domingo, 15 de março de 2020

Cobrando a conta

Morto de cansaço e fome, Vieira chegava em casa  para o jantar quando seu filho lhe entregou um envelope com cara de quem cumpria uma missão importante: “Pai, a tia me pediu para entregar na sua mão. Quer que eu leve uma resposta até sexta-feira”.

Era a cobrança de mensalidades escolares em atraso, em tom de  ameaça, assinado pela diretora e pela tesoureira da escola. Vieira leu, engoliu seco e perdeu o apetite. Atrasaria qualquer conta a pagar  — prestação do imóvel, do carro etc. —, menos a que pudesse causar constrangimento ao filho.


Pior: não havia atraso algum. A transferência entre bancos via doc (documento de ordem de crédito) tinha sido criada no começo dos anos 80. Ele gostou da inovação e assim que recebia seus salários, transferia para a conta da escola o valor da fatura. Com o tempo escasso e dividido entre faculdade e trabalho, era a alternativa encontrada para não ter que se deslocar  todo mês à secretaria do colégio.
 
Vieira poderia ter sido mais elegante, politicamente correto. Chateado, no entanto, na manhã seguinte revidou com mão de chumbo, escrevendo no verso da cobrança recebida uma resposta curta, dura e grossa: 
 
“(...) Não devo nada!  Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, nos prazos, os valores das mensalidades que me cobram.
Dinheiro não cai do céu. Se aparece na sua conta, procure identificar a origem no seu banco para evitar cobrança indevida, sobretudo através de portadores inocentes.
Não me cobrem mais dessa forma! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”

Teve sorte. Poderia sofrer processo judicial por injúria, misoginia ou, na pior das hipóteses, ser ameaçado de morte por alguém tomando as dores do revide no vale-tudo daqueles tempos. Só uma década depois, em 1990, surgiria o Código de Defesa do Consumidor para colocar alguma ordem “no recinto”.

Talvez as cobradoras não se deram conta quando ele se referiu ao esconderijo de castanhas do primata. Ou pensaram que fosse apenas uma alusão aos saguis que apareciam no cajueiro que havia próximo ao pátio de recreio. Para evitar novas cobranças, contudo, decidiu mandar pelo filho, todo mês, cópia do comprovante de transferência para a secretaria da escola. 
 
É verdade que, àquela altura do jogo, Vieira já andava de cabeça quente com a excessiva mercantilização da educação no país, a cobrar de pais de alunos, no começo de cada ano letivo, desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por garrafas, barbantes, pregos, velas etc., numa interminável lista de materiais supostamente escolares.
 
Também não engolia ver o filho ser cobrado pelas mesmas coisas que lhe exigiram nos anos 60, como aprender a ler soletrando sílabas ou a somar, diminuir, multiplicar e dividir, na ponta do lápis, como se as pequenas calculadoras que surgiam fossem modismo passageiro ou brinquedos eletrônicos descartáveis.

Mais tarde, seu filho ainda seria cobrado, assim como havia acontecido com ele, a decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra”, que “a raiz quadrada do número 1 será ele mesmo” ou que “duas ou mais retas paralelas  encontram-se no infinito”. Vieira esperava mais da escola, além de noções básicas de Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. 

Óbvio que não se tratava de terceirizar papéis 
— tinha consciência de que educar é tarefa compartilhada entre pais e educadores —, mas sonhava, por exemplo, que a escola lhe ajudasse a ensinar o filho a sentar ao lado dos que se sentiam sozinhos e precisavam de ajuda. A nunca se arrepender do bem que fizesse aos outros. A ser humilde e a encorajar os mais frágeis. A nunca se sentir dono da verdade nem ser egoísta. A se colocar no lugar dos "inimigos" num desentendimento qualquer. A não guardar mágoas, ressentimentos. 

Vieira sonhava receber da escola boletim com as notas do filho em "disciplinas" básicas como Compaixão, Generosidade, Inveja, Raiva, Resiliência, Solidariedade etc. Estava seguro de que é isso que diferenciaria uma vida plena de outra medíocre.

