quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

"Carpenters" em Alagoas

Muitos brasileiros nascidos no Sul/Sudeste migraram para o Nordeste nos anos 70/80 em busca de oportunidades de ascensão profissional.  Além de coragem e esperança, traziam consigo o medo de encontrar a paisagem árida da caatinga com carcaças de seres derrotados pela fome e pela sede, como nos cenários espelhados nas obras clássicas Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892  1953), e Retirantes, de Cândido Portinari (1903  1962).

Com Braulino Lansac não seria diferente. Nascido em Araçatuba, polo universitário e gastronômico do Nororeste paulista, de economia bastante diversificada, ele teve uma grata surpresa ao chegar para trabalhar na pequena Anadia, na Zona da Mata alagoana, dando de cara com o horizonte verde dos canaviais em ponto de corte para a safra de açúcar e álcool da região. 

Viu também que não lhe pesavam quase nada os 90 km que separavam Anadia das praias mornas e dos coqueirais do Litoral alagoano. Aquele seria o seu destino a partir de então, todo fim-de-semana, com Dayse, sua mulher, e os filhos.

Sentia-se bem. Mesmo abrindo mão do sonho de ser professor universitário de Educação Física  além de ex-atleta amador de basquete, apaixonou-se pela “área” nos Jogos Olímpicos do Canadá 1976, que assistiu de perto —,  ficou feliz com a carinhosa recepção dos moradores da pequena cidade, o clima amistoso de trabalho e a perspectiva de crescimento na carreira profissional. 

Ele me disse outro dia que, ao retornar de Maceió no final de uma tarde de domingo, retirava “a tralha de praia” da velha Belina na porta de casa quando ouviu ao longe “Solitaire” (clique e ouça), canção de que mais gostava no repertório da dupla norte-americana Carpenters. Chegou a comentar com Dayse: “Puxa, alguém ouvindo Carpenters em Anadia? Quanto bom gosto, hein?!”


Carpenters foi uma dupla de New Haven, Connecticut, composta pelos irmãos Karen e Richard Carpenter, que fez muito sucesso com seu estilo musical soft, bem diferente do hard rock típico das bandas dos anos 70. Do seu modo leve de ser, em 14 anos a dupla vendeu quase 100 milhões de discos pelo mundo afora. A carreira chegou ao fim com a morte prematura de Karen no começo de 1983, aos 33 anos, vítima de parada cardíaca resultante de complicações de uma anorexia nervosa.   

Mas Braulino, "meu amigo Charles Brau"  tratamento carinhoso que lhe dou desde que passamos a trabalhar juntos nos anos 80, numa  alusão tola à canção Charlie Brown, de Benito di Paula    continuava a descarregar sua Belina. De repente, uma nova música no ar, mais outra, todas dos Carpenters

Ele conhecia aquele  disco de cor e salteado e achava pouco provável existir mais de um vinil em Anadia. Mas, de onde estaria vindo aquele som? Logo percebeu que os acordes saíam da cela da cadeia pública, que ficava defronte a sua casa. 

Luís André, seu filho mais novo, correu até lá, aproximou-se das grades e perguntou ao detento que, em êxtase, curtia aquelas músicas: “Que disco é este?” Mesmo assustado com o flagrante, o rapaz não mentiu: “É de seu pai... Maria me emprestou para que eu ouvisse no fim-de-semana. Diga nada não pra ele, senão vai mandar a moça embora...” 

Quando soube do que aconteceu, Braulino ficou bastante aborrecido com a ousadia da empregada doméstica em mexer em seus discos. Nem ele mesmo correria o risco de emprestar a alguém um de seus elepês favoritos, que poderia retornar danificado por uma agulha desgastada de uma vitrola qualquer.

Mas sempre teve o coração maior do que o corpanzil de quase 1,90 metros de altura.  Acabou relevando o ocorrido e perdoou Maria. Na época, já  estava acostumando com o jeito solidário de ser do nordestino, sobretudo do interior, que sabe compartilhar alegria e tristeza, saúde e doença, fartura e escassez. Afinal, dizia ele, “...já éramos íntimos dos policiais e dos presos há algum tempo”. 

A intimidade, nesse caso,  tinha explicação de cinema (ou de tevê): toda noite, na hora do Jornal Nacional, Braulino aumentava o volume do aparelho e deixava abertas as duas lâminas da porta da frente da casa  para que os detentos, empoleirados nas grades, assistissem a Cid Moreira e Sérgio Chapelin e, em seguida, à novela da oito. "O pior cárcere não é o que aprisiona o corpo, mas o que asfixia a mente e algema a emoção" (Augusto Cury).  

