Morto de cansaço e fome, Vieira chegava em casa para o jantar quando seu filho lhe entregou um envelope com cara de quem cumpria uma missão importante: “Pai, a tia me pediu para entregar na sua mão. Quer que eu leve uma resposta até sexta-feira”.
Era a cobrança de mensalidades escolares em atraso, em tom de ameaça, assinado pela diretora e pela tesoureira da escola. Vieira leu, engoliu seco e perdeu o apetite. Atrasaria qualquer conta a pagar — prestação do imóvel, do carro etc. —, menos a que pudesse causar constrangimento ao filho.
Pior: não havia atraso algum. A transferência entre bancos via doc (documento de ordem de crédito) tinha sido criada no começo dos anos 80. Ele gostou da inovação e assim que recebia seus salários, transferia para a conta da escola o valor da fatura. Com o tempo escasso e dividido entre faculdade e trabalho, era a alternativa encontrada para não ter que se deslocar todo mês à secretaria do colégio.
Vieira poderia ter sido mais elegante, politicamente correto. Chateado, no entanto, na manhã seguinte revidou com mão de chumbo, escrevendo no verso da cobrança recebida uma resposta curta, dura e grossa:
“(...) Não devo nada! Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, nos prazos, os valores das mensalidades que me cobram.
Dinheiro não cai do céu. Se aparece na sua conta, procure identificar a origem no seu banco para evitar cobrança indevida, sobretudo através de portadores inocentes.
Não me cobrem mais dessa forma! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”
Teve sorte. Poderia sofrer processo judicial por injúria, misoginia ou, na pior das hipóteses, ser ameaçado de morte por alguém tomando as dores do revide no vale-tudo daqueles tempos. Só uma década depois, em 1990, surgiria o Código de Defesa do Consumidor para colocar alguma ordem “no recinto”.
Talvez as cobradoras não se deram conta quando ele se referiu ao esconderijo de castanhas do primata. Ou pensaram que fosse apenas uma alusão aos saguis que apareciam no cajueiro que havia próximo ao pátio de recreio. Para evitar novas cobranças, contudo, decidiu mandar pelo filho, todo mês, cópia do comprovante de transferência para a secretaria da escola.
É verdade que, àquela altura do jogo, Vieira já andava de cabeça quente com a excessiva mercantilização da educação no país, a cobrar de pais de alunos, no começo de cada ano letivo, desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por garrafas, barbantes, pregos, velas etc., numa interminável lista de materiais supostamente escolares.
Também não engolia ver o filho ser cobrado pelas mesmas coisas que lhe exigiram nos anos 60, como aprender a ler soletrando sílabas ou a somar, diminuir, multiplicar e dividir, na ponta do lápis, como se as pequenas calculadoras que surgiam fossem modismo passageiro ou brinquedos eletrônicos descartáveis.
Mais tarde, seu filho ainda seria cobrado, assim como havia acontecido com ele, a decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra”, que “a raiz quadrada do número 1 será ele mesmo” ou que “duas ou mais retas paralelas encontram-se no infinito”. Vieira esperava mais da escola, além de noções básicas de Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática.
Óbvio que não se tratava de terceirizar papéis — tinha consciência de que educar é tarefa compartilhada entre pais e educadores —, mas sonhava, por exemplo, que a escola lhe ajudasse a ensinar o filho a sentar ao lado dos que se sentiam sozinhos e precisavam de ajuda. A nunca se arrepender do bem que fizesse aos outros. A ser humilde e a encorajar os mais frágeis. A nunca se sentir dono da verdade nem ser egoísta. A se colocar no lugar dos "inimigos" num desentendimento qualquer. A não guardar mágoas, ressentimentos.
Vieira sonhava receber da escola boletim com as notas do filho em "disciplinas" básicas como Compaixão, Generosidade, Inveja, Raiva, Resiliência, Solidariedade etc. Estava seguro de que é isso que diferenciaria uma vida plena de outra medíocre.
Viu com o tempo, no entanto, que, tal como lhe aconteceu no passado, foi a vida que educou seu filho — assim como faz agora com seu neto — pelo velho método de tentativas e erros de que todos os seres vivos se utilizam para criarem um mundo menos hostil.
A escola aparece apenas para carimbar certificados e cobrar a conta.