Meia hora antes da virada do ano-novo, no trajeto do Aeroporto do Galeão à Zona Sul do Rio de Janeiro, um motorista de aplicativos transporta um velhote simpático, franzino, calvo, que conta uma história curiosa.
Diz que, durante o voo, uma mulher escolhe uma forma inusitada de revelar ao marido que está grávida. O anúncio é feito pelo piloto do avião.
“Gostaria de parabenizar o passageiro da poltrona... pela informação sobre a gravidez de sua esposa, inclusive quanto à possibilidade de gêmeos”, disse o piloto.
A notícia rende aplausos dos demais passageiros e espanto do futuro pai, que recebe do comissário de bordo cópia do laudo do exame feito por ela. Os bebês, segundo o marido, surgem dois meses após a tristeza de um aborto espontâneo.
O velhote, sentado na poltrona ao lado do casal, puxa conversa invocando um provérbio popular: “Benditos aqueles que conseguem dar aos seus filhos asas e raízes”. Pretexto para propor a eles que ajudem seus rebentos a terem a cabeça nas nuvens, mas os pés bem plantados no chão.
Explora em seguida um pouco de Oscar Wilde, dramaturgo, escritor e poeta irlandês, para quem: “No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam...” Para o velhote, funciona assim desde que os seres humanos resolveram descer das árvores.
Como mulher e marido a tudo escutam atentos, anima-se e explora uma possível tese freudiana: “Eduque-os como quiser; de qualquer maneira há de educá-los mal”. A seguir, sustenta uma máxima balzaquiana: “A gratidão é uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário”.
Nisso, uma voz no ambiente alerta: “Passageiros viajando com crianças ou alguém que necessite de ajuda, lembramos que deverão colocar suas máscaras primeiro para em seguida auxiliá-los. Esta aeronave possui seis saídas de emergência, observem a indicação dos comissários e identifiquem a saída mais próxima de seu assento...”
– Né por nada não, meu senhor, mas isso é comigo? – preocupa-se a futura mamãe.
– Calma, filha! É cedo. As máscaras só caem mais tarde...
O velhote lembra então de seu primo, um livre-pensador desaparecido havia mais de uma década, quando o jovem casal (ambos na casa dos 24 anos) ainda experimentava os primeiros amassos pré-adolescentes.
Imagem: Dedé Dwight |
Para seu primo, “Pais e filhos não foram feitos para serem amigos; foram feitos para serem pais e filhos”. Seria bom, portanto, que o casal soubesse disso desde já, quando a euforia de conceber um ser humano alimenta expectativas que quase sempre deságuam em frustrações.
Mas o velhote não quer ser chato – “Indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele” –, azedar a conversa e ter que deixar o casal em paz, curtindo o seu momento de euforia e esperança.
Evita, portanto, lembrar o que seu primo vivia repetindo: “Metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos”. Ou o conselho que oferecera ao próprio primogênito: “Fique certo de uma coisa, meu filho... Se você mantiver seus princípios com firmeza, um dia lhe oferecerão excelentes oportunidades de abdicar deles”.
Prefere reforçar que pai e mãe não deixa jamais de amar seus filhos quando crescem. Apenas brotam e enraízam decepções mútuas que antes não existiam e que causam estragos de cicatrização improvável.
E pondera: os próprios filhos discordavam bastante dele, mas até gostava de que fossem desobedientes. Afinal, todo casal precisa saber desde a gravidez que serão os bichinhos de plástico em que as suas crias afiarão as presas antes das primeiras mordidas.
Nisso, de novo, a voz no ambiente silencia a todos: “Dentro de instantes pousaremos no aeroporto do Galeão. Mantenham os encostos das poltronas na posição vertical, suas mesas fechadas e travadas. Observem os avisos luminosos de apertar cintos...”
– Onde o seu primo mora? Quero conhecê-lo – diz o futuro pai, esquecido de que o “primo” falecera havia mais de 10 anos.
– Sei lá... Anda meio sumido. Dizem que continua por aí, espirituoso, irônico, provocador... Meteu-se um dia a ser desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista, até se aposentar. Mas quase ninguém da idade de vocês sabe dele...