Viu com o tempo, no entanto, que, tal como lhe aconteceu no passado, foi a vida que educou seu filho — assim como faz agora com seu neto — pelo velho método de tentativas e erros de que todos os seres vivos se utilizam para criarem um mundo menos hostil. 

A escola aparece apenas para carimbar certificados e cobrar a conta. 

domingo, 1 de março de 2020

De pai para filho, às vezes

Reco do Bandolim (Henrique Filho) é músico, compositor, jornalista, radialista e produtor cultural.  Nascido na Bahia, radicou-se em Brasília desde os primórdios da Capital, onde cuida com zelo e talento do Clube do Choro, um dos templos sagrados da música instrumental brasileira. 


Há poucos dias compartilhou com amigos texto escrito por seu filho durante um voo que fizeram juntos, no começo do ano, de Salvador para Brasília. Texto que, segundo ele, discorre sobre uma manhã em que “Henriquinho se deixou diante do mar de Piatã”. Disse mais sobre seu filho, também músico e compositor: “... vive em Portugal, e meu coração, a um só tempo, feliz e aflito de saudades.”

Sob o título “Coração de Pedra”, Henrique Neto escreveu como se espalhasse notas musicais sobre um pentagrama:

“(...) Quando passo um tempo sozinho em frente ao mar sinto que reencontro alguma coisa que andava perdida. Acho que é uma certa sensação de transcendência que sua imensidão me causa e, ao mesmo tempo, por outra razão talvez ainda mais importante: o mar nunca se cansa de repetir seu balé. Milhões de anos repetindo o mesmo ritual, os mesmos movimentos e nada abala o desempenho do mar e seu prazer em somente existir. (Hoje em dia, com a quantidade ridícula de estímulos que temos a todo instante, ficamos com a impressão de que a repetição está associada necessariamente ao tédio. Que engano). Deve ser por isso que Caymmi gostava tanto de estar junto do mar. Ali, ele alimentava e renovava suas esperanças e se enchia de infinito que depois transformava em canções. 

Gosto muito de ver ele vir macio lá de trás, subir suas ondas, quebrar na praia, fazer sua espuma, recuar sua água e depois repetir a coreografia. E por mais tempo que passe olhando pra ele não canso de olhar. Parece que nada é banal naquele espetáculo e tudo tem um significado: o som das ondas, o recuo e o avanço das marés, a espuma que surge com a quebra das ondas... 

... O mar, com suas águas macias, não respeita (no melhor sentido da expressão) a força da rocha. Ele simplesmente envolve a pedra com a fluidez do seu bailado (...)”

                                      ***

Assim que fechei a leitura, quis dizer alguma coisa a Reco, mas eram pobres os adjetivos que me ocorreram para qualificar a beleza do texto, inspirado numa praia como outra qualquer, de águas um tanto frias e areia dura, amarelada, que conheço há anos.

Ah! Se ele, o autor do texto, soubesse das praias de Pajuçara e Ponta Verde — com sargaço e tudo! , onde quase todo dia vejo o sol chegando bem devagar, calado, a render a lua e a trazer no colo uma manhã vestida de esperança.

Ah! Se eu soubesse expressar como ele, com um violão nas mãos, o que transborda no coração dessa gente resignada que passa por mim logo cedo e vai em frente mesmo sem ter com quem contar, surfando nas alegrias e agonias de cada dia. 

Ah! Se eu soubesse, assim como o autor e o pai sabem, extrair de cordas sons tão caros e raros ao coração de quem se deixa diante do palco no Clube do Choro a lhes escutar. Nunca mais eu deixaria de tocar. 

Como nunca aprendi a tocar um instrumento  nem cuíca, prato, reco-reco ou tuba —, só consigo tocar meia dúzia de corações quando escrevo. Já não me iludo mais: bandolim e violão, assim como piano e saxofone, representam muita areia pro meu carrinho de mão enferrujado. 

Por isso, rendo minha homenagem inclusive aos tocadores de cuíca, prato, reco-reco e tuba. No caso da tuba, aliás, confesso que até hoje fico intrigado quando vejo aquele sujeito, na parada militar ou no coreto da praça, carregando um treco maior do que ele apenas para, de vez em quando, soprar um ofegante "fum-fum". 

Ainda bem que os filhos nem sempre puxam ao pai.