Em contrapartida, enquanto passava o dia fora trabalhando, sua família e sua morada estavam muito bem protegidas, tanto pelos policiais como pelo olhar cuidadoso dos encarcerados. A troca era justa.


Braulino, meu amigo "Charles Brau", nunca mais deixaria o Nordeste. Depois que se aposentou, há 25 anos, escolheu a Bahia para viver o resto da vida, onde agora curte seus primeiros bisnetos. Deve ter um punhado dessas histórias para contar quando eles crescerem. 

domingo, 26 de janeiro de 2020

O velho, o menino e o livro

Não sei o que se passava pela cabeça da criança que parou, olhou e me escutou dedicar a seus pais um exemplar do livro Só Eu Sei, quando do  lançamento em Brasília, sexta-feira, 17.

Imagem: Débora Marinho
Talvez imagine que sou um escritor de verdade, capaz de escrever fábulas daquelas que ouviu de seus pais antes de dormir e que agora lê para o irmão caçula.

Para uma criança, fábulas são muito mais do que a verdade. Não porque contam que fantasmas, bruxas e monstros existem, mas porque mostram que eles podem ser vencidos.

Não sei o que se passava por sua cabeça ao ver o título do livro: Só Eu Sei. A gente nunca sabe de tudo nessa vida. Por isso mesmo, nem deve levá-la tão a sério. 


Na sua inocente curiosidade, talvez já pense como Bertrand Russel (1872 – 1970), para quem havia “dois motivos para ler um livro: um, é o prazer em lê-lo; o outro, a possibilidade de melhorá-lo".

Mas sei o que se passou por minha cabeça ao ver aquela imagem pela primeira vez. Tenho um amigo que diz que escritor e fotógrafo se utilizam das mesmas ferramentas, mas enquanto um descreve uma cena com meia dúzia de palavras o outro descreve meia dúzia de cenas com uma imagem.

A imagem que abre este texto, quem sabe, revela o possível nascimento de um escritor de verdade. Nada é tão nosso quanto nossos sonhos de criança. "O que é um adulto? Uma criança de idade", dizia Simone de Beauvoir (1908  1986).


Se for assim, só eu sei como me fará bem contribuir para que Rafael – neto de meu irmão Agostinho e filho de meu sobrinho-afilhado Michel – ame livros acima de todas as coisas. 


"Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante", dizia Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1986). A imagem de Rafael me dá a ilusão de que aquele pode ser um pouco mais útil.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Roteiro de viagem

Existem cartilhas e cartilhas. Umas surgem nos primeiros anos de nossas vidas, a revelar-nos os segredos da arte de ler, escrever, somar, multiplicar e dividir. Outras, como Roteiro de Viagem, nascem bem mais tarde. São como frascos de vivências a cruzarem o nosso caminho. É preciso estar atento para não perder a chance de descobri-los, admirá-los e, mais que tudo, beber de uma fonte de reflexões que traduzem a essência do mundo corporativo. 

Era uma cartilha simples que eu gostaria de ter recebido de meu pai ou de meu sogro lá pelos idos de 1977, quando retomei minha carreira no Banco do Brasil após o período como menor estagiário para serviços gerais. Não que trouxesse algo inovador ou o segredo definitivo da arte do bem-estar pessoal e profissional, mas porque continha em suas páginas o testemunho sábio de gente que estava escrevendo com tintas de paixão a história de uma instituição bicentenária.

Corria julho de 2005. A rede de agências vinculada à superintendência do Distrito Federal possuía 70% de seu quadro (2.300 funcionários) com menos de quatro anos de experiência, a lidar com consumidores cada vez mais exigentes, detalhistas e instruídos sobre seus direitos. Havia uma explicação para tantos jovens: a elevada rotatividade decorrente do fato de a sede da direção geral do banco ser em Brasília e preencher suas vagas “pescando” na rede. 

Para acelerar a maturidade daquela molecada e auxiliá-la a conhecer melhor o caldo de cultura de que era feita a organização, inspirei-me numa experiência realizada no Paraná três anos antes, por iniciativa de Vanderlei Engels, do centro de formação regional liderado pela saudosa Marlene Viero (Kuki):  disseminar conselhos de pessoas que haviam escrito a história da empresa naquele estado.

Claro que cada um tinha seu jeito próprio de lidar com o trabalho e não havia uma pedra filosofal ou uma fórmula mágica para alguém ser bem-sucedido profissionalmente. Decidi então entrevistar e, no passo seguinte, coligir respostas para duas perguntas simples, feitas a meia centena de dirigentes e técnicos da empresa
1. O que foi determinante para que você pudesse construir uma carreira vitoriosa?
2. Que conselho daria para que um novo funcionário consiga construir uma carreira bem-sucedida?

