu negócio?

O nome do teu sócio?

Confia em mim! (...)”

 

Aos mugidos, a plateia delirava, por certo desejando ouvi-la (em vão, registre-se!) cantando "Vaca Profana", que Caetano Veloso escrevera para ela 10 anos antes:

 

“(...) Dona das divinas tetas,

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas! (...)

 

Com a criação da CowMed, nossas vacas nunca foram tão bem tratadas e se distanciam do indesejável caminho do brejo. Se vamos descobrir que são mentirosas, só o futuro dirá. 

 

Quem sabe os caretas pendurados nas tetas orçamentárias da Pátria-mãe se animam a fazer algo parecido pela massa que passa fome, nutrindo-se da esperança de levar, pelo menos, uma vida de gado. 

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Basta um copo d'água

Tudo bem, era o delegado de uma cidadezinha do interior, mas, antes de tudo, meu velho amigo havia décadas. Porém foi inflexível naquela tarde:

– De jeito nenhum! Tu entende de banco. Deixa que cuido de meu trabalho.

– Ele vai morrer à míngua, velho!

– Sei o que tô fazendo, não te mete…

 

Enquanto ele conversava ao telefone, eu circulara pela delegacia e dei de cara com um bêbado deitado numa cela, nu cintura acima, cheirando a chuva, suor, cerveja e vômito, a implorar num fiapo de voz: “… Um copo d’água pelo amor de Deus! Tô me acabando de sede!”


Fotografia: Dedé Dwight 

Tive pena. Preso na noite anterior, num comício na praça da Matriz, ameaçara o prefeito com uma peixeira. “Porte de arma branca e tentativa de homicídio”, segundo o boletim da ocorrência.

 

O prefeito defendera no palanque a candidatura de seu vice à sucessão municipal, enaltecendo supostas virtudes: “É pai de família decente, trabalhador, honesto, comprometido com os verdadeiros cidadãos...”

 

Nisso, um pacato cidadão que a tudo assistia da mesa de um boteco (e acabaria preso) interrompeu o discurso falando em voz alta, provocando risos na plateia:

– Dá o rabo pra ele... 

– O quê cê disse, cabra safado!? – reagiu o orador, com fama de garanhão, valente e desbocado – Eu como o seu e o dele, seu filho da puta!

– Safado é você! Desça daí se for homem! – retrucou o outro com uma faca que, em meio segundo, abriu uma clareira amazônica na multidão.

 

O prefeito refugou ou não teve tempo de descer do palanque. Três policiais desarmaram o desafiante, conduziram-no à delegacia, algemado e aos bofetões. 

 

Eu nada sabia quando encontrei o sujeito preso, quase 24 horas depois, numa ressaca industrial, privado de água “para pensar na merda que fez”, segundo um dos policiais.

 

Quis oferecer uma garrafa de água gelada para atenuar o sofrimento, mas percebi que não seria sensato interferir na liturgia em curso sem consulta prévia à autoridade no recinto. Amigos, amigos, algemas e tapas à parte.

 

Nunca fui de reclamar contra a bebida e suas consequências, embora já não beba mais como antes. Já gostei e Deus sabe com que desgosto lamentei os vacilos a que alguns goles de vinho a mais me levaram. 

 

Nas sextas-feiras, batia uma euforia inexplicável que me empurrava às taças e pratos. Aliás, não fosse a ameaça de alterações metabólicas e neurológicas, levando os seres humanos à falência precoce de múltiplos órgãos (fígado, estômago, pâncreas, cérebro etc.), não tenho dúvida de que os próprios médicos nos aconselhariam a beber mais vinho, como forma, inclusive, de tolerar decepções sem enlouquecer.

 

Nem sei se entendia de serviços bancários, como se disse a meu respeito naquela tarde, mas nunca vi ninguém procurar um banco por prazer, como quem vai ao boteco, ao cinema ou ao restaurante. Por isso, nunca neguei a ninguém um copo d’água (ou um cafezinho) antes de iniciar uma conversa. Tinha comigo que desarmava os espíritos.

 

Já em casa, noite alta, pensava no que teria levado aquele sujeito a beber tanto, solitário, mesmo diante de uma multidão. No porquê o elogio ao candidato o fizera desejar ao prefeito uma das mais dolorosas experiências, segundo relatos (óbvio!). No que teria acontecido se os policiais não fossem tão ligeiros.

 

Há pouco mais de três décadas, eu sabia que se instalara no Brasil um certo desencanto com a classe política, a ponto de o próprio irmão do presidente da República ter apresentado provas do envolvimento dele num caso de desvio de dinheiro. Usou-se a campanha eleitoral como caixa 2. Desviaram-se verbas públicas criando-se empresas fantasmas e contas no exterior. Pior: até ali, ninguém havia sido preso, tomado uns sopapos, nem obrigado a passar horas sem um copo d’água sequer.

 

Hoje, não sei por onde andam ou o que fazem (se é que ainda se mexem) os personagens deste caso, nem gostaria de perguntar a meu amigo, já aposentado, mas me pego aqui especulando sobre possíveis desdobramentos. 

 

Vai ver o cidadão, ao ser liberado, sóbrio, voltava pra casa quando foi vítima de uma emboscada, sendo espancado até desfalecer num monturo qualquer. Capangas ligados ao prefeito circulavam nas proximidades, mas, por falta de provas, deu-se o caso por encerrado em questão de minutos. 

 

Ou teria encontrado o prefeito na feira livre, comprando os ingredientes para um regabofe com seus correligionários. Sentindo-se ultrajado por fatos precedentes, tomou das mãos do açougueiro uma serra e golpeou o pescoço do garanhão (que, segundo boato, vinha dando em cima de sua mulher, uma servidora lotada na cantina da prefeitura).

 

Ou, mais provável, depois de alguns insultos recíprocos e de um copo d’água para cada um, ambos recordaram do troca-troca de figurinhas na hora do recreio no grupo escolar e tudo acabou num abraço apertado. Daqueles com tapas nas costas que beiram o limite entre a cordialidade e a fratura de costela. 

 

Não é por nada, mas continuo convencido de que basta um copo d’água para diluir alguns espíritos inquietos em certas ocasiões. Até a próxima decepção, pelo menos.