quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Data venia, gente!

Desde menino, queria fazer o que meu pai fazia: receber pessoas numa sala com mesa, cadeira, lixeira e ventilador; atender quem buscava tomar emprestado ou guardar dinheiro; escrever à máquina e caneta tinteiro, carimbar e rubricar documentos.

 

Não me arrependi, mas teria sido interessante trilhar outros caminhos, quem sabe como profissional do Direito. Afinal, quase todo mundo desenvolve desde cedo um senso de justiça, aquele sentimento que faz com que se tomeas dores de um desconhecido mesmo sem levar nenhuma vantagem nisso. Reconheço, uma visão romantizada pelos gibis e seus super-heróis, de Batman a Zorro.

 

Talvez conseguisse escapar do “juridiquês”, o cipoal de termos utilizados pelos profissionais da área, classificados como exagero de jargões, de gírias ou mesmo uma forma rebuscada de se distinguir socialmente. A rigor, penduricalhos cosméticos para pretensamente embelezar expressões arcaicas, algumas numa língua morta (o latim). 

 

Ilustração: Umor

Para um advogado, por exemplo, tão importante quanto saber de leis é conhecer uma língua viva (sua maior "ferramenta" de trabalho), pois advogar, antes de tudo, é falar por alguém. Acho esquisito ver expressões latinas numa petição onde se requer apenas uma declaração de inexigibilidade de multa por atraso de pagamento de uma fatura qualquer. 

 

Sei que o ordenamento jurídico brasileiro originou-se no Direito Romano, que se escorou no latim. Mas para ser compreendido na transmissão de uma mensagem qualquer, melhor abrir mão do “juridiquês" e se ajoelhar aos pés da santíssima trindade da comunicação: a clareza, a concisão e a objetividade.

 

A terminologia adotada por advogados, procuradores, promotores, juízes, desembargadores etc., às vezes é incompreensível até pelos mais letrados. Já li em algum lugar, aliás, que alguém já escreveu "o indigitado se evadiu do ergástulo público" onde bastaria "o réu fugiu da cadeia"?

 

Pelo menos uma vez por ano, faria bem reler Graciliano Ramos, para quem: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam... Somente depois de feito tudo isso é que elas penduram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

 

Espanariam o mofo e a poeira de certas expressões, que poderiam ser reescritas desta maneira: 

Chamamento à lide processual – O “santo” aí também deve!

Coautoria e litisconsórcio passivo – Sabiá que voa com joão-de-barro vira ajudante de pedreiro.

Data venia – Dá licença, doutor?!

Embargos de declaração – Explique isso melhor, doutor!

Execução de alimentos – Farinha pouca, primeiro meu pirão.

In dubio pro reo – Na dúvida, deixa quieto!

Mutatis mutandis – Mudando o que tem que mudar.

Nomeação à autoria – Dedurando o resto dos “santos”!

Pacta sunt servanda – Obrigações devem ser cumpridas (ou: perdeu, mané! Vai ter de pagar!).

Periculum in mora – Relógio que atrasa, não adianta.

Princípio da iniciativa das partes – Faça o seu que faço o meu.

Princípio do contraditório – Agora é minha vez! (ou: enquanto um burro fala, o outro abaixa as orelhas e escuta).

Recurso adesivo – Pegando o vácuo.

Reincidência – De novo, mané?!

Trânsito em julgado – Prego batido, ponta virada.

 

Tem menos de 10 anos que, no TRT da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, um juiz demonstrou como uma decisão pode (e deve) ser tomada sem expressões dispensáveis. O processo envolvia um pedreiro, que pedia o reconhecimento de vínculo empregatício e indenização por danos morais, depois de sofrer um acidente enquanto trabalhava numa obra.

 

A história, resumida sem enfeites: "Três meses depois de iniciada a obra, o pedreiro caiu da sacada, um pouco por falta de sorte, outro pouco por falta de cuidado, porque ele não tinha e não usava equipamento de proteção. Ele, ... [o dono da propriedade], ficou com pena e acabou pagando até o serviço que o operário ainda não tinha terminado".

