quarta-feira, 31 de julho de 2019

Não deu, Elis


Nunca fui de lamentar sonhos frustrados. Meu maior temor nunca foi de fracassos pontuais no dia a dia, mas de conquistas que não fizessem muito sentido para mim ou para quem estivesse a meu lado.

Na segunda metade de 2014, a turma que trabalhava comigo na diretoria de marketing do Banco do Brasil (Avelar Matias, Delano Valentim, Fernando Vieira, Gissanne Alves, Hugo Paiva, Márcia Veloso, Michele Domingues, entre outras pessoas) havia recebido a encomenda de criar algo na linha do chamado marketing de experiencia, direcionado ao segmento de alta renda do eixo Rio-São Paulo. 

Esse tipo de evento tem sido uma das principais estratégias das marcas que pretendem criar vínculos mais sólidos com seus clientes. A ideia é estabelecer conexões emotivas, o que vai muito além da obrigação da satisfazê-los com produtos e serviços.

É preciso oferecer algo que dinheiro nem sempre pode comprar como, por exemplo, jogar tênis numa manhã de sábado com Gustavo Kuerten (Guga), um dos maiores atletas da história do tênis mundial, tricampeão de Roland-Garros.  Ou assistir de camarote a U2, Rolling Stones e Paul McCartney, com direito à visitas aos camarins, entre outras ações que já haviam sido realizadas.

Das possíveis ações que discutimos, uma delas seria oferecer jantar em grande estilo para 80 pessoas, assinado por renomado chef, com direito a "pocket show" inédito, em termos de MPB.

Na ocasião recordei de uma passagem marcante do livro "Noites Tropicais", do escritor, compositor e jornalista Nélson Motta. Sugeri, então, que procurássemos a cantora Maria Rita e seu pai, o pianista e compositor César Camargo Mariano, para que pensassem sobre como resgatar um pouco da mística da mãe e esposa Elis Regina (1945 – 1982), que falecera prematuramente, aos 37 anos, no esplendor de sua carreira artística.  

Dez anos antes de sua morte, Elis estava se divorciando do compositor e jornalista Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994), no começo de 1972, quando teria ouvido a primeira parte de uma canção que estava sendo composta por Chico Buarque e Francis Hime:

“Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei/Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei/E me arrastei, e te arranhei/E me agarrei nos teus cabelos/Nos teus pelos, teu pijama/Nos teus pés, ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta/Reclamei baixinho...”

Tanto ela quanto César (nessa época, seu pianista e diretor musical) ficaram tão impressionados que a gravação foi marcada para três dias depois. Até lá, o produtor Roberto Menescal cobraria de Chico a segunda parte da letra da música.

Enquanto aguardava o dia da gravação, Elis convidou alguns amigos, entre eles o próprio César, para assistirem a um filme em sua casa. Durante a projeção, ela deu um jeito de entregar um bilhete a César, que leu e se assustou: era uma cantada explícita. César, embora interessado, ficou inseguro e desapareceu por 48 horas. Na hora da gravação, porém, chegou ao estúdio. 

Nélson Motta assim descreveu em seu livro este momento mágico: “...Elis sorriu sedutora. César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de 'Atrás da porta'. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na área técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos. Elis chorava abraçada por César. Juntos, César e Menescal foram levar a fita para Chico, que ouviu... e terminou a letra ali mesmo, no ato".

"... Dei pra maldizer o nosso lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço/Te adorando pelo avesso/Pra mostrar que inda sou tua/Só pra provar que inda sou tua.”

Em outubro de 1980, oito anos depois da gravação original de "Atrás da Porta", quando o casamento de César e Elis estava por um fio de cabelo, eles protagonizaram juntos um capítulo singular da série "Grandes Nomes", exibida pela “Rede Globo”, que ficou tatuado na memória dos amantes da MPB: Elis cantou de forma tão intensa e visceral que, no fim, desabou no choro. 

O ponto alto do jantar em grande estilo que pretendíamos oferecer seria ver e ouvir pai e filha numa nova versão da música imortalizada pela mãe. Isso, tínhamos certeza, dinheiro não compraria!

Mas não deu certo. Maria Rita não pôde abraçar o projeto. Com o sucesso de seu álbum “Coração a Batucar”, andava totalmente envolvida numa edição especial em CD e DVD que lançaria no início de 2015. 

A alternativa que encontramos – Vanessa da Mata cantando o melhor de Gilberto Gil, em novembro de 2014 – , acabou sendo muito bem recebida pelos clientes, tanto no Rio como em São Paulo. Mas nada arrebatador, raro, capaz de ser lembrado dali a 10 ou 15 anos.