Antônio Sérgio Riede, na época gerente executivo na diretoria de Relações com Funcionários e Responsabilidade Socioambiental, disse: “(...) É importante ter coragem para divergir e sabedoria para entender que a divergência de ideias não significa rejeição às pessoas — e isso vale nos dois sentidos, de você e para você... Nunca ‘terceirize’ a culpa quando há espaço para você fazer alguma coisa... Não tenha vergonha de ensinar, nem falsa modéstia. Nunca se confunda com seu cargo quando ele for importante. Nunca se esconda na sua função quando ela for de subordinação... Enfim, esteja sempre presente. Participe, arrisque-se, peça desculpas quando necessário, reformule ideias e propostas quando julgar sinceramente que é o mais recomendado. Peça ajuda, ofereça-se para trabalhar. E, se conseguir a mágica, faça isso com humildade e altivez. Depois, se conseguir a fórmula, me conte!”

Já Francicarlos da Silva Diniz, então analista sênior na diretoria de Reestruturação de Ativos Operacionais, recomendou:  “(...) Busque a especialização. Embora seja importante ter uma visão geral de como funciona o banco, é impossível dominar todos os assuntos. É preciso ser um ‘papa’ naquilo que você faz no dia-a-dia. No restante, ser ‘bispo’ já basta... Estude. Questione. Leia muito. Não leia apenas as instruções internas: isso é básico. Leia jornais, revistas e livros especializados na área em que você atua... E nunca deixe de perguntar: ‘Em que posso ajudar?’ “(...)”

Izabela Campos Alcântara Lemos, naquele momento diretora de Relações com Funcionários e Responsabilidade Socioambiental lembrou: "(...) é preciso aprender sempre, com o outro, estudando, lendo muito. Saber ouvir, cultivar relacionamentos duradouros... é preciso ligar-se  nos movimentos e direcionamentos que a empresa aponta para, com sensibilidade, identificar e aproveitar as oportunidades que aparecerem. E elas sempre aparecem! "(...)" 

Para José Marcelo Torres Batista, na época assessor pleno na diretoria de Marketing e Comunicação, havia alguns pressupostos a serem observados: “(...) Tenham um pouco de cada coisa da maneira de ser, de agir e de olhar o mundo. Tenham vontade de aprender, humildade para perguntar, solidariedade para ensinar e paciência para esperar as oportunidades, pois a vida é como um rio em seu curso natural... Mirem-se nos exemplos daqueles que vencem por méritos próprios, por competência e com ética. Questionem sem destruir. Elogiem sem bajular... Não trabalhem apenas pelo dinheiro. Procurem fazer aquilo que gosta e goste de fazê-lo. O reconhecimento e a recompensa virão em consequência (...)” 

O então vice-presidente de Negócios Internacionais e Atacado, José Maria Rabelo, ponderou: “(...) Fiz sempre o exercício crítico da autoestima. Estive sempre convencido de que deveria e poderia ter orgulho de meu trabalho... Para você chegar lá, acredite tanto na empresa quanto em si próprio. Não coloque seu futuro na dependência exclusiva de atos ou pensamentos de outras pessoas. Negocie e construa seu caminho. Esteja atento para aprender o que fazer e o que não fazer. Não dissocie a formação acadêmica do investimento profissional. Não perca a oportunidade de fazer o melhor que puder, sempre... Lembre-se de que seu supermercado e a escola das crianças dependem do fruto do seu trabalho. Se por uma questão pessoal esta última parte não for verdadeira, aja como se fosse! Um dia ela certamente será. “(...)”

Renê Sanda, naquele momento gerente adjunto no BB New York Branch, orientou: “(...) Sigam sempre o ‘Princípio de Occam’, que diz que não devemos fazer mais suposições para resolver um problema do que as estritamente necessárias. Você vai notar que na maioria das vezes não existe solução que atenda aos interesses de todos, mas você será mais produtivo e eficiente se aprender a focar no problema principal, entender as principais restrições e relevar as questões ‘cosméticas’ (...)"

Juntei outros 30 depoimentos de colegas com uma história a contar que ajudasse aqueles marinheiros de primeira viagem a construírem seu próprio roteiro e aprumarem as velas do barco, na expectativa de acelerar a maturidade coletiva de jovens com as mais diferentes origens.

É difícil, agora, avaliar o impacto de uma obra tão pequena como uma cartilha dessas sobre seu público-alvo. Nem sei se foi lida por um quarto ou metade dos navegantes que apenas começavam a viagem, mas posso falar do bem que ela me fez, àquela altura com 28 anos navegando em mares ora agitados, ora calmos. Sempre acreditei na magia e no poder dessas histórias contadas de geração para geração. 

