quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Que trambolho, hein?!

De uma hora para a outra, tive que me adaptar a novas formas de consumo, socialização e trabalho doméstico. Com as restrições impostas pela pandemia, as caminhadas, que antes eram feitas no calçadão da orla, migraram para a esteira da sala de ginástica do prédio. 

Manter-se sedentário seria o pior dos mundos. Disseram-me que atividades físicas melhoram o sistema imunológico, além de ajudar na gestão de doenças crônicas que se herdam ou se adquirem com o passar dos anos, caso se tenha a sorte de chegar ao último terço da estrada.

 

Mas a sala de ginástica do prédio também acabou interditada. Os moradores, muitos deles desde a entrega das chaves, envelheceram e engordaram. Mesmo assim, ninguém questionou a medida, embora soubessem que o crescimento coletivo da massa corporal não foi previsto nos cálculos estruturais dos alicerces. 

 

Eu e meu vizinho de andar, Jorge Bola Sete – apelido dado por alguns invejosos porque já está na sexta relação conjugal “estável” –, fazíamos ginástica e reflexões diárias sobre o festival de besteiras que ainda assolam a República desde os tempos do saudoso Stanislaw Ponte Preta. Com o fechamento da sala, cada um passou a suar dentro do próprio apartamento, tentando conter os estragos causados pela engorda em confinamento.

 

Uma tarde o encontrei apressadíssimo, descendo as escadas – o elevador tinha virado território de perdigotos –, de boné e óculos embaçados pela máscara:

– E aí, Jorjão, tudo em paz? – perguntei.

– Tudo. E com você?

– Por aí, escapando da peste e chacoalhando a gordura pra ver se dilui e desce.

– Chato, né, a sala continua fechada.

– Ainda bem! Melhor não arriscar...

 

Dias depois, Jorge Bola Sete me telefonou:

– Rapaz… O gringo, do 8º andar, alugou um container que virá cheio lá dos Estados Unidos. São móveis de tudo que é tipo, além do enxoval da neta, que nasce já.

– É mesmo? 

– Vai sobrar espaço no container e vou pedir um equipamento para ginástica, uma esteira ergométrica ou coisa assim. Quer aproveitar? Ele ofereceu...

 

Ainda quis convencer minha mulher a adaptarmos um dos três quartos de nosso esconderijo para servir de sala de vídeo, leitura e ginástica, mas desconfiei de que ela me daria um “não” daqueles definitivos, sob o argumento de que quer manter pelo menos dois quartos disponíveis para filhos e netos.

– Muito obrigado… Não tenho onde colocar – declinei.

– Tudo bem. Se mudar de ideia, me avise.

 

Não deram três semanas e Jorge Bola Sete me procurou de novo. A esteira chegara. Descreveu-a com a crueldade de certos amigos nessas ocasiões: alta tecnologia, silenciosa, baixo consumo de energia, monitoramento de pressão arterial e batimentos cardíacos, relatórios de performance aeróbica, essas coisas. 

– Passa lá em casa amanhã, bem cedinho. Eu e Ana vamos estrear.

 


De olho, inclusive, na tapioca e no cuscuz de minha vizinha, topei e fui lá. Os dois, com fones de ouvido e roupas coladas ao corpo feito embalagens a vácuo, estavam entusiasmados e ansiosos com o novo brinquedo. Ele então liga a TV e o home theater, ativa o bluetooth e coloca a máquina pra funcionar. Parecia um porta-aviões zarpando.

 

Ana aguardava a sua vez, fazendo alongamento e, imagino, numa confabulação telepática com o maridão. Luzes piscavam no painel, números surgiam, ouviam-se uns apitinhos esquisitos, tudo muito colorido, sonoro, quase uma nave de filmes de ficção científica.

 

Quarenta e cinco minutos depois, Jorge Bola Sete desembarca encharcado, toalha no pescoço e toma um copo d’água de um gole só. Ana limpa o excesso de batom com o dedo mindinho, escala o deck, agarra-se à barra e começa tudo de novo. 

 

Eu via aquilo e tinha a sensação de que, a qualquer momento, o troço sairia deslizando pela sala como um patinete gigante, chegaria à varanda, alçaria voo e pousaria intacto nas imediações da feira de artesanato da Pajuçara. No final, eu estava mortinho de cansaço e de fome só de assistir. 