Não deu, Elis. Para mim, a experiencia vivenciada pelos clientes não se deu na dimensão que pretendíamos. Quando os últimos deixaram o recinto, ficou a sensação de que você, com seu sorriso largo e sua voz única, subiu ao palco para nos consolar cantando Guilherme Arantes "Vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar..."

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Crepúsculo de mitos


Ele ajeitou o nó de minha gravata com aquelas mãos delicadas de quem nunca na vida pegou em cabo de foice para descascar coco verde ou trocar pneu com parafusos apertados, deu três tapinhas na lapela de meu paletó e, com sua voz quase inaudível, profetizou: “você vai se dar muito bem na Bahia!”

“Eu tinha certeza de que o senhor iria gostar dele. É uma de nossas promessas e mereceu ser nomeado superintendente na Bahia”, disse o então presidente do Banco do Brasil, Andrea Calabi, que, junto com o diretor Marcelo Teixeira, estava comigo naquela visita ao todo-poderoso do Congresso Nacional, ao meio dia de quinta-feira, 20 de maio de 1999. O senador Antonio Carlos Magalhães (1927 – 2007) virou-se para mim e encerrou a conversa em tom de paz: “... e ainda dizem que sou político; político é seu presidente, está vendo?”

Ao chegar a Salvador na segunda-feira para assumir o cargorecebi logo cedo dois telefonemas: dos gabinetes do governador César Borges e do prefeito da Capital, Antonio Imbassahy. Eram convites para breve conversa sobre projetos em andamento. Com ambos, a prosa começou mais ou menos assim: “Seja bem-vindo. O senhor chega precedido das melhores referências possíveis. Sinta-se em casa...”


Uma semana antes eu havia encontrado em Pernambuco, onde trabalhava, o então deputado federal José Múcio Monteiro Filho. Ao me ver com o semblante meio tenso, perguntou sobre o que estaria acontecendo:
— Nada demais, deputado. É que toda mudança mexe com a gente, com a família...
— Você está indo embora de Pernambuco?
— Fui nomeado pra Bahia. Pior é que não serei bem-vindo. Soube que o “velho” ficou bravo porque a direção do banco não lhe comunicou com antecedência que estava trocando o superintendente estadual.
— Deixe comigo! Fui muito amigo do filho dele, Luís Eduardo, que morreu ano passado. O senador me respeita muito. Vou dizer que a Bahia mais uma vez está passando a perna em Pernambuco. Ele vai gostar de ouvir isso.

Deve ter atiçado a curiosidade do senador ACM em relação a mim, dado que a secretária, no dia seguinte, telefonou dizendo que ele gostaria de me receber. Queria saber, inclusive, se eu poderia viajar a Brasília já na quinta-feira. Respondi que sim e, em seguida, liguei para  meu chefe imediato contando o que acontecera.  

Foi quando o diretor Marcelo Teixeira me comunicou que o presidente Andrea Calabi decidira ir comigo. E confirmou o que já se sabia: de fato, o senador ACM ficara chateado com a troca de superintendentes sem que fosse avisado, não atendia ligações do banco nem tampouco dava retorno. 


Logo ele que, no início dos anos 60, protagonizara episódio dos mais bizarros da história política brasileira, em defesa do ex-presidente do BB, o baiano Clemente Mariani Bittencourt, na ocasião ministro da Fazenda de Janio Quadros. 


ACM por muito pouco não foi assassinado pelo famoso deputado federal Tenório Cavalcanti (1906 – 1987), alagoano radicado na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, chamado de "O homem da capa preta" porque costumava carregar aonde fosse sua lendária "Lurdinha", uma metralhadora MP-40 de fabricação alemã, usada na II Guerra Mundial.


Em discurso no plenário, Tenório Cavalcanti acusava Clemente Mariani de desvio de verbas quando o então deputado federal ACM pediu um aparte não só para rebater a acusação como também para chamar o deputado fluminense de "protetor de jogos de azar, explorador de prostíbulos e ladrão". 


O tempo fechou na hora! "O homem da capa preta" sacou seu revólver e partiu para cima: "vai morrer agora mesmo!" Com os olhos esbugalhados, ACM", protegido pela "turma do deixa disso", foi corajoso: "atira que eu quero ver!". Dá pra imaginar o pânico e a correria dos nobres representantes do povo brasileiro na Câmara dos Deputados.

A rir das calças molhadas do parlamentar baiano,  que na agonia fora vítima de constrangedora incontinência urinária, Tenório Cavalcanti resolveu poupar a vida do colega e retirar o dedo do gatilho, mas não sem antes esculachar de forma cruel: "pode sossegar; só atiro em homem". 


O episódio nunca foi engolido e mereceria impiedosa vingança, na calada da noite, três anos depois: os direitos políticos do deputado fluminense foram cassados em 1964, com a interveniência direta e pessoal de ACM junto ao governo militar, que já ouvia com muita atenção a tudo que o baiano tinha a dizer sobre qualquer assunto. 