Aprendi que o bom da viagem — com ou sem lanterna a iluminar os momentos de escuridão  — nunca é onde estamos, mas para onde nos movemos. É saber navegar algumas vezes na direção do vento e outras contra ele, mas navegar sempre. Não se deixar à deriva nem ancorar antes ou depois da hora. Tem dado certo até agora.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Um viciado a menos

Circulou há pouco tempo um texto que mexeu com a tribo dos sexagenários em diante, exaltando a capacidade produtiva de quem atingiu essa faixa etária. Parecia o preâmbulo de um informe publicitário da indústria farmacêutica anunciando um nova pílula milagrosa.

Dizia o seguinte: 

(...) Um grande estudo nos Estados Unidos descobriu que a idade mais produtiva na vida de um homem é de 60 a 70 anos. Setenta a 80 anos é a segunda idade mais produtiva. A terceira idade mais produtiva é de 50 a 60 anos.

A média de idade de um ganhador do Prêmio Nobel é de 62 anos. A média da idade de um CEO em uma empresa da Fortune 500 é de 63 anos. A média da idade dos pastores das 100 maiores igrejas da América é de 71 anos.

A média da idade de um papa é de 76 anos. Isso nos diz de alguma forma que Deus planejou que os melhores anos da sua vida sejam 60-80!  É quando você faz o seu melhor trabalho.

Um estudo publicado no NEJM descobriu que aos 60 anos o ser humano atinge seu potencial máximo e continua até os 80! Portanto, se você tem entre 60-70 ou 70-80, você tem o melhor e o segundo melhor ano de sua vida com você! 

Fonte: New England Journal of Medicine 70.389/2018 (...)

É mais um capítulo da antiga novela “Me engana que eu gosto!” Não creio que ninguém trabalhe por diletantismo ou prazer depois dos 65, sobretudo se a correria começou cedo, ali entre 15 e 16 anos. Só por necessidade. Ou vício. 

Vício é hábito repetitivo que pode degenerar ou provocar algum tipo de prejuízo tanto ao viciado como aos que convivem com ele. Vem do termo latino "vitium", que significa "desvio", “defeito". Necessidade é outra coisa.

No começo do ano passado, o chefão de um grupo econômico encantou um amigo meu ao convidá-lo para implantar um projeto-piloto de escola de negócios, no Sudeste, para jovens de 14 a 15 anos, a serem selecionados do último ano do ensino público fundamental. 
— Que beleza! Fico feliz em voltar a trabalhar em algo desse nível, num país com tantas iniciativas e tão poucas poucas “acabativas” nessa área — entusiasmou-se meu amigo.
— Tudo bem, mas veja que não estou aqui falando em caridade — ponderou o chefão.
— Sei... Há incentivo fiscal para ensino profissionalizante... 
— ... Isso! E os melhores alunos, depois de três anos de teoria e prática, acabarão nas empresas do grupo. É o nosso futuro que está em jogo.

Meu amigo era visto pelo ex-chefe como a pessoa mais capacitada para tocar o projeto-piloto.  Criativo, pós-graduado em administração e ex-diretor de RH de uma grande empresa, gozava de sua confiança desde que trabalharam juntos por mais de uma década.


Mas no dia seguinte meu amigo amanheceu indeciso se toparia ou não. Depois de dois anos aposentado, sem residência fixa em canto algum, viajando metade do tempo pelo exterior e a outra metade pelo país, não quer mais prender-se a agenda, horários, hierarquia, metas, reuniões e pressão por resultados a curto prazo. 

Iria recusar o convite e buscava apenas uma forma honrosa de fazer isso sem deixar transparecer covardia ou que estava esnobando a oferta. Diria ao ex-chefe que já dedicara mais de 40 anos a uma pesada rotina de trabalhos e que seria insensatez mergulhar novamente numa roda-viva.

Também não queria negar à mulher — parceira de toda a vida e, como ele, agora aposentada — a sua companhia numa fase em que se completam desde os cuidados com alimentação e saúde até nos pequenos prazeres como fazer caminhadas matinais na praia, dividir um rosbife acebolado no restaurante da esquina, ir ao cinema ou flanar pelos corredores dos shoppings até tarde, antes de retornarem ao aconchego dos lençóis.  

Por que mexer naquilo que vinha dando certo? Logo ele que, havia anos, defendia com unhas e dentes o sacrossanto direito de não fazer nada de muito estressante no último quarto da vida, escorado num bom plano de saúde e numa aposentadoria suficiente, sem preocupar-se com contas a pagar no fim do mês.

Andava cismado também desde que soube da morte de um colega de infância, vítima de um derrame cerebral sentado no sofá da sala de estar. Chegou a comentar comigo:
— Quem diria, hein?! Ele se cuidava tanto. Todo dia caminhava na orla. Como é que o sujeito morre tentando cortar as unhas dos pés? 