 

Em menos de um mês, encontro o casal na garagem do prédio. Examino-o de cima a baixo à procura de uma possível redução de peso. Não percebo qualquer mudança significativa e, curioso, brinco:

– E aí, como vai a ginástica com a “gringa”?

– Nem me fale! – antecipa-se Ana – Acabamos de doar a esteira ao cara do 5º andar, aquele bancário metido a cronista. Estava virando cabide de roupa suja.

– Como assim? Doar um equipamento poderoso daqueles?

 

Nisso, toca o celular de Ana, que dá uma olhada na tela e alerta: 

– É ele!

– Não atenda, não atenda! – diz o marido – O cara me ligou ontem umas cinco vezes...

 

Em seguida, toca o celular de Jorge Bola Sete. Era ele, de novo. Segunda ligação do dia e não eram nem oito da manhã. E meu amigo me implora, quase de joelhos: 

– Atende aí, por favor. Diz que esqueci meu celular no seu apartamento, anteontem.

– O que houve, vocês brigaram? 

– Nada... Mas, vai que ele resolve devolver aquele trambolho!

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Sobre dar e receber presentes

potlatch é uma festa religiosa ainda hoje praticada por algumas tribos indígenas canadenses e norte-americanas. Depois de um banquete de carne de foca e salmão, acontece o ponto alto: uma pessoa que está sendo homenageada renuncia a todos os seus bens materiais, inclusive dinheiro, pedras preciosas, taças, mantas etc., distribuindo-os entre parentes e amigos. A expectativa de quem está sendo objeto da homenagem é, mais adiante, também receber presentes daqueles para os quais está doando seus bens, num troca-troca sem fim.

Com a influência de negociantes europeus que chegaram ao continente americano no decorrer do tempo, esses eventos passaram a ser mais frequentes, surgindo uma verdadeira guerra de poder entre algumas tribos. Algumas vezes, os bens foram simplesmente destruídos ou queimados após a cerimônia, embora a história nada registre acerca de sexo, drogas e rock’n roll para justificar a bagunça, se é que você está pensando nisso.

 

No começo do século XIX, os governos do Canadá e dos Estados Unidos proibiram o potlatch por considerá-lo uma perda estúpida de recursos muitas vezes escassos. Entretanto, com a compreensão antropológica do significado desse ritual, a restrição foi baixada na metade do século seguinte.

 

O vício milenar entre os humanos de dar e receber presentes enraizou-se a partir da mercantilização de sentimentos. No caso brasileiro, temos diferentes eventos festivos estimulando isso, como aniversários, batizados, dia dos namorados, das mães, dos pais, das crianças, amigo secreto etc. E quem não vê muito sentido no troca-troca, acaba sendo visto como um animal esquisito, antissocial.

 

A coisa anda tão séria por aqui que, se você for a uma festa de aniversário de uma criança sem levar presente, o risco de reprimenda em público é enorme. Compreensível, nesse caso, tratando-se de um ser inocente que ainda não se dá conta de que tem gente correndo atrás do caminhão de lixo em busca de restos de comida ou em filas a pedir ossos na porta dos açougues.

 

Pois bem. Um amigo meu se dizia frustrado porque nunca pôde presentear parentes. Era órfão e filho único. No entanto, casou-se, nasceram os filhos, e agora se queixa de que, no Dia dos Pais, os presentes são sempre os mesmos: cuecas e meias. Diz não se incomodar tanto, mas que os mimos seriam mais apropriados se fossem para a uma centopeia com três ou quatro bundas.

 

Pondera também que, no Natal, filhos de modo geral costumam dar tênis ou sapatos. Diz ainda que se o pai usa sapatos de cadarços, esteja certo de que vêm aí mocassins. Se usa tênis para as caminhadas por recomendação do cardiologista, ganhará um par próprio para jogar futebol. Pior, na cor amarelo-limão ou laranja-cenoura, incompatível com seu jeito de ser, adepto da invisibilidade social. Quanto ao tamanho, tanto faz: sapatos ou tênis deslizarão dos pés ou irão mastigar um dos pares de meias que ganhou justamente no último Dia dos Pais

 

“Se não gostou, pode trocar”, dirá o filhão responsável pelo presente. Pode acreditar, diz meu amigo: é alta a probabilidade de ouvir na loja que se tratava do último par daquele modelo. E se descobre na vitrine um par bem a seu gosto e decide fazer a troca, terá que pagar o dobro do que gastaria e se estivesse de fato precisando de calçados. “Pode ser no cartão de crédito”, vai ponderar o vendedor, como se isso reduzisse a despesa desnecessária. Melhor desistir de tudo e evitar o pico de pressão arterial, diz ele.