Tenório Cavalcanti, cuja vida rendeu um clássico do cinema nacional, estrelado por José Wilker e Marieta Severo, jamais recuperaria seu prestígio político até morrer em 1987, aos 80 anos. Nem a "Lurdinha" conseguiu vencer uma traiçoeira pneumonia.



Tomei conhecimento desses fatos em velhos jornais quando de minha primeira passagem pela Bahia, onde havia trabalhado no início dos anos 90. Quase uma década depois, no voo entre Recife e Brasília, cuidava de me atualizar sobre dados de natureza econômico-social para, se necessário, poder falar com segurança sobre o que sabia e pretendia fazer no novo desafio profissional.

Ao chegarmos na porta do gabinete da presidência do Congresso Nacional, às 11h55, o velho cacique pessoalmente nos esperava e fez questão de registrar antes mesmo dos cumprimentos formais: “já gostei de sua atenção e pontualidade; isso é muito importante!”.

A conversa fluiu com cordialidade sobre vários temas: desde a crise no Litoral Sul com a praga da vassoura-de-bruxa sobre os cacaueiros, passando pela nova fronteira de grãos no Oeste, pela decadência econômica do Recôncavo, pela pecuária do Sudoeste, pelas culturas irrigadas do Médio São Francisco, até o surto de desenvolvimento trazido pelo polo industrial de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador.

Decorridos cerca de 45 minutos, o senador levantou-se – era o sinal de que a reunião chegara ao fim – e ajeitou o nó de minha gravata... O resto eu já contei.

Seria injusto e mentiroso se dissesse que algum dia recebi qualquer pedido indecente de alguma autoridade baiana, cobrando reciprocidade pela forma calorosa com que me acolheram. Uma única vez o senador ACM me ligou para pedir algo simples e até desnecessário: meu empenho para que não houvesse irregularidades numa licitação pública que ocorreria naqueles primeiros meses.

Tranquilizei-o explicando que o banco possuía uma área técnica especializada no assunto e que não haveria a menor chance de intercorrências, tanto por conta do rigor normativo, como pelo número de pessoas – umas de olho nas outras – envolvidas nas decisões colegiadas por toda a cadeia do processo decisório.

De repente, do nada, o senador desatou a chorar, lembrando do filho Luis Eduardo Magalhães – a quem desejara ver no Palácio do Planalto  que falecera um ano antes. Dizia coisas como “Deus não podia ter feito isso comigo... Tinha que deixar meu filho e me levar... eu não sei o que continuo fazendo aqui!”. Pais não deveriam enterrar seus filhos, nunca.

A dor humaniza, desperta compaixão e nivela por cima as pessoas. Fiz o que pude, ao telefone, para acalmar e consolar um dos homens mais poderosos da República no século passado, que aos poucos foi se recompondo, pediu perdão pelo desabafo "fora de hora" (sic) e desligou. Nunca mais nos falamos. Nem quando fui embora trabalhar em Brasília, em setembro de 2000.


Havia conhecido o governador Miguel Arraes (1916 – 2005) quando trabalhei em Pernambuco, de 1996 a 1999. Era tido como uma das maiores lideranças das lutas populares que marcaram a segunda metade do século 20. Três anos e meio depois, conhecia Antonio Carlos Magalhães. 

Vi de perto o crepúsculo desses dois ícones políticos com visões de mundo totalmente opostas e características tão distintas quanto caldo de cana e azeite de dendê, mas com alguns traços em comum: o amor ao poder e à veneração que despertavam em seus seguidores, além do profundo respeito que nutriam pela instituição que eu representava. 


Vi de perto que mitos não morrem nunca; viram lendas. E ainda recebia salários, todo dia 20, para assistir a tudo. De camarote. 


quarta-feira, 17 de julho de 2019

Cabeça de mãe


Faltava energia às 10 horas da noite de terça-feira, 26 de fevereiro de 1958, quando ele nasceu na maternidade do Hospital São Vicente de Paulo, em Itabaiana, na Paraíba, berço de grandes artistas como Zé da Luz, Sivuca e onde vive, atualmente, o grande Jessier Quirino. 

Era uma criança tão feia que assim que a energia voltou o médico foi conferir se por acaso não teria jogado no lixo o pimpolho e deixado a placenta nos braços da mãe que, aos 19 anos, exausta, recuperava-se do esforço sobre-humano feito para expulsar aquela respeitável caixa craniana. 

Nas 48 horas seguintes, aguardou-se para ver se não brotava algum apêndice caudal na figurinha cabeluda de pouco mais de 4 kg, chorona e de olhos tristes, que começava a bisbilhotar o universo em sua volta, sem entender de onde vinha nem para onde estava indo.