Entrei de gaiato no “navio" quando meu amigo ligou-me, interrompendo o cochilo após o almoço. Contou da proposta que havia recebido e quis saber:
— Véi, você concorda comigo? Acha que estou certo em abrir mão dessa oportunidade?
— Prefiro não opinar, cara. Isso é como hemorróidas: coisa íntima, pessoal... 
— Peraí, véi, se peço sua opinião é porque tô indeciso...
— Você parece minha mulher: faz pergunta mas já tem na cabeça a resposta que quer ouvir.
— É meu jeito de checar se estou no rumo certo. Deixe de ser ranzinza, véi!
— Se você insiste, que tal a gente sentar para conversar mais tarde, quando o sol esfriar? Pode ser numa barraca aqui na orla, tomando chope com casquinha de siri ou caldinho de camarão.
— Não posso... Fiquei de apanhar meu neto no inglês e depois passar na lavanderia. A mulher também quer pegar um cineminha mais tarde...
— Cê que sabe!  Pode ser amanhã, às oito? Enquanto a gente bate um papo, toma um café com tapioca lá na padaria... 

Na dúvida se ele iria e para não ser chamado novamente de ranzinza — coisa de velho, o que absolutamente não condiz com a “criança” aqui! , cuidei de adiantar, em rápidas palavras, pelo menos três motivos pelos quais não quero voltar a trabalhar por dinheiro nenhum nesse mundo:
  1. Tenho ossos, articulações e músculos desgastados pelo uso e sei disso. Corro maior risco, portanto, de sofrer deformações, fadiga muscular e prejuízos à qualidade da vida que me resta, a depender do que tiver que encarar.
  2. Sei também que as pressões do mundo corporativo de hoje podem me trazer mais problemas: dor de cabeça (há muito tempo não sei o que é isso!), insônia, tontura, irritabilidade, dificuldade de concentração e memorização e, portanto, queda na qualidade de vida. Tem mais: podem causar outros distúrbios psicológicos, como: frustração, insegurança, medo e tristeza.
  3. Sessentões como nós que fumaram, beberam e comeram nos anos 80 e 90 como se não houvesse amanhã têm coração, pulmões, fígado, rins, estômago e intestinos num ônibus desgovernado descendo ladeira abaixo, por mais que os freios da medicina tenham evoluído. O desafio que nos resta é prolongar a agonia, com bom humor e resignação, até a chamada falência de múltiplos órgãos. Depois dos 90, se a decisão for minha.

Não faço a mínima ideia do que aconteceu com meu amigo após aquela conversa. Sumiu e nunca mais tocou no assunto. Talvez seja alérgico a frutos do mar ou, quem sabe, enjoou tapioca. Nunca se sabe. Depois de certa idade, quando um de nós desaparece por alguns dias das caminhadas no calçadão, a gente pensa logo no pior. 

Ouvi dizer que teria viajado com a mulher para São Paulo, em novembro passado, sem data prevista para retorno. Mas não ficaram nem duas semanas por lá e já voltaram. Foram vistos na praia do Francês, Litoral Sul alagoano, no último réveillon.

Vai-se ver é outro que andou refletindo e, sem precisar ouvir ninguém, acaba de livrar-se do vício. Fiz bem em não me meter na vida dele. Poderia ficar chateado comigo. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

“Urtigão" é culpado

Quando me perguntam sobre o que me levou a criar este blog, no começo de 2019, onde tenho compartilhado crônicas e contos com alguns fiéis leitores e leitoras, digo que só pode ter sido uma troca de e-mails, há cinco anos, com meu velho e bom amigo Pedroso "Urtigão", paulista radicado na Bahia a quem provoquei dessa forma: 

14/02/2015

Meu amigo, meu maninho eremita Pedroso!

A vida e as escolhas que fizemos acabaram por nos colocar em caminhos diferentes, mas você sabe o quanto lhe respeito, quero bem, sou grato e torço pelo seu bem-estar. Afinal, não foi à-toa que um dia nos encontramos no já distante ano de 1990.

Depois que me aposentei, em novembro passado, eu e a mulher decidimos cumprir promessa feita a nossa caçula e estamos passando uma temporada com ela nos Estados Unidos (arredores de Boston) desde o final de 2014, quando nasceu nossa quinta neta.

Não tem sido fácil porque a temperatura aqui anda sempre bem abaixo de zero grau (ontem chegou a 16 graus negativos, mesmo sob sol intenso) e, com a criança recém nascida, restam poucas alternativas afora cuidar dela e da casa. Consequência disso, seu amigo aqui está virando um autêntico cozinheiro, expert no trivial variado, com a inestimável ajuda da mãe de todas as conquistas: a necessidade.

