Deus nos livre
Nos desencontros de opinião numa longa convivência, a pergunta que não cala, com sua inescapável conjunção alternativa: “você quer ser feliz ou ter razão?”
Tenho um amigo que diz não entender a sem-cerimônia com que uma pessoa, às vezes acompanhada, resolve passar alguns dias na casa de outra, compartilhando a hora de dormir, de acordar, de comer e até de certas intimidades como falar sozinho, coçar os ouvidos ou fazer palavras cruzadas.
Diz ele que não confia em quem usa o banheiro alheio, mesmo no aperto. Jura que nunca fez coisas mais substanciosas em locais públicos como aeroporto, estação rodoviária, posto de combustíveis e restaurante. E vive repetindo: “viajar é bom, mas voltar pra casa e sentar no próprio trono não tem preço!”
Imagem: Dedé Dwight |
Para algumas pessoas, a vida é leve, descomplicada. Para outras, como o meu amigo, tudo é problema, em maior ou menor escala. Elas são capazes de ir ao trabalho mesmo corizando, com febre, nunca dão o braço a torcer. Sabem que a torção do membro não passa de um surrado bordão.
Qual a consequência de avisar que não vai ao trabalho porque não quer dividir a virose com colegas? Nenhuma. Mas são exigentes consigo mesmas e, se assumem que irão entregar uma tarefa naquele dia – ainda que isso não salve ninguém do inferno, nem eleve o dólar ou derrube a Bolsa –, não admitem a “fraqueza”.
Se são inflexíveis consigo, imaginem com as pessoas mais chegadas. Quem lhe telefona às dez da manhã desmarcando o almoço combinado para o meio-dia corre o risco de perder a amizade. Almoço, entenda-se, apenas pretexto para o reencontro de gente que se “fala”, via whatsapp, a qualquer momento. “Isso não se faz nem entre nora e sogra”, dizem.
Essa gente cria expectativas que não aguenta ver frustradas. Se programa alguns dias de descanso numa praia, na volta vai reclamar de como ultimamente tem sido difícil viajar, vai criticar o aeroporto apinhado de emergentes ("um carnaval danado!"), falar da bagagem que custou a aparecer na esteira, do trajeto lento até o destino. Não lembra dos momentos paradisíacos que experimentou, talvez porque nem tenha percebido nada demais.
Quando inesperadas, até boas notícias contrariam essa gente. O imprevisto, ainda que seja agradável, causa transtorno. Renuncia a qualquer forma de prazer se tiver que lidar com o desconhecido. A vida flui insossa e morna, nem quente nem fria. Não quer se sentir muito bem porque, desconfia, o castigo vem a reboque. Rir alto de alguma situação é prenúncio de tristeza.
Se caminha no calçadão pensando no que tem por fazer durante o dia, a semana ou o mês, caso encontre alguém sem maiores ambições, mascando chiclete, chupando picolé ou bebendo chope numa segunda-feira qualquer, essa gente se sente quase ofendida. Vai logo criticando o quanto aquele “desocupado” é irresponsável. Chega a praguejar: “mais tarde não se queixe e, principalmente, não venha pedir nada aos outros, já que só quer vida leve”.
Vida leve? Sim, daquela pessoa que, se você passa na casa dela na hora do almoço e não tem nada pronto sobre o fogão, diz que em quinze ou vinte minutos dará um jeito. E lhe pergunta se quer pão com ovo, presunto e queijo, ou mesmo um mexidão do tipo “trocando em miúdos” – as sobras de tudo que chamam lar.
Mas “aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer”. Essa gente, como meu amigo, nunca chega de surpresa na casa de ninguém para que jamais cogitem retribuir a visita. Só de pensar na hipótese, bate cólica, enxaqueca ou uma urticária daquelas.
Duvido que você não conheça uma pessoa assim. Eu mesmo, cujas amizades cabem dentro de uma van, conheço mais de uma. Pior que não caíram do céu, como parentes. Foram escolhidas, uma a uma, e não abro mão de nenhuma delas.