Era humano! Uma santa teria soprado aos seus ouvidos: “Calma! Só dói assim na descida e na subida; aproveite o vôo e boa viagem.”

A mãe jura que exageram quando tocam nesse assunto. Cabeça de mãe é tudo igual. Ela mesmo contou outro dia que, ao receber o filhote para amamentá-la pela primeira vez, indagou da freira responsável pelo berçário se não teria ocorrido alguma troca de bebês quando a luz apagou. O correr do tempo, o mingau de amido de milho, a tapioca, o cuscuz, o futebol e as braçadas em açudes e rios, melhoraram bastante a proporção entre cabeça, tronco e membros daquela criatura. 

É claro que a mãe até hoje é grata ao filho porque sem querer facilitou a chegada suave dos sete irmãos seguintes. Interessante notar que não havia nada hereditário que justificasse o cabeção da criança. Nem mesmo uma possível ascendência cearense, região pra lá de distante do Oeste maranhense e do Agreste paraibano onde viveram seus ancestrais paternos e maternos. 

Passados os dois primeiros dias, o pai foi ao Cartório Santiago Bandeira fazer o registro do nascimento tendo em mãos um documento fornecido pela maternidade onde escrito que se tratava de uma criança de cútis morena. Anos depois, um cunhado seu, pouquinho mais moreno, achou de perturbar o juízo da sogra exibindo o próprio registro onde consignado que nascera de cútis branca. A resposta foi curta e afiada feito coice de porco: “pelanco de urubu também nasce branco!”. De novo: cabeça de mãe é tudo igual.

O costume execrável de misturar nomes de pai (Agostinho) e mãe (Eudócia) para nominar recém-nascido aqui não daria certo mesmo: Agostócio ou Eutinho seria cruz de pau-ferro, pesada demais para os ombros do inocente. O pai até poderia homenagear — não quis assim — dois ídolos chamados Orlando: o quarto-zagueiro vascaíno, que integrava a seleção brasileira que viria a ser campeã mundial na Suécia meses depois; e o Silva, o cantor das multidões da época de ouro do radio, grande intérprete de “Aos pés da cruz”, “Carinhoso” e  “Rosa”.

“Hayton”, na verdade, é sobrenome lá para as bandas do Reino Unido. Já o primeiro sobrenome é na verdade nome próprio nativo, de raiz: “Jurema”, que em tupi significa “arvore de espinhos de cheiro desagradável”. É planta comum no Nordeste, cujas folhas podem dar origem a um chá narcótico e alucinógeno. “Rocha”, último sobrenome, seguramente veio da Península Ibérica com os expatriados para Pindorama.

Ao resolver homenagear um colega de trabalho (Hayton Vidal dos Santos) que fora seu guru-orientador nos passos iniciais da carreira no Banco do Brasil, o pai não imaginava que o filho seria chamado de várias formas pelos professores a cada primeiro dia de aula nas escolas em que estudou: Ail-ton, Ei-ton, Rai-ton, Rei-ton, Uai-ton etc. Menos de Hayton (ái-ton). Só depois de breve explicação ninguém mais esquecia daquele nome, bem mais complicado, por exemplo, do que: Ciço, João, Raimundo, Tonho ou Zé. 

O nome esquisito e o crânio levemente avantajado eram pratos cheios para "bullying", mas desde cedo o menino aprendeu a se defender de quem se atrevesse a lhe apelidar. Dotado de altura e força acima da média dos moleques de sua idade, possuía, além disso, respostas afiadas e cruéis na ponta língua para calar os buliçosos, a quem faltava coragem e imaginação para lhe chamar, por exemplo, de: Caixa d’Água, Estoura Gola, Lua Cheia ou Maçã do Amor.

Conseguiu atravessar ileso a infância e a adolescência, sem que lhe colassem nenhum apelido digno de nota. Mas, início dos anos 90, num belo dia em que acabara de mergulhar na piscina da AABB Salvador, uma irreverente cidadã carioca, tia de grande amiga sua, depois de uns bons goles de cerveja resolveu cutucar o gatão felpudo no esplendor de seus 33 anos para ver o que acontecia: “e aí, Cabeção, a água está boa?”

Ele fez cara de besta mas respondeu com outra pergunta, na lata: “com qual delas a madame está falando?” A própria sobrinha Sílvia, com o marido, vulgo Gasolina, ambos numa mesa com pelo menos dez pessoas, quase racham as costelas de tanto rir da coitada da Tia Odete. E entre acarajés, pilombetas e vatapás, a cerveja gelada rolou até a pôr do sol. Ainda não havia bafômetros estraga-prazeres a espreitá-los pelas ruas da Bahia.  