Até a caminhada diária tem sido feita no subsolo, numa esteira, o que faço como quem toma remédio. É dureza, amigo, não poder tomar sol caminhando pelas ruas, sonhando em criar coisas, mudar o mundo, vendo gente passar e constatando o estrago que o tempo impõe a cada rosto desconhecido que passa encabeçando um corpo qualquer. Vou acabar virando hamster, mas é o preço que temos que pagar pela conquista de uma velhice mais saudável.

A ideia é voltarmos para o Brasil em junho, deixando nossa filha um pouco mais madura para cuidar sozinha de sua cria, junto com o marido. É também um período sabático em que reflito sobre os próximos passos que darei na terceira etapa de minha vida, sem paletó, gravata, nem puxa-sacos por perto.

Para ser sincero, do Brasil sinto falta apenas de filhos, netos e de poucos amigos como você. Pena que nossa convivência foi curta, mas sempre intensa nos raros momentos em que pudemos conversar mais de perto. Quando vejo o noticiário político, econômico, policial, fico cada vez mais chateado com tanto desperdício de recursos numa terra que tinha tudo para ser um oásis num mundo caótico.

E você, e Ana Isa, como estão? Mande notícias, coração gelado! Não quero nem posso imaginar que nos vimos pela última vez nem mais lembro onde. Precisamos, como nunca, compartilhar dores, rabugices, frustrações, desencantos e dar gargalhadas sobre como tudo isso nos incomodava, mas não incomoda mais...

     
                                                  ##############

Algum tempo depois ele resolveu sair da toca em que,  ainda hoje,  passa a maior parte do tempo escondido —  fazenda em Coaraci, no Sudeste baiano, onde cultiva cacau e cria gado leiteiro — e devolveu este petardo:
     
"(...) 08/07/2015

Querido amigo Hayton,

Acredite nisso ou não, para mim você é e será sempre um grande e inesquecível amigo. Muitas qualidades, grande exemplo. De minha parte, nunca fui grande coisa, nem disciplinado; sequer bom aluno. Por isso, admiro mais ainda sua generosidade comigo.

Entretanto, apesar da ausência, busco na “Canção da América”, as palavras certas: '... Mesmo que o tempo e a distância digam 'não'/Mesmo esquecendo a canção/O que importa é ouvir/A voz que vem do coração...'
  
Soube pelas boas línguas que você se aposentou. Pronto. Finalmente estamos agora iguais (salário não conta!). Agora você também tem um nariz!

Espero, embora sem acreditar nisso, que você tenha saído por sua livre e espontânea vontade, de bem com tudo. Você gostava demais do Banco para ir tão cedo. O Banco sempre foi uma casa boa. Os inquilinos é que muitas vezes eram ruins.

Mas, de qualquer modo, meus sinceros e sinceros e mais sinceros parabéns. Você que tem alma e bagagem, tem muitas coisas pra fazer. 

Aconselho a não fazer duas:  
1. Comprar um sítio, roça, rocinha, fazenda, chácara etc. Vira cachaça. Nunca fica pronta, come todo seu tempo, seu dinheiro, paciência e todos aqueles que gostam da sua companhia ficarão com ódio do negócio, porque ele vai lhe consumir por inteiro.
2. Comprar uma casa de praia. Você vai achar bom no início. Todos irão achar bom. Depois, você vai passar a semana inteira esperando chegar o final de semana e as pessoas. Com o tempo umas irão; outras, não. Você vai acabar preparando um churrasco para dez, vão acabar indo quatro e você vai beber pelos onze!

Tiro por mim: arrume algo pra fazer. E venda para todos como a coisa mais importante e absorvedora do mundo, senão você vai virar o quebra-galho da família.

Não pense em ler todos aqueles livros, juntados ao longo de toda a vida, que você comprou pela indicação dos amigos, das revistas especializadas, pelo título, pela orelha, na aflitiva infinitude do tempo de espera dos horários de voo.

Não se disponha a ir a supermercados. Vicia. Daí todos os dias você acabará indo lá. Da pimenta do reino ao queijo suíço, você vai acabar dando pitaco em tudo, comprando todos os dias.

Se for andar, nunca faça os mesmos percursos. Além de ser bom para prevenir o Alzheimer, evita que você encontre as mesmas pessoas todos os dias, sobretudo os saudosistas, que vão lhe contar como era a contabilidade bancária quando trabalhava.

Evite os colegas chatos. Um chato a gente não pode ter como amigo. Só como colega. Um chato sem ter o que fazer mata a gente. Logo chama pra ir para a casa dele, abre um litro de uísque 12 anos ou um vinho de R$ 150,00 e faz a gente ficar vendo seus álbuns de fotografia, principalmente das viagens que fez para o exterior, tentando explicar um mundo que viu por alguns instantes.