O velhote deixa o aeroporto apenas com bagagem de mão. Chegando em Ipanema, despede-se do motorista perplexo com o caso. "Ainda bem que meus filhos não me ouviram!”, arremata sorrindo.
E desaparece numa esquina em meio à multidão que celebra a chegada do ano-novo.
Eu tenho a graça de ter 4 filhos. O mais velho tem 38 e o mais novo 8 e adorei essa “viagem”, pois me vi nos diversos momentos e reflexões de todos, até na esperança do novo ano. Que delícia. Bom dia ! Dedé Dwight
ResponderExcluirConforto para os pais de hoje: Esses filhos também serão julgados!!
ResponderExcluirParabéns por mais um texto.
ResponderExcluirCada dia me surpreendo mais com as belas narrativas que trazem assuntos que nos fazem olhar para nosso dia a dia, eu tenho 03 filhas lindas🙏🏻 e sou muito orgulhosa delas, mas a gente quando resolve ser mãe/ pai, não tem ideia do tamanho do amor, da alegria e da responsabilidade que está trazendo ao mundo, e nossas intenções são sempre buscando o melhor para os filhos, mas será? Refletindo sobre essa frase, já não sei.
ResponderExcluir“No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam...”
Tenho 3 filhos. Como mulher trabalhadora, com jornada de 8 horas diárias, não foi nada fácil formá-los para a vida. Cuidar e educar filhos é tarefa árdua sem curso preparatório. O único manual que temos são as referências que recebemos dos nossos pais e, nem sempre são aplicáveis. É um experimento às cegas, o que funciona com um filho nem sempre funcionará com o outro. A única coisa que temos certeza que dará bom resultado, sempre, é o amor. Enquanto crianças eu era apenas a mãe deles. Hoje, adultos, sou uma amiga especial que eles sabem que poderão contar sempre em todos os momentos..a base da nossa relação foi o amor construído com muito respeito. Nunca fiz projeções sobre o futuro deles, nunca esperei reconhecimento, nunca criei expectativas, apenas o desejo de vê-los felizes.
ResponderExcluirMaravilhoso texto para uma reflexão desse significado único da relação entre pais e filhos. Como pai de duas filhas maravilhosas, a cada dia nesse papel o desafio é de fato continuar fortalecendo suas raizes e incentivando realizarem seus sonhos. Mas o principal exercício diário é não esperar nada em troca porque qualquer retorno é sempre para o futuro, para a próxima geração que virá.
ResponderExcluirDeliciosa forma de contar uma história real, com saborosas pitadas de ficção.
ResponderExcluirParece-me ser esse o principal papel da crônica (no final, ficamos em dúvida: onde está a verdade, onde está a criação?).
Para mim (aqui me arrisco!), esse “velhote” não ficaria chateado pela evocação de seu pensamento, mas, definitivamente, não seria tão loquaz com dois desconhecidos (talvez nem gostasse dessa súbita notoriedade de seus vizinhos de assento). Ou não!
Quem sabe o velhote tenha sido apenas o espírito de Millôr Fernandes que anda “baixando” por aqui ultimamente…
ExcluirEsse velhote sabia das coisas. Saber demais só traz aborrecimento. Disso ele também sabia, ao deixar o casal pensativo entre sonhos azuis e rosas. Maravilhosa crônica. Minha mãe sempre dizia:"...filho criado, trabalho dobrado ".
ResponderExcluirHayton, suas páginas sempre resultam em reflexão. Lança-nos de um lado para outra; chacoalha nossa mente; faz-nos responder, imaginaria mente, a cada adágio que desfila á nossa frente, para nosso julgamento. E imaginamos: será verdade mesmo? Ficam os ensinamentos para a prática da vida real. Muito bom.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
Parabéns texto maravilhoso
ResponderExcluirÓtimo texto! Muitas verdades em tão pouco espaço. Parabéns Hayton pela maneira alegre no falar de coisas sérias
ResponderExcluirSeus textos parecem abranger de tal forma a questão, que para encontrarmos uma deixa na qual possamos acrescentar algo de novo não há espaço. Só temos que nos sentir gratos pela completude do fluir das palavras e, sobrerudo, do que nos enriquece os conteúdos da vida cotidiana
ResponderExcluirCriar filhos é fácil: é só dar muito amor sem excesso de proteção; ser firme e ser flexível; orientar e não induzir; esclarecer e duvidar; acolher e dar uns trancos; pegar no colo e chacoalhar; dar liberdade e rígidos e claros.
