Um dos mistérios desta vida é o eterno desencontro entre expectativa e realidade. Sei que as duas são irmãs gêmeas, crias da mesma costela, mas, pelo menos no meu caso, nunca entram em acordo. Quase tudo que vejo pela primeira vez é maior ou menor do que imagino.
De tanto ouvir as transmissões esportivas da Rádio Globo do Rio de Janeiro nos anos 70, eu não sonhava conhecer o Cristo Redentor do topo do Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, a floresta da Tijuca ou as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Queria mesmo assistir a uma partida de futebol no Maracanã, curtir o território das paixões de um Vasco x Flamengo.
Demorou. Só bem mais tarde, na primeira semana de agosto de 1987, a empresa em que trabalhava me designou para a “espinhosa” missão de participar de um curso durante cinco dias, no Rio, com direito a passagem aérea e estadia no velho Ambassador, na Lapa.
Para evitar o aborto de alguns projetos paralelos, em minutos a minha bagagem estava pronta, inclusive com o radinho Philips, parceiro de tantas jornadas esportivas e musicais. E voei nas asas da Varig logo no sábado, antevéspera do início do curso.
No domingo, tornei-me amigo de infância de um taxista que, logo após o almoço, foi comigo pela primeira e única vez ao templo sacrossanto do futebol mundial, onde o Vasco enfrentaria o Flamengo, tentando conquistar seu 16º título estadual.
Pouco antes do início do jogo, o ar enfumado se encheu de cheiros, cores e sons de vários tons, misturando garoa fina, reconhecimento e veneração, quando os alto-falantes anunciaram as presenças de Roberto Dinamite e Zico.
Os dois fingiam que nada daquilo era com eles. Caciques de duas tribos apaixonadas, nunca se viu nenhum desses guerreiros se dirigir à nação adversária com provocações. Ficou fácil compreender por que, apesar do declínio fisico a partir dos 33 anos, relutavam em aceitar que o tempo não espera ninguém.
Não duvido nada que o barulho tenha arrepiado os braços da estátua de Bellini nos arredores do estádio, onde, como dizia o anjo vascaíno Aldir Blanc, camelôs vendiam anel, cordão e perfume barato; baianas faziam pastel e um bom churrasco de gato.
Lá dentro, éramos 115 mil almas em êxtase diante de figuras míticas como Dinamite, Geovani, Mazinho, Tita e o então menino Romário, que enfrentariam gigantes como Zico, Leandro, Aldair, Andrade e Bebeto.
Dois lances traduziram bem o enredo do jogo: a bola alçada sobre a grande área rubro-negra em que Dinamite a amorteceu no peito e rolou para o arremate indefensável de Tita, e o voleio de Bebeto da marca do pênalti, no fim do jogo, para a monstruosa intervenção do goleiro Acácio.
A propósito, o fato de o gol do título ter sido marcado pelo cruzmaltino Tita contra seu ex-clube, que mereceu vibrante narração do locutor José Carlos Araújo "Garotinho" (reveja aqui), deu à conquista um sabor especial de bacalhau à lagareiro com vinho tinto de boa safra.
O esplendor da catedral do futebol, a simbiose da assistência (arquibancada e geral) com os atores em cena, o "uhh!" a cada lance mais agudo no gramado, tudo acabou bem maior do que minha melhor expectativa.
Quatorze anos depois, em 2001, quando estive no Velho Mundo pela primeira vez, foi frustrante dar de cara com o mais badalado símbolo do Império Romano: o Coliseu, no centro da capital italiana.
Tinha comigo que encontraria algo parecido com o Maracanã. Havia lido que fora construído num local que havia sido devastado pelo grande incêndio de Roma durante o governo de Nero.
Sabia que o espetáculo mais comum era a luta entre gladiadores. Ou entre guerreiros e animais selvagens (leões, tigres e até elefantes), trazidos da África para matar ou morrer.
Que a partir do século VI, já na Idade Média, o estádio mudou o objeto original e passou a servir de habitação, oficina, forte, sede de ordens religiosas e templo cristão.
Na virada deste século, mesmo em ruínas, o Coliseu ainda era reconhecido como uma das sete maravilhas do mundo moderno.
Bem menor, porém, do que o Maracanã que conheci naquela tarde fria de domingo e que trago comigo há mais de três décadas. Eu vi! ninguém me contou.
Sei que agora nem o Maracanã nem o Vasco são os mesmos. Nem eu. Mas não me afobo. O fim não é para já. O Rio, como diz outro poeta carioca de boa cepa feito Aldir Blanc, ainda vai virar uma cidade submersa e os escafandristas virão explorar suas ruínas.
Quem sabe escutar o eco de cânticos e gritos de amor e dor, vestígios de glórias e tragédias de uma imensa torcida bem feliz que hoje está lá estendida no chão. Com um silêncio servindo de amém.