Deus nos livre dessa gente! Às vezes, não nego, bem parecidas comigo. Que Deus me proteja de mim mesmo nessas horas.
Tenho uns dois sim. Não olham para o céu de medo de um pedaço cair na cabeça. Se estiver sol irá chover e se estiver chovendo corre o risco do sol aparecer e ter de voltar pra trocar de roupa. Não sai da toca. Mas são gente boa.
ResponderExcluir" ARMARIA" ! Conheço uma meia dúzia e outras tantas que bloqueei do meu whats...Eu chamo de pessoa " negativa" ou " pessimista de plantão". " Vái-te"! Tenho paciência não!! Tô fora!!! Quero mais é ser feliz...leve e solta...
ResponderExcluirA vida é muito difícil quando a gente tem certezas demais. Quanto mais certezas, menos surpresas, e são estas, não aquelas, que vão encher nosso coração de alegria ou não na hora das memórias. Quem não se conhece num amigo assim? Dedé Dwight
ResponderExcluirQue foto linda da moléstia! Anônimo 😂
ResponderExcluirEu além de conhecer alguns com certeza estou na relação de alguém, caso tenha que responder a pergunta se tem amigos com estas características.
ResponderExcluirEu conheço alguns que passam o tempo todo a reclamarem de tudo. Do atraso ao acordar, do que deixou de fazer no dia anterior, do tanto de coisas que tem a fazer hoje, das coisas que deverão ser feitas no futuro. Eu acredito que se trata de um transtorno de ansiedade, uma mente inquieta que não consegue focar no momento presente. Que ao caminhar numa praia reclama da areia, se faz uma trilha reclama das folhas no chão. São pessoas que não se permitem perceber a alegria e a felicidade no simples do momento. Eu imagino que Freud possa explicar. Geralmente foram crianças muito exigidas que não conseguem se libertarem das cobranças e terminam por repetirem seus algozes cobradores. Para mim não há nada mais gostoso do que desfrutar o momento. A vida é isso. Viver a reclamar do passar é depressão e ter medo do futuro é ansiedade. Esse desejo de que tudo seja impecável é um fardo muito pesado par carregar.
ResponderExcluirEu tenho muito medo de gente assim. E tenho mais medo ainda de ser gente assim. Apesar de saber que, em alguns momentos, para os outros eu sou gente assim!
ResponderExcluirOxente! Ou melhor, ô gente! Tô catalogando amigos que não se enquadram nesse tipo de “gente”
Excluirpara agendar visitas “inesperadas” minutos antes do almoço!
Ahhh, como conheço bem uma pessoa assim: eu!!! Apesar dos esforços em buscar o equilíbrio ainda me deparo com as dificuldades em lidar com a vida leve…
ResponderExcluirA verdade é que tds nós somos um pouco de tudo.
ResponderExcluirJá convivi com algumas pessoas que tinham certos comportamentos um tanto parecidos com os relatados, mas nunca aos extremos, nem com tanta recorrência. Em contrapartida, valorizavam demais a amizade, e isso nos fazia compreendê-las e, talvez, sermos compreendidos, quando o comportamento era assim da nossa parte.
ResponderExcluirHahahahaha
ResponderExcluirQue cara chato!
(Mas eu o compreendo)
De fato: fui surpreendido pela segunda vez. No texto dedicado ao Roberto Dinamite pensei que era o da semana. Enganei-me.Agora, surge o da semana. Fico muito feliz com tamanho desempenho. Parabéns! Espero que continue assim por muito tempo, para a sua felicidade e de seus leitores. Bom dia! Grande abraço.
ResponderExcluirQuando voltar aqui em casa, já sabe: Tem ovo pra cozer, frigir, ou em omelete. Já são 3 pratos rapidinhos.A água tá sempre fresquinha, de botija ou refrigerador. E uma prosa boa pra gargalhar a tarde toda. Só não tem rede pra sestar, mas cafezinho de coador de saco de pano, tem. Adorei...