 

Se é aniversário, o pai ganha camisas que nunca lhe servem. Folgadas ou apertadas, brancas ou berrantes, lisas ou estampadas. Até aquela, digamos, "psicodélica", como se dizia no final dos anos 70, quando o pai ainda era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Isto é, todas serão fortes candidatas ao mofo das gavetas sem naftalina, junto a outras que, constrangido, deixou de doar porque foram presentes em anos anteriores. 

 


Ilustração: Dedé Dwight 

Certo dia virá o convite do filho para uma feijoada e a velha companheira de viagem, com a mais pura das intenções, irá propor ao maridão:
– Querido, veste aquela camisa que você ganhou de nosso filho.

– Eu não me sinto muito bem... 

– Mas fica tão bonita em você... Ele vai adorar!


Ao chegar, enquanto o pai mata a sede com a primeira cervejinha, o filho se aproxima e, segurando o riso, compara-o com aquilo que lhe resta na memória da figura paterna (nem lembra que a camisa fora presente dele mesmo):

– Véi, tá se achando, né? Tá parecendo uma toalha de mesa de pizzaria. Vai aonde, depois?

– Lugar nenhum. Por quê?

– Sei lá! Seja sincero: você andou fumando alguma coisa estragada?

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Pequenos inventos, grandes mudanças

A gente não percebe, mas algumas pequenas invenções mudaram de forma radical a vida dos seres humanos. E quase tudo deriva do ócio em suas múltiplas formas de prostração e moleza. Para o poeta Mário Quintana, “a preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”. 

 


Mas não vou falar sobre a roda – presente em quase todos os avanços da inteligência humana, da tecelagem até os motores mais complexos –, que não pode ser vista como uma pequena invenção. Longe disso. Há alguns milênios, desde que se percebeu que ela servia para alguma coisa, a humanidade já deu milhões de giros até os dias de hoje, chegando a criar uma rede de comunicação instantânea que conecta os pontos mais remotos da Terra e que meus netos acham que sempre existiu.

 

A ideia é refletir sobre pequenos inventos, simples como a sandália de dedo, que mudaram o mundo. Ícone do bem-estar, desconheço quem nunca teve (ou não tenha) pelo menos um par. Apenas sola e correias a proteger os pés e amaciar os passos, porém cobiçada até por filhotes de cachorro. Só mesmo um inseto pré-histórico tenaz e resistente desde a origem do universo lamentou a sua criação: a barata, que usa os cantos para se proteger daquela arma letal, em sua visão.

 

E o que dizer do guarda-chuva? Existe coisa mais prática, antiga e moderna ao mesmo tempo? Embora seja objeto bastante útil, sobretudo nos dias em que o chuvisco da manhã pode trazer dor de cabeça pro resto do dia, foi feito para ser esquecido no táxi, no banco da praça ou na entrada da padaria. Convive bem com a ingratidão, percebe-se.

 

E da caneta esferográfica, corresponsável pela maioria dos deslizes humanos quando se deixa levar por mãos inescrupulosas? Quem, como eu, quando criança sujou as mãos com uma Parker, sabe do prazer que deu o aparecimento de uma bolinha de aço na ponta de uma esferográfica, distribuindo a tinta suavemente sobre o papel, feito desodorante do tipo roll-on (sem o risco de puxar um pelinho desprevenido).  

 

Já havia experimentado outra sensação agradável quando lidei pela primeira vez com o apontador de lápis grafite, em substituição à faca ou à lâmina de barbear, que costumavam se aproveitar de minha pouca habilidade com instrumentos cortantes para produzir lacerações nos dedos. Quem não gostou da mudança, desconfio, foi o fabricante de Merthiolate

 

O palito de fósforo também me impressiona desde que me entendo por gente. Infalível, não aquele feito de papelão, mas o de madeira, com o cabeção na ponta. Cheguei a pensar que surgiu antes da descoberta do fogo no período neolítico. Mas os arqueólogos revelaram que a fogueira começou mesmo a partir do atrito entre dois pedaços de madeira, depois entre pedras, e, convenhamos, faz bem mais sentido.