ResponderExcluirConvivi com 4: até hoje minha única dificuldade é saber a hora de fazer uma coisa ou outra!
Sergio Riede
ExcluirGenial, Riede! Seu comentário é uma crônica à parte, bem mais enxuta, direta e objetiva. Parece fácil, como criar filhos. É… Só parece.
ExcluirUm filho é uma semente/Que nasce em solo fecundo/Sendo aos pais obediente/Encara melhor o mundo. Parabéns pelo texto cheio de mensagens válidas.
ResponderExcluirDorme agora
ResponderExcluirÉ só o vento lá fora
Quero colo, vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três
Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito
É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar pra pensar
Na verdade não há
Música de Legião Urbana
Ainda estou na esperança (os filhos são pequenos!) de acertar bem mais que errar e contar com o perdão dos meus filhos, que saberão que errei tentando muito acertar. rsrsrsrsrs
ResponderExcluirVocê consegue dissertar sobre temas nevrálgicos com uma leveza tal, que nos remete a uma profunda reflexão.
ResponderExcluirPai de três filhos - duas mulheres e um homem -, o único mérito que me atribuo é ter sempre respeitado a individualidade deles, fato que é por eles reconhecido.
Hoje eles são adultos - já me deram três netos - e a relação é de profundo amor, o que contraria a tese de Oscar Wilde. Somos também parceiros, viajamos juntos muitas vezes, finais de semana sempre estamos juntos, e vai por aí.
No que concerne ao respeito à individualidade, a mãe, conquanto sempre alertada por mim, apesar de ter também com eles uma profunda relação de amor, nunca conseguiu muito atentar para a coisa. Mas nós, eles e eu, entendemos, afinal, como dizia um amigo que já se foi, "pai é pai, mãe é mãe".
Tenho dito...
Benditos sejam aqueles que conseguem dar aos seus filhos asas e raízes. Uma ótima crônica é sempre uma narrativa escrita a partir de um fato do cotidiano, acrescida de uma pitada de criatividade, uma mistura de ficção e realidade, um pouco de humor e... muita genialidade do autor para induzir os leitores a uma profunda e gostosa reflexão. O presente texto apresenta esses ingredientes de forma muito clara. Parabéns! Até a próxima quarta-feira!
ResponderExcluirÓtima crônica. Confesso que com os meus continuo mais aprendendo do que ensinando.
ResponderExcluirAbração.
Gradim.
Filhos vem para que aprendamos sentir as dificuldades dos outros. Muitos reclamam, outros os criam. Cobrar na hora certa, ser muito exigente quando necessário for, enérgico firme, quem foi entente. Tenho 2, nossa relação é muito forte. Valeu a pena tê-los.
ResponderExcluirGostei muito dessa crônica. Ótimo parágrafo
ResponderExcluirfinal. Parabéns Hayton !!!
Texto bastante reflexivo nas relações pais & filhos. O HD de 100 teras do autor não se esgota nunca. Bom para os seus leitores. Parabéns pelos artigos.
ResponderExcluirHayton, criar filhos não é fácil não, mas é uma delícia, é o sentido da vida. Abração. Zé Alípio
ResponderExcluirDemoramos muito a ter filho. Quando veio, algumas amigas já eram avós. Passei anos observando amigos criarem os seus para tentar evitar o que achávamos errado e copiar - e aperfeiçoar - o que era certo. Quanta ingenuidade! A receita não se repete nem em casa quanto mais em famílias diferentes. Cada qual com seu cada qual. Mas continua sendo uma delícia ser pais.
ResponderExcluirMarina.
ResponderExcluirMais uma história interessante do cotidiano, amigo HAYTON, reproduzida com a sua habilidade habitual! Gostei!
ResponderExcluirO velhote, teoricamente, tinha bastante experiência com filhos. Parabéns pela crônica, Hayton!
ResponderExcluirO velhote, teoricamente, tinha bastante experiência com filhos. Parabéns pela crônica, Hayton. Jez Agra
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