Não vá aos encontros de ex-colegas de trabalho. Normalmente eles marcam um almoço mensal, quinzenal ou semanal e ficarão o tempo todo falando do Banco, de quem ficou, de quem se separou, de quem morreu, dos tempos da posse, do tempo da agência... Ah! que preguiça!

Procure conhecer pessoas novas e mais novas que você. Pessoas mais velhas são cheias de dores e pruridos. Se falam em política ou de futebol, ficam dogmáticas e insuportáveis. Tudo vira religião para elas.

Não tente virar um vovô garotão. Tem gente que ao acordar aposentado se olha no espelho e se convence de que está bonitão, cheio de vida, com uma boa estampa. Sai de casa, matricula-se numa academia, compra um monte de cremes e fica pensando em fazer uma tatuagem. Bem discreta, bem pequena. Apenas um símbolo de liberdade.

Não tente fazer agora tudo que você sonhou uma vida inteira e o trabalho não deixava. Comprar uma moto, por exemplo. Uma moto estradeira, tipo “Harley Davidson”, uma jaqueta de couro dos “Hells Angels”, alguns filmes do Marlon Brando e do James Dean, e sair por aí feito um rebelde sem causa.

É tarde para aprender a fumar, andar de patins, andar de “skate”, surfar, saltar de “buggie jump”. Se quiser tentar, faça umas sessões de psicoterapia antes. Se resolver que, definitivamente, vai andar de “bike”, vá a um provador de roupas e vista-se com toda a parafernália que utilizam para isso (Tire uma foto e me mande. Não ponha no “Facebook”). Se, mesmo assim, continuar firme nesse propósito, repita a fórmula usando terno, gravata, mochilinha e capacete. Se o desejo persistir, vá a um psicólogo e pague adiantado umas vinte sessões. 

Não fique o tempo todo na Internet. O pior é que dá para fazer isso. Também vicia. A gente acaba viajando pelo computador e some para o mundo.

Se você resolver arrumar um novo emprego, procure saber antes como está a saúde financeira da empresa e da sua necessidade ou dependência de crédito bancário, para que você seja o contratado e não o seu potencial de interferência junto ao ex-patrão.

Não se irrite com a indiferença daqueles a quem você ajudou (não é o meu caso, não sou indiferente). Em Brasília você vai cansar de ver isso. Você deve ter encontrado muitas pessoas ao longo do caminho. Sinceros, hipócritas, convenientes, sabidos, dissimulados, copiadores repetitivos (copiam e colam suas palavras na língua deles), aproveitadores etc. Também haverá os honestos, que se contrapõem a todos esses. Trate-os com o mesmo sorriso e aperto de mão que lhe dispensarem. Na hora, é incrível como surge a diferença entre os casos.

Abrace os amigos e a família sempre que puder. Vivemos pra eles. A vida não tem sentido sem eles.

Se você concordar com tudo, não quiser se dedicar a atividades filantrópicas ou literárias, e não vê o que fazer com seu tempo livre, só lhe restará comprar um sítio, roça, rocinha, fazenda, chácara ou, então, comprar uma casa de praia. 

Mas não vá dizer que não avisei (...)”

                                                  ##############
      

Tomei nota, segui boa parte dos conselhos de meu amigo Pedroso “Urtigão” e lhe serei grato para sempre. Não doeu coisa nenhuma! Foi muito importante não ter feito nada sério de lá para cá. Exceto, talvez, o reconhecimento que acabo de fazer. 


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A bicicleta nossa de cada dia

Eu seria capaz de jurar que ganharia um par de tênis Bamba para jogar futebol de salão se, na União dos Palmares (AL) do final de 1968, fosse aprovado no 4º ano primário da professora Rosário, do grupo escolar Jorge de Lima, e no temido Admissão, espécie de “vestibular” de que participei aos 10 anos, também preparado pela professora Lindinalva, para acesso ao ginásio Santa Maria Madalena.

Pedir eu pedi, mas não deu certo. Éramos seis irmãos em idade escolar e, claro, não faria sentido premiar apenas o êxito de um. Acostumado a bater bola descalço com a molecada da cidade (Dudu, Toinho, Mano, Betinho, Zé Carlos "Rane", Geraldo, Loínho, Robinho, Pelé, Paulinho Baía, etc.), o jogo da vida seguiu, embora vez por outra o sangue fervesse quando sofria um pisão de alguém calçado.

Vinte e dois anos depois, em 1990, conheceria Carlos Roberto Rebouças na Bahia, com quem trabalhei poucos meses e que me contou uma história parecida que aconteceu com ele. Na ocasião, eu lhe antecipava que ele deveria ser nomeado chefe de gabinete na superintendência estadual do Banco do Brasil.

