O bicho pegou
O site americano Vox andou ensinando aos seus leitores como pronunciar uma nova palavra: "den-gay", diz o texto. Sim, finalmente os gringos descobriram como se fala “dengue”. Nós, brasileiros, que temos uma relação estreita com essa palavrinha desde cedo, mal podemos conter nosso entusiasmo com essa descoberta.
Ilustração: Ivan Cabral |
A dengue resolveu que não era mais suficiente ser apenas uma visitante ocasional em terras brasileiras e decidiu quebrar recordes dignos de entrar para o Guinness, com dois milhões de casos confirmados até o mês passado, segundo nosso vigilante Ministério da Saúde. Pelo visto, o Aedes aegypti decidiu fazer hora extra este ano. Desconfio, inclusive, de que já trabalhe com coach e influencers próprios, após ter diversificado sua atuação, da chikungunya à zika.
Se deixou de ser notícia palpitante por aqui, agora é assunto nos jornais estrangeiros. O Washington Post fez questão de destacar que estamos cara a cara com uma crise de saúde pública sem precedentes. E o ousado Aedes (dispenso o sobrenome, pois já estamos bastante íntimos) resolveu inovar, chegando a lugares onde nunca havia marcado presença, mesmo sem passaporte, “visto” de entrada nem cartão de vacinação.
Ilustração: Ivan Cabral |
Com o caos climático instalado pelo aquecimento global jogando no time da epidemia, o mosquito também virou imigrante indesejado em várias partes do mundo – ele não possui documentos, mas tem asas –, incluindo a pitoresca região sul da Europa e até o Sul dos Estados Unidos.
O bicho, que tem um parentesco com nossa velha muriçoca (pernilongo), tornou-se um verdadeiro satanás, bem diferente dos tempos em que um repelente espiral verde em um suporte de alumínio, um mosquiteiro ou um spray de Detefon resolviam a parada.
Aliás, criado para dizimar essa e outras pragas do Egito, aquele spray combatia até “malária, febre amarela e tifo”, segundo uma campanha publicitária veiculada em 1953, em O Cruzeiro, revista semanal que circulou entre nós durante anos.
Com slogans do tipo “terrível contra os insetos”, “defenda sua casa” e compromisso de “proteção prolongada”, Detefon prometia exterminar ratos, baratas, moscas, mosquitos e formigas. Pena que uma substância integrante de sua fórmula foi banida em vários países nos anos 1970, por contaminar alimentos e intoxicar outros seres vivos.
Meu saudoso tio e padrinho Enoch, a quem visitei nos anos 1980, no Maranhão, certo dia, me vendo na sala batendo palmas acima da cabeça, esmagando as primeiras muriçocas ao entardecer, se aproximou olhando pros lados e cochichou:
– Não conte ainda pra ninguém... Acabo de descobrir um método não venenoso pra acabar com os mosquitos. Você sabe o que é tabaco?
– Será o que tô pensando, tio?
– Bem, seu safado, não quero saber o que você tá pensando. Tô falando do pó-de-rapé, torrado...
– Isso mesmo, tio! Né aquele que os velhos cheiram pra espirrar? Eles dizem que é bom pra enxaqueca, sinusite...
E saiu uma "conferência" sobre receitas amazônicas que apresentavam em seu composto, além de fumo, ervas como casca da copaíba, canela-de-velho, cumaru-de-cheiro, pau-pereira, entre outras. Alguns índios até hoje acreditam que, aspirando o pó, absorvem a energia dos espíritos que acompanham o pajé de sua tribo e os espíritos que habitam a floresta.
Atiçada a minha curiosidade, ele prosseguiu:
– Vai precisar de alguns seixos, aquelas pedras arredondadas de beira de rio.
– Só serve desse tipo?
– Se não achar, quebre em pedacinhos um bloco de calçamento de rua e me traga aqui.
Antes do anoitecer, voltei. Tio Enoch então, de forma bastante didática e paciente, me explicou que as pedrinhas deveriam ser distribuídas pelos cômodos da casa, após colocar uma pitada de pó sobre cada uma delas.
Segundo ele, quando as muriçocas vissem a novidade, não resistiriam à tentação e dariam umas cafungadas, buscando uma overdose de espirros. Com o porre, bateriam a cabeça nos seixos e cairiam duras, vítimas de traumatismo craniano, sem chance sequer de tentar fraudar eventual exame antidoping.
Mesmo com cara de besta, caí na gargalhada e quase digo aquilo que vocês estão imaginando, mas faltou coragem. Havia muito carinho e respeito entre nós. Optei então por disseminar a “receita” entre amigos e até hoje ainda encontro quem perca alguns minutos prestando atenção no que relato, oralmente ou por escrito.
Agora que finalmente os gringos descobriram como se pronuncia “dengue”, me pego pensando sobre o que teria acontecido se a “receita” do tio Enoch circulasse no meio científico e o FDA, órgão governamental dos EUA que controla medicamentos e materiais biológicos, resolvesse acatar a estratégia como política oficial de combate à dengue. Talvez uma revolução na saúde pública mundial, digna de um Prêmio Nobel póstumo!
Ironia à parte, por conta do aquecimento global e de seu impacto devastador sobre as comunidades, pobres ou não, o cenário é alarmante. A dengue, ao cruzar fronteiras e bater à porta de novos lares, trazendo na bagagem dores no corpo, hemorragias e morte, reforça a emergência de se rediscutir a pauta ambiental, o abuso do planeta. Se houver tempo.
Forma leve e inteligente de abordar o que é urgente e necessário! Pensemos em nosso Planeta! 🌎
ResponderExcluirUm texto universal sobre um mosquito globalizado. Evolução em dose dupla.