 

Louvo também a mudança trazida pelo cortador de unhas, embora não tenha ocorrido ao seu inventor torná-lo um pouco mais funcional, pelo menos em relação aos pés de barrigudos como eu. A dificuldade diz respeito ao comprimento e a curvatura necessária ao cabo. Precisava, além disso, trazer junto um periscópio.

 

A dentadura é outra pequena invenção que, sem trocadilho, me deixou de queixo caído. Na meninice, flagrei uma de minhas tias sem a peça, ao acordar do cochilo depois do almoço. Foi duro ver aquela boca murcha segurando o riso para não dar vexame. Só quando a chapa foi colocada no devido lugar desapareceu dentro de minha cabeça a visão do inferno que se formava.

 

Mas de todos esses pequenos inventos, glorifico de pé a guilhotina de papel, que para mim contém atributos quase terapêuticos. Penso até que me poupa de distribuir murros ou bater com a cabeça na parede. Quer saber como?

 

Arrume duas caixas de papelão. Numa, coloque papéis velhos e deixe a outra vazia. Corte os papéis em pedacinhos, atentando que lascas muito pequenas podem dificultar o processo. A cada uma, concentre-se num problema ou desafeto que lhe incomoda. Depois, jogue a respectiva lasca na caixa vazia, a ser transformada em cemitério de seus pensamentos impublicáveis. 

 

Mesmo avesso a redes sociais, noto ainda assim que se cobra dos usuários uma tal de “lacração”, gíria que define aqueles que "mandam bem", "arrasam", ao postarem comentários polêmicos buscando apoio de seguidores. E se tocam em questões sensíveis para alguns ou demarcam territórios ideológicos, religiosos e futebolísticos, provocam reações de quem pensa diferente. Essa sucessão de revides alternados acaba criando um manicômio virtual estarrecedor.

 

Para escapar disso, prefiro o método da guilhotina de papel, que batizei de "lascação", onde mágoas e rancores podem ser reciclados de modo reservado ouvindo-se apenas o meu próprio ranger de dentes, sem despertar a fúria dos “inimigos”. 

  

Enfim, são tantos pequenos inventos a mudarem a vida da gente, todo dia, que desafio meus leitores e leitoras a refletirem sobre o tema. Sem “lacração”, por favor!

 

Li outro dia que o grande compositor Herivelto Martins – autor de clássicos como “Ave Maria no Morro”, “Cabelos Brancos”, “Atiraste uma pedra”, “Caminhemos” e “Segredo” – introduziu o apito no samba nos anos 40. Parece fácil, não é? Depois de inventado.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Juramento de Almirante

Há meio século, boa parte dos brasileiros esperava a edição de domingo do Jornal Nacional, da TV Globo, para conferir o resultado da Loteria Esportiva, com a participação de uma zebrinha falante de olhos e boca móveis criada pelo cartunista Borjalo. Em 1971, com a estreia, do programa “Fantástico  o show da vida”, a mascote migrou para a revista eletrônica.

Borjalo inspirou-se no jogo do bicho, invenção de João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond (1825–1897), para levantar fundos destinados ao custeio do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, que lhe pertencia. Essa antiga bolsa de apostas logo seria encampada para práticas ilícitas que ainda hoje enriquecem algumas famílias.

 

O jogo incluiu 25 animais (bichos), mas não a zebra, parente africana de nosso resignado jegue, este com séculos de serviços prestados ao povo brasileiro. Quando o resultado era negativo aos olhos do apostador, dizia-se ter "dado zebra". Daí à adaptação para placar esportivo imprevisto foi um pulo. E quando saía o resultado da Loteria Esportiva, a cada escore inesperado a bichinha debochava com sua voz esganiçada: “Olha eu aí... Zeeebra!”.

 

Lembrei-me dela porque a associava à decepção semanal dos falidos e mal pagos (no sentido do descompasso entre dívidas e salários) que viam na Loteca a oportunidade de escaparem da asfixia, recobrando o fôlego e a própria razão de seguir adiante com um aporte extra que, infelizmente, nunca chegava. O jogo sempre foi o penúltimo recurso dos desesperados.