Responsável pela administração do aeroporto de Salvador (era funcionário do BB cedido à Infraero), Rebouças impressionava pelo modo ágil, cortês e bem-humorado com que resolvia os problemas cotidianos de passageiros e companhias aéreas, mas queria retomar a carreira bancária em sua empresa de origem.

Ele sorriu amarelo ao me contar que, quando criança, sua madrinha, viúva de um rico fazendeiro no interior baiano, ficara encantada com sua dedicação aos estudos, bem diferente dos filhos dela, seus colegas de turma. Em reconhecimento, prometeu-lhe uma bicicleta de presente caso fosse aprovado por média, desobrigando-se das provas finais. A mãe, por tabela, queria assim estimular os próprios filhos.


Se já era quase certa a aprovação por média sem aquele prêmio, para o menino Carlinhos virou “uma mão na roda”. Dias depois, com o boletim azul de ponta a ponta, tomou coragem e foi até a única loja especializada que havia na cidade avaliar qual a bicicleta que melhor se adaptaria a um desajeitado pré-adolescente.

Como não havia bicicleta intermediária, testou primeiro uma pequena, que lhe deixou porém com as sandálias arrastando no chão. Partiu então para a de adultos, mas era grande demais e nem na ponta dos pés ele alcançava os pedais. Indeciso sobre qual escolher, foi convencido pelo dono da loja a aguardar o novo lote de bicicletas que estaria chegando do fabricante para as vendas de fim de ano.

Dali em diante, a ansiedade tomou conta de Carlinhos. Todo dia, mesmo debaixo de chuvas, deslocava-se à periferia da cidade. Como estudava à tarde, ficava até a hora do almoço sentado numa pedra à margem da estrada, a conferir de longe a carroceria de cada caminhão que trafegava.

Certa manhã, ao ver o furgão que trazia a esperada bicicleta apontar no trevo na entrada da cidade, saiu correndo feito um louco no rumo da casa de sua benfeitora para contar a novidade e convencê-la a ir à loja o mais depressa possível.

Caiu no choro, entretanto, quando ouviu da madrinha que não mais havia condições para cumprir a promessa feita. O excesso de chuvas naquele mês devastara as lavouras justamente na hora da colheita, frustrando a safra e o dinheiro apurado não dera nem para pagar o que devia ao banco. Quem sabe no ano seguinte, se as coisas melhorassem.

Por isso mesmo, anos depois, ao me ouvir adiantar que deveria ser nomeado, sorria sem graça: 
— Pois é... Vamos aguardar. Nunca mais acreditei em nada antes da hora. Cheguei a sentar no selim, dei umas pedaladas em "minha" Monark e a danada não chegou lá em casa!

Na semana seguinte, rimos quando lhe convidei para tomar um café em minha sala e abri a conversa em tom de brincadeira:
— Dê um “ciente” aqui neste ato de nomeação e pode   buscar sua bicicleta na loja que agora você tem como pagar sem depender da madrinha. 

Meses depois fui-me embora da Bahia, perdi contato e não soube mais do paradeiro dele. Nem depois que voltei a trabalhar por lá, uma década adiante. Mas desde então, quando me deparei no trabalho com pessoas ansiosas em demasia, com a cabeça e os pés nas nuvens, terceirizando a realização de suas próprias expectativas, não resistia e perguntava:
— Você conhece a história das pedaladas de Rebouças? Não? Tem um minutinho? 


Já se passaram quase 30 anos desde aquela nossa conversa. Soube outro dia, via Google, que o Dr. Carlos Roberto Rebouças agora administra a Sinart, empresa privada que cuida do aeroporto de Porto Seguro, no sul da Bahia. Tentei três vezes falar com ele, por telefone, mas não consegui. Deve andar muito ocupado nessa época do ano, com a chegada do Verão.

Nas horas vagas, imagino, é possível que relaxe pedalando uma Mountain Bike Caloi – aro 29, câmbio 27 marchas, pelas estradas, trilhas e praias da chamada Rota do Descobrimento, que vai de Prado a Arraial d’Ajuda, região que pouco mudou desde que Pedro Álvares Cabral e sua esquadra aportaram por lá há pouco mais de cinco séculos.

Ou não. Com o tempo, uma bicicleta (ou um par de tênis) que não nos chegou lá atrás vira fumaça, poeira. Fica apenas a lembrança fugaz dessas pequenas decepções infantis.


Mais tarde, a vida empurra-nos goela abaixo, em seco, frustrações bem mais encorpadas. A gente faz de conta que acostuma e vai em frente, pedalando a bicicleta nossa de cada dia.