Desde menino, queria fazer o que meu pai fazia: receber pessoas numa sala com mesa, cadeira, lixeira e ventilador; atender quem buscava tomar emprestado ou guardar dinheiro; escrever à máquina e caneta tinteiro, carimbar e rubricar documentos.
Não me arrependi, mas teria sido interessante trilhar outros caminhos, quem sabe como profissional do Direito. Afinal, quase todo mundo desenvolve desde cedo um senso de justiça, aquele sentimento que faz com que se tomem as dores de um desconhecido mesmo sem levar nenhuma vantagem nisso. Reconheço, uma visão romantizada pelos gibis e seus super-heróis, de Batman a Zorro.
Talvez conseguisse escapar do “juridiquês”, o cipoal de termos utilizados pelos profissionais da área, classificados como exagero de jargões, de gírias ou mesmo uma forma rebuscada de se distinguir socialmente. A rigor, penduricalhos cosméticos para pretensamente embelezar expressões arcaicas, algumas numa língua morta (o latim).
Ilustração: Umor |
Para um advogado, por exemplo, tão importante quanto saber de leis é conhecer uma língua viva (sua maior "ferramenta" de trabalho), pois advogar, antes de tudo, é falar por alguém. Acho esquisito ver expressões latinas numa petição onde se requer apenas uma declaração de inexigibilidade de multa por atraso de pagamento de uma fatura qualquer.
Sei que o ordenamento jurídico brasileiro originou-se no Direito Romano, que se escorou no latim. Mas para ser compreendido na transmissão de uma mensagem qualquer, melhor abrir mão do “juridiquês" e se ajoelhar aos pés da santíssima trindade da comunicação: a clareza, a concisão e a objetividade.
A terminologia adotada por advogados, procuradores, promotores, juízes, desembargadores etc., às vezes é incompreensível até pelos mais letrados. Já li em algum lugar, aliás, que alguém já escreveu "o indigitado se evadiu do ergástulo público" onde bastaria "o réu fugiu da cadeia"?
Pelo menos uma vez por ano, faria bem reler Graciliano Ramos, para quem: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam... Somente depois de feito tudo isso é que elas penduram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”
Espanariam o mofo e a poeira de certas expressões, que poderiam ser reescritas desta maneira:
Chamamento à lide processual – O “santo” aí também deve!
Coautoria e litisconsórcio passivo – Sabiá que voa com joão-de-barro vira ajudante de pedreiro.
Data venia – Dá licença, doutor?!
Embargos de declaração – Explique isso melhor, doutor!
Execução de alimentos – Farinha pouca, primeiro meu pirão.
In dubio pro reo – Na dúvida, deixa quieto!
Mutatis mutandis – Mudando o que tem que mudar.
Nomeação à autoria – Dedurando o resto dos “santos”!
Pacta sunt servanda – Obrigações devem ser cumpridas (ou: perdeu, mané! Vai ter de pagar!).
Periculum in mora – Relógio que atrasa, não adianta.
Princípio da iniciativa das partes – Faça o seu que faço o meu.
Princípio do contraditório – Agora é minha vez! (ou: enquanto um burro fala, o outro abaixa as orelhas e escuta).
Recurso adesivo – Pegando o vácuo.
Reincidência – De novo, mané?!
Trânsito em julgado – Prego batido, ponta virada.
Tem menos de 10 anos que, no TRT da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, um juiz demonstrou como uma decisão pode (e deve) ser tomada sem expressões dispensáveis. O processo envolvia um pedreiro, que pedia o reconhecimento de vínculo empregatício e indenização por danos morais, depois de sofrer um acidente enquanto trabalhava numa obra.
A história, resumida sem enfeites: "Três meses depois de iniciada a obra, o pedreiro caiu da sacada, um pouco por falta de sorte, outro pouco por falta de cuidado, porque ele não tinha e não usava equipamento de proteção. Ele, ... [o dono da propriedade], ficou com pena e acabou pagando até o serviço que o operário ainda não tinha terminado".
A conclusão, também: "Essa indenização ameniza um pouco o sofrimento de... [o pedreiro], mas também serve para... [o dono da propriedade] lembrar que tem obrigação de cuidar da segurança daqueles que trabalham na sua casa, mesmo quando não são empregados. Por sua vez,... [o pedreiro], não pode pretender ficar rico com a tragédia; mas também o dinheiro tem que fazer alguma diferença na sua vida. Pensando nisso tudo, considerando a metade de culpa que cada um tem e das condições financeiras dos dois, além das circunstâncias do acidente, fixo a indenização em...".
Simples, não? Compreensível até pelos analfabetos funcionais, cerca de 40 milhões de brasileiros que até reconhecem letras e números, mas não conseguem explicar o que leram.