 

A conclusão, também: "Essa indenização ameniza um pouco o sofrimento de... [o pedreiro], mas também serve para... [o dono da propriedade] lembrar que tem obrigação de cuidar da segurança daqueles que trabalham na sua casa, mesmo quando não são empregados. Por sua vez,... [o pedreiro], não pode pretender ficar rico com a tragédia; mas também o dinheiro tem que fazer alguma diferença na sua vida. Pensando nisso tudo, considerando a metade de culpa que cada um tem e das condições financeiras dos dois, além das circunstâncias do acidente, fixo a indenização em...".

 

Simples, não? Compreensível até pelos analfabetos funcionais, cerca de 40 milhões de brasileiros que até reconhecem letras e números, mas não conseguem explicar o que leram.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Um especialista a mais

Essa coisa de especialista pra tudo que existe anda passando dos limites! 

Circula na Internet um anúncio publicitário de um cirurgião dentista oferecendo biodecodificação dental. Trata-se, segundo ele, de uma leitura da mensagem subliminar embutida nos dentes, seja lá o que isso signifique. 


Diz que, através de uma radiografia panorâmica, é possível ter acesso aos conflitos emocionais vividos, às heranças transgeracionais e à compreensão das relações humanas, buscando algo mais nobre do que o simples fato de viver melhor: o equilíbrio interior, o reencontro com a autenticidade, a integridade de ser, e “livrar-se das repetições que prendem”.

 

E quis ser mais objetivo: “o procedimento é uma espécie de chave para compreender e ajustar os relacionamentos, um caminho para libertação da culpa e do julgamento, um aprendizado da verdadeira responsabilidade individual, uma promessa genuína e verdadeira de vida…” 

 

Nem bem me recuperei do susto, corri até o espelho do banheiro para procurar indícios da tal mensagem subliminar em minha arcada dentária amarelo-café. Nada encontrei, juro! 


Resolvi caminhar um pouco para espairecer e dei de cara com outra peça publicitária única, colada num poste: o centro espírita “Prazeres do Além” propõe às viúvas em geral que experimentem momentos de prazer “com seus falecidos maridos”. E recomenda trazer uma cueca do defunto (limpa, presume-se, livre das “marcas de freio de bicicleta”). 

 

Reprodução/Redes Sociais

  

Para quem viaja de avião, ônibus ou trem, ou precisa pernoitar fora de casa, sabe-se que guardar dinheiro e cartões de crédito pode tornar-se um problema sério. Por isso existe o money belt, uma pequena bolsa de tecido com um fecho que se prende à cintura por baixo das calças ou da camisa. 

 

Se for dormir em hotel, óbvio, o viajante poderá guardar os pertences no cofre. Porém um especialista inventou o esconderijo perfeito, unindo as vantagens de um com as virtudes do outro: o brief-safe (cofre-cueca, em tradução livre). 

 

O cofre-cueca é um dispositivo comercializado por uma empresa norte-americana de equipamentos militares para guardar cédulas, documentos e outros valores num compartimento secreto de 10x25 cm, fechado por um velcro. Um detalhe “especial” na parte inferior permite que seja deixado à vista em qualquer lugar sem qualquer risco. Ninguém se atreve a mexer. Custa 10 dólares e vem na cor branca, com uma “marca de freio” na cor castanha. Só falta um borrifador com o odor característico artificial para atingir a plenitude estética e olfativa.  

 

Daqui a pouco vai ter brazuca negociando uma parceria com outra firma estrangeira que oferece um serviço cuja aceitação vem crescendo de forma assustadora: se o seu ente querido foi cremado e você não sabe o que fazer com as cinzas, pode pintar uma tela em preto-e-branco com os restos mortais e pendurá-la na parede. Preço a combinar, caso a caso.

   

Me contaram, aliás, que está sendo criada em São Paulo (com perspectivas de expansão para Brasília e Rio) uma startup bastante promissora. Se a pessoa está errada em determinada situação e pretende pedir desculpas, mas não tem coragem de procurar quem deve perdoar, contrata uma especialista nisso. A ideia é cobrar, via PIX, R$ 200,00 por um pedido de desculpas por telefone (ou mensagem), e R$ 600,00 por um pedido pessoalmente. Agora, sim, esse tipo de desgaste tem custo e preço!