A vida é assim mesmo.  Quem tem orelha de abano, nariz de batata, olho de jipe ou boca da noite não escapa da zoação geral. Ser cabeçudo, porém, é o que mais tira um sujeito do prumo, principalmente depois de velho, quando a barriga cresce, os pelos caem e as canelas afinam.

Mas chega a hora em que o sujeito se dá conta de que tudo isso não passa de coisa de sua própria cabeça. É quando a vida lhe dá de presente mais um neto geneticamente perfeito, parecendo um pirulito cabeludo. E a mãe acha lindo. Tudo igual.


quinta-feira, 11 de julho de 2019

Há sempre um nome de mulher


Ele ainda tentou segurar na garganta o choro enquanto ouvia “Marina”, de Dorival Caymmi, interpretada por Nana Caymmi, que, a seu pedido, eu havia colocado no toca-discos:
— Dói muito? — perguntei a Tio Enoch, achando que o inchaço e a vermelhidão do tornozelo fosse mais uma crise de gota.
— Não é isso. Você me fez lembrar de meu irmão... seu pai, quando era criança. Todo dia, depois do almoço, eu deitava aqui na minha rede para cochilar um pouco, escutando baixinho um disco que ele escolhia... — respondeu, a enxugar os olhos.
Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí.

Era chamado de Padrinho Enoch pelos 10 irmãos mais novos (Baíca, Jerônimo, Marcelino, Tereza, Agostinho, Antonia, Cazuzinha, Leó, Cristina e Vitória). Para os “Torres da Rocha”, alguém acima de irmão e pouco abaixo de pai que fazia jus à reverência porque, desde cedo, corajosamente deixou o sítio “Maravilha” onde nasceu (zona rural da pequena Colinas) para morar numa cidade maior, o que seria fundamental para o desenvolvimento de todos os seus “afilhados”. 

Meu pai, Agostinho, era um deles.  Por conta de tanta admiração e respeito, em março de 1958 não mediu esforços para fazer uma traumática viagem da Paraíba ao Maranhão, levando-me para ser batizado pelo irmão-ídolo.

Passados mais de 60 anos, minha mãe prefere não lembrar da experiência de voar com uma criança com apenas 20 dias de nascida, vomitando de meia em meia hora, com dores de ouvido, reflexos das mudanças bruscas de pressão e da turbulência de um bimotor DC-3 onde passageiros bebiam e fumavam em quase todas as poltronas da aeronave.  

Mas voltemos à música que, 30 anos depois de meu batizado, emocionava Padrinho Enoch em sua rede de algodão. “Marina” é uma das faixas do álbum fonográfico duplo “Há sempre um nome de mulher” que eu lhe trouxe de presente em janeiro de 1988, quando viajei de Maceió até Caxias para rever tios e primos. 


No ano anterior, em ação de marketing institucional muito bem concebida, o Banco do Brasil patrocinara a produção do álbum duplo temático com canções intituladas com nomes de mulheres míticas: Amélia, Ana Maria, Aurora, Carolina, Chica da Silva, Conceição, Dora, Doralice, Helena, Isaura, Lígia, Luciana, Luiza, Maria Betânia, Maria Candelária, Madalena, Rita, Rosa Morena, Yolanda, entre outras.

Foram gravadas interpretações memoráveis de um timaço da MPB: Ângela Maria, Beth Carvalho, Cauby Peixoto, Dona Ivone Lara, Elba Ramalho, Emilinha Borba, Emilio Santiago, Fágner, João Nogueira, Maria Bethânia, Marlene, Martinho da Vila, Miúcha, Nana Caymmi, Nélson Gonçalves, Paulinho da Viola, Pery Ribeiro, Tito Madi, Tom Jobim e outros.

Homenagear as mulheres forjadas no coração de compositores e poetas em si já era algo inédito e ganhou mais densidade quando passou a integrar uma campanha meritória: toda a arrecadação com a venda do álbum seria destinada à criação de um banco de coleta de leite materno, através da Legião Brasileira de Assistência, para distribuição entre crianças carentes privadas desse alimento básico numa etapa crítica da vida, começo de tudo.

Para mim, na época recém-graduado em economia e simples curioso em marketing, grandes organizações como o BB deveriam sempre priorizar campanhas institucionais daquele tipo. São essas que consolidam na mente das pessoas uma marca, e não a oferta comum de produtos e serviços via TV, revistas e jornais, típica de fabricantes de alimentos industrializados, automóveis, bebidas, cosméticos, roupas e outros bens de consumo. 