 

Meu pai era dos que dormiam frustrados nas noites de domingo. Para ele, em condições normais de trabalho, temperatura e pressão, sem os 13 pontos na Loteca era impossível sair do atoleiro em que caíra junto com a mulher e os nove filhos. Ainda assim, toda segunda-feira amanhecia disposto, fingia-se de forte e partia para mais um round de uma luta inglória.  

 

Dois anos depois do final da peleja (no show da vida, ninguém disse que o resultado seria justo!), conheci Almirante. Nada a ver, registre-se, com a mais alta patente das forças navais. Apenas o apelido de um ajudante-de-serviço na Carteira de Crédito Agrícola e Industrial da Agência do Banco do Brasil em Maceió, quando ali cheguei, em 1974, como menor aprendiz. 

 

Logo aprendi que a expressão "bancário apertado" era pleonasmo. No caso dele, aliás, parecia navegar em mar revolto, cercado de peixões famintos (agiotas, bancos e alguns raros colegas de trabalho mais afortunados). Nada diferente daquilo que tinha visto em minha própria casa.

 

Mas toda semana um sopro de esperança agitava as velas do barco de Almirante: a fé nos 13 pontos na Loteca. Na segunda-feira, a desilusão reaparecia impiedosa em sua carranca. Restava esperar a próxima aposta, ruminando palavras num resmungo só. 

 

O gerente da agência, um distinto e respeitado cidadão na casa dos 60 anos de idade, de pouquíssima conversa (não se sabia se tinha dentes ou não, dado que nunca fora visto sorrindo!), personificava o establishment, o patrão bem-sucedido, o chefe dos chefes, admirado por autoridades civis, militares e eclesiásticas.  

 

Quase todo dia, circulava pela Carteira (3º andar do então recém-construído prédio da Rua do Livramento, 120), traçando uma orientação aqui, dando uma ordem acolá etc. Pouco depois, arrastava-se com seus passos curtos até o elevador, marchando em direção ao imponente gabinete no 5º andar onde, dentre outras figuras da elite alagoana, recebia os herdeiros do baronato do ciclo da cana-de-açúcar do Brasil Colonial entre os séculos XVI e XVIII.

 

Numa quinta-feira, último dia para realizar a aposta semanal na Loteca, um gaiato (cujo nome não vem ao caso) que trabalhava ao lado de Almirante, ao perceber que o gerente da agência acabara de chegar, quis ser ouvido pelos colegas mais próximos:

– Almirante, se você cravar os 13 pontos, sozinho, qual será a primeira coisa que vai fazer? 

 

Ilustração: Umor

Debruçado sobre recortes de jornais e revistas com palpites e prognósticos, lápis na orelha, óculos na ponta do nariz, Almirante foi de uma inesquecível sinceridade:
– Juro que vou lá no 5º andar dar uma cagada bem na mesa do gerente!

 

O chefão, que passava despercebido por ele, deu-lhe três tapinhas carinhosas no ombro e esboçou um sorriso ainda incapaz de revelar a existência de arcada dentária:

– O que eu lhe fiz, meu caro? – quis saber.

– Nada, nada... Foi sem querer! – gaguejou o apostador, desculpando-se pela resposta incompatível com as gravatas e os sapatos engraxados no ambiente. 

– E como você pretende se limpar? – provocou de novo o gaiato que iniciara o deus-nos-acuda.

 

 

Almirante pode até ter pensado nas cortinas de linho do gabinete do 5º andar, que escondiam a vista maravilhosa da praia da Avenida, mas preferiu o silêncio. Quando o gerente se foi, aí sim, levantou-se e partiu com tudo para cima do gaiato:

– Você não vale nada! Como é que faz uma coisa dessas comigo!?

 

Nisso, chegava outro engraçadinho, curioso com as gargalhadas:

– O que tá acontecendo aqui?

– Nada! Nada! Deu zebra... – resumiu o apostador, passando a régua no episódio, que poderia feder ainda mais para o seu lado na época do milagre econômico para as famílias de sempre, óbvio. 

 

Como a maioria dos brasileiros, Almirante nunca conseguiu acertar os 13 pontos na Loteria Esportiva. Nem cumprir seu juramento memorável, em nome, inclusive, dos falidos e mal pagos daquele tempo.