 

E se alguém resolve cair na orgia depois do trabalho, sem deixar pistas de onde esteve (nem com quem), a plataforma disponibilizará um ônibus-leito devidamente equipado para curar enxaqueca, náuseas e queimação de estômago. 


A pessoa será hidratada com isotônicos e sucos variados, com açúcar mascavo ou adoçantes naturais, além de receber medicação intravenosa para acelerar a metabolização do álcool e outras substâncias tóxicas. O maior risco é encontrar lá dentro, se restabelecendo de outro bacanal, a própria cara-metade, que amanhecera com o mesmo propósito.

 

E enquanto se recupera dos estragos de ordem geral, um especialista cuidará de remover de suas roupas eventuais manchas de secreções, delineador, lápis de olho e rímel, com água, álcool e glicerina. Acetona e detergente, só no caso de batom. 


Como se vê, surgem especialistas pra tudo o que se imagina. E uma de minhas maiores frustrações confessáveis é não ser especialista em merda nenhuma. Até cogitei trabalhar como técnico de um laboratório de análises clínicas, mas desisti. Nunca levei o menor jeito pra coisa.

 

Hoje, metido a farejador de notícias do cotidiano, ando pensando em me aprofundar no que classifico de "jornalismo relativo". Se aconteceu, pode ser fato; se for mentira, mais ainda. Tudo depende da troca ou do troco, da verba ou do verbo. 


Quem sabe, viro especialista. Querendo, posso vender bem o que for publicar e, melhor ainda, aquilo que resolver não publicar. Afinal, um contador de histórias não deve se preocupar com a verdade. As versões por aqui costumam ser mais verdadeiras que a verdade. 


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Ler e namorar, é só querer e começar

A Bienal Internacional do Livro de 2023, que terminou domingo passado, no Rio, contou com mais de 600 mil visitantes e 5,5 milhões de livros vendidos durante os 10 dias do evento (média de nove livros por pessoa), segundo seus organizadores. 

São sinais alentadores numa nação tão carente de tudo. Livro é a semente geradora dos mais diversos tipos de mídia (filmes, games, músicas, seriados etc.) que contam histórias, provocam reflexão e desenvolvem senso crítico.

Justamente quando volta a circular nas redes sociais uma velha notícia dando conta de que um grupo de lixeiros de Ancara, capital da Turquia, ao longo de anos recuperou livros que ia encontrando abandonados entre os desperdícios da população. Em 2017, reuniu-se quantidade suficiente para inaugurar uma biblioteca pública composta de obras destinadas aos aterros sanitários.

Foto: Nation
 

No começo, os livros serviam apenas aos familiares dos garis. Mas a coleção cresceu e o interesse espalhou-se por toda a comunidade. Hoje, a biblioteca dispõe de mais de 6.000 títulos, que vão desde a literatura de autoajuda até artigos científicos. E inclui ainda obras em inglês e francês para visitantes bilíngues.

 

O acervo é tão grande que os escritos vêm sendo requisitados por escolas de várias regiões do país, programas educativos e até penitenciárias. E uma antiga fábrica de tijolos, com fachada simples e longos corredores, transformou-se em centro de educação e cultura.

 

Logo abaixo da boa notícia turca, aparece um novo rabicho de comentários. Um reclama: “Não entendo como alguém tem coragem de jogar livro no lixo; é só doar...” Outro não perdoa: “Essas iniciativas do povo pelo povo me dão esperança de que um dia se perceba que não se precisa de nenhum político para resolver seus problemas...” E outro, mais enfático, puxa o cordão dos pessimistas: “Não daria certo aqui, porque o povo odeia leitura...” 

 

A Turquia não é nenhum expoente econômico, como os Estados Unidos ou a China. Nem figura entre os melhores países para se viver, como Dinamarca, Suécia ou Brasil (na minha estatística pessoal, óbvio!). Com 85 milhões de habitantes e situada entre a Europa e a Ásia (ou, melhor, situada na Europa e na Ásia), tornou-se após a 2ª Guerra importante centro regional de negócios, com destaque para o grande parque industrial e a oferta de serviços turísticos.