Amante dos discos, dos livros e, em especial, do futebol, Padrinho Enoch acompanhou mesmo de longe, pelo rádio, o Vasco tornar-se gigante com um time extraordinário, considerado dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória. Em 1948, inclusive, foi o primeiro clube brasileiro a conquistar um torneio internacional fora do país: o Campeonato Sul-Americano, que deu origem à atual Copa Libertadores.

Bateu uma tristeza danada quando recebi em Maceió a notícia de que Padrinho Enoch havia sofrido um infarto fulminante, aos 66 anos, sentado na mesa em que trabalhava como contador. No começo de março de 1988, certamente ainda lhe doía a perda de Mãe Sussú, minha avó, que também partira havia menos de um mês.

Depois de sua morte, não mais voltei à Caxias. O álbum duplo “Há sempre um nome de mulher” que lhe dei foi o jeito inconsciente e antecipado de retribuir em vida o que dele herdaria no seu inventário de bens inestimáveis: o amor pela leitura, pela música e pelo Vasco da Gama — a cruz (de malta) que carrego no peito desde criança.

domingo, 7 de julho de 2019

Pode ser a gota d’água


Ontem, o genial João Gilberto, músico e cantor cultuado no mundo inteiro como um dos pais da bossa nova, descansou do inferno em que estava vivendo, marcado por problemas financeiros, desavenças familiares e disputas judiciais. A saúde agravou-se desde a perda da amiga e ex-mulher Miúcha, também cantora, que partiu no final do ano passado. Com "Chega de Saudade", disco do final dos anos 50, João Gilberto inspirou e abriu espaço para uma nova geração de talentos como seu ex-cunhado, irmão de Miúcha. 

Daquela nova geração de talentos, em 1968 apareceu lá em casa um compacto simples  — para quem não conhece, pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de uma lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim. Disseram-me que se tratava de alguém com mais futuro do que todos aqueles cabeludos da jovem guarda: chamava-se Chico Buarque de Holanda. 


Tinha lá minhas dúvidas. No final dos anos 60, começava a escutar na Rádio Espinharas de Patos(PB) canções como “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”, de Roberto Carlos. Mas ouvi o bom conselho que me deram de graça e nunca mais deixei de prestar atenção naquilo que fazia Chico. Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo, que mesclava questões sociais, românticas e políticas.

Pouco mais de meio século depois, embora seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, Chico vem sendo apedrejado nas redes sociais, nas ruas, nos bares, pela mesma intolerância e ingratidão de que falava em “Geni e o Zepelim”.

Isso me faz lembrar a avalanche de pedras também  lançadas sobre Pelé, no início dos anos 70, porque não usava de seu prestígio universal para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi ainda apedrejado porque garantiu que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Nesse ponto, aliás, desde então quem é derrotado em eleições quase sempre dá razão a Pelé.

Quem apedrejava Pelé não se dava conta de que agredia um herói na acepção do termo, ou seja, alguém que mudava o rumo da história de uma nação e que será para sempre lembrado por seus feitos na arte em que reinava soberano.

Anos depois, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao ser chamado a opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de cortar o atacante Renato Gaúcho — o jogador, junto com o lateral Leandro, caiu na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa México 1986 —, foi pedagógico: “Eu não preciso dele pra casar com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.

Naquilo que faz, Chico é nosso Pelé e, como diria Saldanha, também não preciso dele pra casar com minha filha. Nem tenho o menor interesse em suas preferências religiosas, políticas ou sexuais. Meus netos, sim, precisam ouvir dele estórias como a daquele país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, onde na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.

Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa já com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.

Essa criança cresceu. Homem feito, desiludido com o futuro da nação do faz-de-conta, um dia bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música. E acabou no céu como se fosse um bêbado a flutuar no ar feito um pássaro. A seu pai restaria a saudade, que doía mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto do filho que já morreu.

Aos 75 anos, Chico — como eu ou você — tem o direito de fazer o que bem quiser da vida, inclusive o de vestir a camisa que lhe parecer mais confortável. Sabe mais que ninguém que os dois grupos que hoje dividem a cena política na nação do faz-de-conta acreditam estar sempre certos. Ou se está com eles ou contra eles. Cultivam a intolerância como consequência natural de suas convicções. Não têm adversários, mas inimigos.

Em tempos de escassez cultural, quando tantas músicas e livros descartáveis são despejadas pela mídia na cabeça das novas gerações, assistimos a um espetáculo dantesco de “olho por olho e dente por dente” que daqui a pouco pode transformar a nação do faz-de-conta num paraíso tropical de cegos e banguelas. Mas a obra de Chico Buarque de Holanda precisa ser preservada. Está acima de todos nós, inclusive dele mesmo. É patrimônio cultural da humanidade.

Toda essa confusão pode acabar sendo a gota d’água. A qualquer momento, Chico pode pedir para deixarem em paz seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! —, apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e desaparecer. E aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer.