ResponderExcluirMeu amigo Marcos… Só a atualização da prosa já mata a sede e a fome. Se bem que o cafezinho tem o poder de nos aproximar do céu, não é mesmo? Qualquer hora dessas lhe farei uma “surpresa” anunciada!
ExcluirPode ser sem anunciar mesmo. Como se dizia antigamente: "Não repare a bagunça", kkkk
ExcluirGente é gente. E só se conhece mesmo depois de comer junto um quilo de sal. É, de fato, curioso como cultivamos amizades variadas. Parece que cada uma preenche uma lacuna ou necessidade nossa. Bom mesmo que haja nisso grande diversidade. E que a van seja daquelas imensas, Hayton. Para caber muita gente. O que irá significar mais possibilidades para nossa existência. Afinal, só quem não passou por um forte, daqueles que fazem suar frio, piriri de feijoada estragada, pode prescindir do alívio de um vaso desocupado ou, até mesmo, uma moita qualquer.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
É uma pena que existem pessoas que preferem dar destaque apenas àquilo que não lhe agrada e leva o tempo a reclamar. Porque não valorizar o que valeu a pena viver?
ResponderExcluirPerpetua
Ser estilingue é bem mais fácil, mas somos todos vidraça!
ResponderExcluirAbração,
Gradim.
Nem me fale em vidraça nesses tempos bicudos em que vivemos, meu caro Gradim! Ultimamente, só os vidraceiros (e os advogados de plantão) estão rindo à toa em Brasília
ExcluirÉ o mundo….cada um com seus modos, costumes, herança cultural….e que faz do mundo essa maravilhosa diferença entre todos…..o que seria do amarelo se todos gostassem apenas do azul??
ResponderExcluirConheço várias pessoas assim, sem pressa na vida, sem um compromisso com os outros, apenas consigo mesmas e que vivem numa 'nice'.
ResponderExcluirAinda que ocupado com algumas atribulações inesperadas, é difícil deixar de postar comentário aqui, tão oportunos e provocativos são os temas inseridos em suas brilhantes crônicas.
ResponderExcluirNesta sob comentário, você "futuca a onça com vara curta", afinal não há quem não tenha um amigo ou conhecido que extrapola o direito de divergir de tudo.
De minha parte, procuro ser pragmático com a vida, realista, relegando a quase infantilidade a coisa de otimismo e pessimismo.
Pra não dizer "que não falei de flores", lembro uma "sentença" definitiva de um querido amigo, quando uma vez mencionei a ausência de outro, com quem sempre nos encontrávamos nos bares da vida - já não tínhamos sua presença em uns três encontros - ao dizer, é, "a falta é grande, mas o alívio, incomparável!!".
Sei não, viu Hayton, mas às vezes sou assim. Mas também, e principalmente, estou aprendendo a curtir essa dádiva de Deus, que é a nossa vida. Obrigado por nos lembrar dessas nossas falhas. Abração. Zé Alípio
ResponderExcluirSensacional e sábia reflexão. Creio que pessoas altamente críticas e rigorosas para com a vida, pouco tolerantes, pacientes e flexíveis, usam deste tipo de percepção como uma forma de serem percebidas. No fundo, precisam sentirem que estão no controle, mesmo que seja de narrativas ácidas sobre eles mesmos, os outros e à vida. No limite, são órfãos da esperança e otimismo das coisas que são aguçadas para não serem. Para estarem em falta.
ResponderExcluirMuito oportuna sua reflexão. Às vezes esquecemos de olhar pra dentro. Li uma historinha que diz que andamos em fila indiana carregando um alforge. Na frente carregamos nossas qualidades e na parte de trás nossos defeitos. E assim vamos pela estrada da vida.
ResponderExcluirObrigado por mais este belo texto.
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