 

A 5ª edição do estudo “Retratos da leitura no Brasil” (dados de 2019) revela que apenas metade dos brasileiros dedica-se à leitura, sendo a Bíblia e os jornais os veículos mais lidos. Parece positivo, mas não é, quando comparado com outras nações. Os franceses leem em média 21 livros por ano, cinco vezes mais que nós. O canadense lê 12. Aqui, 44% da população nem lê e 30% nunca comprou um livro na vida.

 

Há 10 ou 11 anos, participei de uma reunião com alguns executivos do maior grupo editorial da América Latina, líder em vários segmentos editoriais (arquitetura, beleza, bem-estar, decoração, economia, moda, política etc.), destinatário de boa parte da verba publicitária da empresa onde eu trabalhava. Neófito no ramo, quis saber deles se não lhes preocupava o fato de sua principal revista ser dona de uma das maiores tiragens mundiais (dois milhões de exemplares por semana), mas lida apenas por 1% da população brasileira. 

 

Se tinham respostas, guardaram para si. Talvez a consulta não tenha sido oportuna numa visita de cortesia. Fiquei sabendo mais tarde, pelos jornais, que em agosto de 2018 o grupo teve acolhido o seu pedido de recuperação judicial. Coincidência? 

 

Meses antes daquela visita, como um dos selecionadores, havia participado de um processo seletivo interno para executivos de um dos gigantes do setor financeiro. Quis saber de cada candidato qual o livro mais marcante tinha lido no último ano e como aquilo eventualmente mexeu com a sua forma de lidar com pessoas no trabalho ou fora dele. Quase todos optaram pelo surrado “não gosto de histórias, prefiro livros técnicos”. 

 

Volta e meia ainda encontro gente que garante que foi alfabetizada, mas não lê. Sabe até juntar duas ou três sílabas e distingue poliglota de troglodita (já houve por aqui quem achasse que eram palavras sinônimas), mas foge de livro como gato de pepino por questões atávicas. Não consegue parar para ler porque “dá sono” ou porque prefere vídeos ou textos curtos em Facebook, Instagram, TikTok, WhatsApp, YouTube etc. 

 

A obsessão por celulares e mídias sociais explica o baixo interesse na leitura. É mais “enfadonho” concentrar-se numa crônica (para não falar de biografias, contos e romances) do que “refletir sobre obras primas” nas plataformas digitais. 

 

Para mim, é como dizer que não vê graça alguma em namorar, que é preferível assistir aos outros se pegando debaixo de edredons naqueles programas de TV onde um grupo fica confinado por semanas numa casa cenográfica, sem receber informações do mundo exterior, quase tudo vigiado por câmeras 24 horas por dia. 

 

“Quem gosta de ler não morre só”, advertia Ariano Suassuna. "É preciso ler para crer", disse outro dia meu amigo Francicarlos Diniz, outro que sempre sabe o que diz.


Ler amplia a imaginação, estimula o raciocínio, exercita a inteligência, permite viajar sem tirar os pés do chão e ainda previne doenças degenerativas. Namorar pra valer, também.  

 

Ninguém é obrigado a ler o que não tem vontade, nem a namorar quem não quer. Mas em qualquer lugar, tanto uma coisa como a outra pede bem-querer, carinho, dedicação, paciência e um lugar sagrado para recostar. Da Turquia à Bahia.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

A grande ameaça

Ouvi de um amigo que o sertão nordestino passa por  mudanças tão radicais que até as abelhas andam confusas: só querem saber de caldo de cana e pão doce (até aí, não discordo muito das abelhas). E ilustra o que afirma com o caso de Doidinho, um matuto grosso que só pescoço de carreteiro que, todo ano, dava um jeito de arranjar um jegue e cair na estrada, durante a safra, vendendo cajus.

 

CLARK HULINGS - Cena de rua - Óleo sobre tela 

Com a produção minguando ano a ano, ele resolveu se desfazer de sua jumenta, vendendo-a por uma ninharia ou simplesmente abandonando-a à própria sorte no olho da rua, com fome e sede, para espanto do compadre com quem tomava uma bicada numa bodega.

 

– Tu tem coragem de fazer uma coisa dessas com a coitada, que tanto te ajudou? Ficou doido de vez, foi?! – protestou o compadre, balançando a cabeça.

– Oxente! E eu vou dar de comer a vagabunda? Não quer fazer mais nada... Só se deitar na sombra! – justificou-se Doidinho. 