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Zelito


Dar uma gargalhada, daquelas de duas ou três repetições, com dor na barriga e risco de incontinência urinária, a gente só consegue quatro ou cinco vezes por ano e olhe lá. Mas há quem consiga isso quase todo dia.

Guardo na memória uma galeria de tipos inesquecíveis, dignos do realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez (1927 - 2014). Um deles é Zelito, menos conhecido como José da Silva, ex-funcionário do Banco do Brasil com quem convivi na agência Maceió-Centro, em meados dos anos 70, que possui cadeira cativa nesse seleto time.

O avô de Zelito, no primeiro terço do século passado, seguro de que fazia um bem inestimável ao neto, chamou o menino no quintal, pigarreou, cuspiu dentro de sua boca e vaticinou:

— Meu neto Zelito, pode engolir o cuspe que você vai ficar curado de todas as doenças do mundo, ouviu?!
E a criança sobreviveu. Às gargalhadas, contava isso aos colegas, tempos depois, na maior naturalidade.


Técnico agrícola dotado de inteligência bem acima da média, logo após ingressar no banco virou fiscal de operações rurais em Palmital, Oeste do Paraná, pequena cidade em que trabalhou por alguns anos. Retornou para o Nordeste transferido para Alagoas, uma das regiões mais desiguais do planeta, onde o baronato do açúcar ainda dava as cartas como donatários de uma das mais paradisíacas capitanias hereditárias. 

Zelito era brilhante quando discorria sobre o absurdo de brigas por terras num país com dimensões continentais. Para ele, o solo só servia para sustentação das plantas, que a rigor nem disso precisavam para crescerem e frutificarem. 


Deve ter ouvido falar muito de disputas que acabaram em mortes no interior de Sergipe onde nasceu. Para ele, fartura na mesa e paz no campo tinham nome: hidroponia, técnica de cultivar plantas sem solo, onde as raízes receberiam uma solução nutritiva balanceada com todos os nutrientes essenciais. Um dos principais benefícios seria o incremento na densidade de plantas por metro quadrado de cultivo. 


Era genial também quando defendia o plantio de lavouras consorciadas (gramínea e leguminosa) a pretexto de fixar o nitrogênio atmosférico, quando, na verdade, queria convencer usineiro e grande fornecedor de cana-de-açúcar de que era bom para todos deixar o bóia-fria plantar um pouco de feijão de corda no meio dos canaviais para consumo de alguma proteína vegetal por sua família.



Ria de tudo e de todo o mundo, escancaradamente, apesar de lhe faltarem os incisivos centrais superiores. Hoje, está bem mais elegante, com o "teclado" sem falhas, devidamente corrigido. 

Na época em que bancário endividado era pleonasmo, Zelito vivia seus apertos e orientava sua mulher a, todo mês, fazer uma feira "de mercearia" robusta numa cooperativa de consumo que havia em Maceió, que só recebia no mês seguinte, por meio de consignação em folha de pagamento. 


Certo dia chegou ao trabalho carrancudo, aparentemente tenso e, no meio do salão do setor de operações, onde haviam pelo menos 30 colegas, falou alto e em bom tom pra quem quisesse ouvir:

— Estou num dilema danado: não sei se deixe a mulher ou a cooperativa — e caiu na maior gargalhada.

Muito espirituoso, vira-e-mexe Zelito também criava trocadilhos, embora cada um pior que o outro. Do tipo: "nesse país, cana dá?" Ou então: Seu Grava tá?”, “o gato mia, já o methiolate.” E perturbava os coitados dos menores estagiários com um dos mais infames: “você é o tal que só usa lifeboy ou você é o boy que só usa luftal? É de proveta ou é natural.”


Havia nascido na Inglaterra Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta”. Estima-se que, desde que a menininha inglesa veio ao mundo, em 1978, cerca de dez milhões de pessoas tenham nascido até agora por meio de fertilização “in vitro”. Só Zelito mesmo seria capaz de associar o cargo novo criado pelo banco (Menor Estagiário) com a técnica médica revolucionária descoberta há mais de meio século.


Seus relatórios de fiscalização eram pérolas de conhecimento de causa mas sem qualquer lapidação estética. A ponto de, certa vez, prestes a concluir um trabalho, inserir entre parênteses no rodapé: “a tinta da fita acabou, mas, depois da troca este laudo segue, no verso”. E a vida seguiu na batida de sua "Remington", entre gargalhadas e trocadilhos.

Conversei com ele outro dia e fiquei feliz ao constatar que continua muito bem-humorado, lúcido, transpirando entusiasmo por todos os poros. Aos 90 anos, garante que vai quebrar o recorde de seu avô que lhe “curou” de todos os males e viveu até os 106 anos porque “doença ele não tinha, mas Frankstein”. E com mais esse trocadilho de doer, caiu numa sonora e contagiante gargalhada.


