De uma hora para a outra, tive que me adaptar a novas formas de consumo, socialização e trabalho doméstico. Com as restrições impostas pela pandemia, as caminhadas, que antes eram feitas no calçadão da orla, migraram para a esteira da sala de ginástica do prédio.
Manter-se sedentário seria o pior dos mundos. Disseram-me que atividades físicas melhoram o sistema imunológico, além de ajudar na gestão de doenças crônicas que se herdam ou se adquirem com o passar dos anos, caso se tenha a sorte de chegar ao último terço da estrada.
Mas a sala de ginástica do prédio também acabou interditada. Os moradores, muitos deles desde a entrega das chaves, envelheceram e engordaram. Mesmo assim, ninguém questionou a medida, embora soubessem que o crescimento coletivo da massa corporal não foi previsto nos cálculos estruturais dos alicerces.
Eu e meu vizinho de andar, Jorge Bola Sete – apelido dado por alguns invejosos porque já está na sexta relação conjugal “estável” –, fazíamos ginástica e reflexões diárias sobre o festival de besteiras que ainda assolam a República desde os tempos do saudoso Stanislaw Ponte Preta. Com o fechamento da sala, cada um passou a suar dentro do próprio apartamento, tentando conter os estragos causados pela engorda em confinamento.
Uma tarde o encontrei apressadíssimo, descendo as escadas – o elevador tinha virado território de perdigotos –, de boné e óculos embaçados pela máscara:
– E aí, Jorjão, tudo em paz? – perguntei.
– Tudo. E com você?
– Por aí, escapando da peste e chacoalhando a gordura pra ver se dilui e desce.
– Chato, né, a sala continua fechada.
– Ainda bem! Melhor não arriscar...
Dias depois, Jorge Bola Sete me telefonou:
– Rapaz… O gringo, do 8º andar, alugou um container que virá cheio lá dos Estados Unidos. São móveis de tudo que é tipo, além do enxoval da neta, que nasce já.
– É mesmo?
– Vai sobrar espaço no container e vou pedir um equipamento para ginástica, uma esteira ergométrica ou coisa assim. Quer aproveitar? Ele ofereceu...
Ainda quis convencer minha mulher a adaptarmos um dos três quartos de nosso esconderijo para servir de sala de vídeo, leitura e ginástica, mas desconfiei de que ela me daria um “não” daqueles definitivos, sob o argumento de que quer manter pelo menos dois quartos disponíveis para filhos e netos.
– Muito obrigado… Não tenho onde colocar – declinei.
– Tudo bem. Se mudar de ideia, me avise.
Não deram três semanas e Jorge Bola Sete me procurou de novo. A esteira chegara. Descreveu-a com a crueldade de certos amigos nessas ocasiões: alta tecnologia, silenciosa, baixo consumo de energia, monitoramento de pressão arterial e batimentos cardíacos, relatórios de performance aeróbica, essas coisas.
– Passa lá em casa amanhã, bem cedinho. Eu e Ana vamos estrear.
De olho, inclusive, na tapioca e no cuscuz de minha vizinha, topei e fui lá. Os dois, com fones de ouvido e roupas coladas ao corpo feito embalagens a vácuo, estavam entusiasmados e ansiosos com o novo brinquedo. Ele então liga a TV e o home theater, ativa o bluetooth e coloca a máquina pra funcionar. Parecia um porta-aviões zarpando.
Ana aguardava a sua vez, fazendo alongamento e, imagino, numa confabulação telepática com o maridão. Luzes piscavam no painel, números surgiam, ouviam-se uns apitinhos esquisitos, tudo muito colorido, sonoro, quase uma nave de filmes de ficção científica.
Quarenta e cinco minutos depois, Jorge Bola Sete desembarca encharcado, toalha no pescoço e toma um copo d’água de um gole só. Ana limpa o excesso de batom com o dedo mindinho, escala o deck, agarra-se à barra e começa tudo de novo.
Eu via aquilo e tinha a sensação de que, a qualquer momento, o troço sairia deslizando pela sala como um patinete gigante, chegaria à varanda, alçaria voo e pousaria intacto nas imediações da feira de artesanato da Pajuçara. No final, eu estava mortinho de cansaço e de fome só de assistir.
Em menos de um mês, encontro o casal na garagem do prédio. Examino-o de cima a baixo à procura de uma possível redução de peso. Não percebo qualquer mudança significativa e, curioso, brinco:
– E aí, como vai a ginástica com a “gringa”?
– Nem me fale! – antecipa-se Ana – Acabamos de doar a esteira ao cara do 5º andar, aquele bancário metido a cronista. Estava virando cabide de roupa suja.
– Como assim? Doar um equipamento poderoso daqueles?
Nisso, toca o celular de Ana, que dá uma olhada na tela e alerta:
– É ele!
– Não atenda, não atenda! – diz o marido – O cara me ligou ontem umas cinco vezes...
Em seguida, toca o celular de Jorge Bola Sete. Era ele, de novo. Segunda ligação do dia e não eram nem oito da manhã. E meu amigo me implora, quase de joelhos:
– Atende aí, por favor. Diz que esqueci meu celular no seu apartamento, anteontem.
– O que houve, vocês brigaram?
– Nada... Mas, vai que ele resolve devolver aquele trambolho!