“Adote um jumento” foi o apelo feito outro dia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), numa parceria entre o Grupo de Pesquisa e Extensão em Equídeos e Saúde Integrativa com o Canal de Adoção (Programa de Apoio aos Animais). 

 

A campanha estimula a adoção responsável de animais, resgatados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), que vagueavam pelos acostamentos ou sofriam maus-tratos e teriam como destino o abate para a venda da carne e da pele a países asiáticos. 

 

Reduz mas não elimina o problema. O abate de jericos no Nordeste – os quadrúpedes, bem entendido! –, sobretudo depois da introdução de motocicletas no meio rural, vem diminuindo drasticamente o número de animais, já sob grave risco de extinção. 

 

Há sete anos, o Brasil virou exportador de couro de jumento para a produção do ejiao, uma espécie de gelatina obtida a partir da fervura, usada como ingrediente na medicina milenar chinesa, mesmo sem comprovação científica de eficácia. Vem sendo aplicada no tratamento de vários problemas de saúde, como anemia, impotência sexual, incontinência urinária, insônia, menstruação irregular, tosse seca e vertigem. 

 

E a população de jegues caiu mais de 60% entre 2017 e 2022, por causa do abate sem reposição. A demanda e a lucratividade fizeram com que os asiáticos mirassem o gigante da América do Sul, que dispunha de um rebanho expressivo – em 2013, havia cerca de 900 mil jumentos, 90% no Nordeste, segundo o IBGE. 

  

Esse fiel ajudante do povo nordestino já foi mais considerado entre nós. Lembro de Miltinho, um servidor público que conheci no interior de Alagoas, que nas horas vagas se virava negociando todo tipo de mercadoria, de bicicleta de segunda mão a trancelim banhado a ouro. Até armas de fogo, adquiridas na feira de Caruaru/PE, para revenda a policiais da região, que assim podiam trabalhar despreocupados, evitando o uso do revólver oficialmente sob sua custódia. 

 

Numa manhã de sábado, na sala-de-estar de sua casa, ele me oferecia um relógio quando ouvimos juntos, vindas lá de fora, as queixas de Catita, sua esposa, que varria a calçada enquanto botava em dia a conversa com uma vizinha de porta:

– Não tem quem aguente esse homem! Não vale a bufa de uma muriçoca! Vive comprando, trocando ou vendendo tudo que tem dentro de casa. Nem meu rádio de pilha escapou, foi parar na mão de uma rapariga!

– Deixe de falar mal do próprio marido! – interrompeu Miltinho, rindo do próprio flagrante – Tô já trocando você numa jumenta que vi ali na feira, com a cangalha cheia de mangas. A bichinha trabalha o dia inteiro e não abre a boca pra reclamar de nada! 

 

Bem antes disso, na segunda metade dos anos 1960, o jumento e seu tangedor – aquele que, na seca, retirava água de cacimbas perfuradas nos leitos esturricados dos rios temporários da região e a transportava no lombo do jerico às famílias – fizeram por merecer até um monumento em praça pública, na entrada da cidade de Santana do Ipanema, no sertão alagoano.

   

Reprodução/Blog Apenso com Grifo (João Neto)


Construído na gestão do então prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, o duplo reconhecimento coincidiu com a chegada, na região, de água encanada do rio São Francisco. O tangedor homenageado com a estátua conduzindo o animal era conhecido como Candinho, tido como o mais prestativo “botador” de água das redondezas.


É bem verdade que a inclusão do jegue na homenagem custou enormes dissabores ao prefeito, que enfrentou até ameaças de impeachment por parte dos vereadores oposicionistas, os quais preferiam um filho da terra no lugar do animal. Esses bravos representantes do povo, mesmo acreditando nas palavras de Luiz Gonzaga, de que "o jumento é nosso irmão", não queriam que alguém da família fosse assim retratado. 


Hoje, com tantas mudanças acontecendo no sertão, onde até as abelhas andam confusas, e diante da volúpia com que os asiáticos avançam sobre o couro desses infatigáveis quadrúpedes, realmente o fim da espécie está próximo. 


Os chineses não são burros. O grande perigo é que ficarão no Brasil apenas os jumentos que, de fato, nos ameaçam: os bípedes.