Fica no Mediterrâneo o paraíso dos centenários. A Sardenha, região autônoma da Itália formada por mais de 350 municípios, é a campeã mundial de longevidade, com um percentual de habitantes que passaram dos 100 anos três vezes maior do que no resto do mundo. Genética e hábitos saudáveis já foram apontados como principais componentes desse privilégio. Recentemente, pesquisadores encontraram mais uma explicação: por trás de tantos anos de vida, estão boas gargalhadas todo santo dia.

A origem dos "Silvas" é controversa. Há uma corrente que diz que o sobrenome surgiu no Império Romano para denominar habitantes de matas ou florestas  silva, em latim, é "selva".


Nunca se sabe, mas é possível que nos idos de 1500, na frota de Pedro Álvares Cabral que aportou na Ilha de Vera Cruz, tenha migrado da Sardenha a cepa que deu origem ao já lendário Zelito. 


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Sem confusão, qual é a graça?


O tal do VAR (do inglês: Video Assistant Referee) anda deixando o futebol cada vez mais sem graça, insosso, morno. VAR, para quem não sabe, é um assessor de luxo que analisa comendo pipocas as decisões tomadas pelo árbitro principal de uma partida de futebol com o uso de imagens de vídeo. Ainda não faz parte das regras do jogo, mas, daqui a pouco a sua incorporação deverá ser julgada pela International Football Association Board.

Andei vendo alguns jogos do Brasileirão e da Copa América e penso que a fogueira que sempre aqueceu o futebol tende a virar cinzas com o anticlímax proporcionado pelo VAR. Em tese, a tecnologia aplicada deveria ser em benefício do próprio esporte, como é no vôlei, automobilismo, natação, tênis por exemplo. Não é. Emoção e razão são água e azeite: não se misturam de jeito nenhum, pelo menos em algo que, antes de tudo, é adrenalina pura.

Mesmo o vascaíno, acostumado com arbitragens esquisitas — tanto quando seu time enfrenta Flamengo ou Corinthians, como ao ser beneficiado em pênaltis marotos ao atuar em São Januário —, nota que o futebol anda perdendo a graça quando um joelho ou um pé à frente determina impedimento e invalida um gol, frustrando não só a torcida que acabara de urrar pela desgraça do adversário, como também o atleta em seu esforço para bem executar sua arte.

É duro ver o árbitro, por cinco ou seis minutos — que nunca são totalmente acrescentados antes do final do jogo — depois do lance que validara a olho nu, voltar atrás e recomeçar a partida como se nada tivesse acontecido, desgastando a todos, inclusive os torcedores no estádio ou pela TV, que não sabem se vibram ou sofrem com o mesmo lance.

Determinados eventos — se é que vocês me entendem — não resistem a tanto tempo de paralisação nem quando os envolvidos ainda estão cheios de hormônios. O sangue esfria. Pior que os atletas e os treinadores já se deram conta que, em qualquer lance duvidoso, podem cobrar o uso do VAR. Pressionam dentro e fora do campo e o árbitro acaba mais perdido do que surdo em bingo de cartela cara.

E quem garante que um árbitro principal com interesses inconfessáveis vai aceitar o alerta da mesa do VAR se “seu” time correr o risco de ser prejudicado numa análise mais detalhada de um lance? É só fingir que nada escutou e sacolejar as mãos no típico “segue o jogo” que fica tudo por isso mesmo. Ou, se quiser manter o resultado parcial de uma partida, basta paralisá-la com várias simulações de auscultas ao VAR.

Basta conferir se a bola entrou ou não, em caso de gol. No mais, é evidente que se insistirem nisso, o nível de sofisticação do sistema tecnológico irá evoluir tanto que daqui a pouco um beiço de pulga ou um cabelo de sapo poderá deflagrar a terceira e definitiva guerra mundial a partir de um estádio de futebol. Ficará mais perigoso do que barbeiro com soluço.

É preferível tolerar aquela discussão interminável das noites de domingo e segunda-feira, onde analistas passam horas discutindo sobre as possíveis alternativas para um passado cuja versão final o árbitro já bateu o martelo no calor da disputa e no sopro do apito.


Do jeito que as coisas andam, acabarão nos roubando até o direito de sentir-se injustiçado ou de terceirizar a culpa pelos nossos fracassos. Aí o futebol só terá graça naqueles últimos campinhos de terra batida onde a emoção goleia a razão, os times são escolhidos no “par-ou-ímpar”, não precisa de árbitro, bola “prensada” e da defesa, falta só se houver escoriações generalizadas ou se falar na mãe e ganha quem fizer o último gol antes do anoitecer.