ResponderExcluirAo ler mais um de seus agradáveis “contos” esse me parece o mais científico de todos. Ah! Se a NASA descobre seu tio! Ontem falando com um pioneiro agricultor do Mato Grosso que venceu a malária na década de 1980, e recentemente a dengue, garante que a segunda opção é mais amena, pois existem inúmeros aliviantes que, na época da malária não existiam. Faltou seu tio divulgar sua descoberta no face, insta, tik-tok, Whats up etc. Parabéns pelo texto mestre Hayton.
ResponderExcluirGostei, principalmente da parte em que você comenta que ainda hoje há os que perdem alguns minutos prestando atenção no que relata. Realmente ficamos aqui "assuntando" amiúde como é feita a poção mágica de seu tio, kkkk.
ResponderExcluirAdorei!!!
Antes do detefon em todo fim de tarde era hora de tacar a Bomba Fleet na casa inteira e esperar na calçada até passar o fumacê. Talvez tenha sido o detefon e não a televisão, que acabou com a tradição das cadeiras nas calçadas. Dedé Dwight
ResponderExcluirÉ bem possível, Dedé. E os tradicionais pontos de observação da vida alheia foram sendo gradativamente substituídos por mídias sociais como MySpace, Orkut etc. 😄
ExcluirBela crônica para tempos modernos onde o mosquito da dengue aprendeu a andar nos elevadores com direito aos andares mais altos, a andar nos cruzeiros luxuosos, viajar na classe A nos voos internacionais. Este dengoso ficou muito estiloso.
ResponderExcluirFico imaginando cheiro que fica no ambiente com o uso do rapé, fórmula das boas inventadas por Enoch, aliado ao alho amassado passado nos braços e pernas e muitas vezes ingeridos in natura para melhorar o bafão.
De fato, Oceano, o alho amassado em harmonia com cheiro de tabaco daria um porre fora do comum, catártico! 😅
ExcluirAgora que, acredito, já ultrapassamos o ponto de retorno na pauta ambiental e nos resta estancar o problema, vamos de Detefon e tabaco! Abração. Gradim.
ResponderExcluirUm assessor de marketing talvez não fizesse um trabalho tão eficiente de “humanizar” o Aedes!
ResponderExcluirParabéns pela belíssima crônica!
Quanto à pauta ambiental, enquanto uns e outros continuam no negacionismo (inclusive em relação à tragédia no RS), já tem cientistas afirmando que atingimos o ponto de não retorno. O que significa, em linguagem figurada, que nosso planeta não tem mais cura e que nos restam apenas os cuidados paliativos!
O "se houver tempo" com que fecho o texto é uma forma de evitar ser chamado de profeta do caos. Mas sou pessimista quanto ao mundo que deixaremos pros nossos bisnetos. De novo, se houver tempo...
Excluir…e cairiam duras, vítimas de traumatismo craniano… kkkk adorei Hayton! Imprescindível chamar atenção para essa mazela pública.
ResponderExcluirA situação tende a ficar ainda mais crítica. Mas se a armadilha do teu tio não funcionar, tente colocar duas pitadas de rapé depois de uma Gillette. Ao ficar indeciso, e olhar para uma e outra, acabará cortando o pescoço. Ah, serve para ratos, inclusive.
ResponderExcluirSua origem italiana e a alternativa sugerida de cortar pescoços inclusive de ratos, sei não... Tá me parecendo spoiler das cenas iniciais de um 4º episódio da saga "O poderoso Chefão".
ExcluirSempre um pouco de reminiscências em suas crônicas. Quando estávamos sob o cortinado, nossa barraca para tentar dormir, era uma verdadeira batalha contra os invasores que emitiam um som azucrinante. Na nossa Jacobina, levaram uns mosquitos vasectomizados para acabar com a reprodução dos pernilongos. Esqueceram da distribuição de preservativos para a mosquitada migrante das cidades vizinhas.
ResponderExcluirRealmente, o inocente mosquitinho está virando turista ou explorador do mundo dos humanos...
ResponderExcluirAlém de "científico", o texto nos oferece um puxão de orelha pelo descaso com o ambiente...
Bela crônica!
ResponderExcluirEita mosquitinho miserável!
Mas, com as recomendações do seu tio Enoch, semelhante as de Pedro Malasartes, vamos conseguir vencer o desafio.
Excelente e, como sempre, divertida abordagem de um tema tão grave. Parabéns e obrigada por nos brindar com um texto que dá prazer e preocupação em ler. Marina.
ResponderExcluirNovesforamente a gravidade da epidemia dengosa, a cronica foi hilária! Não segurei o riso! Quando o cronista citou o Detefon, quase me atrevi a dizer: " Isso não é do meu tempo!". Mas me lembrei que sou do tempo do Cibazol, Cibalena, pomada Minâncora, etc. Isso tudo me pertence, não dá pra esconder. Quanto ao "inseticida" natural de seu Enoch, tenho outra opção igualmente ecológica. Havia um engraçadinho na minha familia que sugeria colocar casca de banana nas portas e janelas. Era tiro e queda: os mosquitos escorregavam e não conseguiam entrar na casa! No mais, parabéns pela ótima cronica, leve e divertida. Oportuna para suavizar um pouco a dura realidade dos dias de hoje.
ResponderExcluirA “técnica” mortífera pode até não funcionar, mas a narrativa já deu certo: o bom humor não resolve tudo, mas é fundamental.
ResponderExcluirÓtimo texto!
Surpreendente! Sempre me surpreendo com a sua disposição em apresentar um texto toda semana. Precisa ser muito dedicado e responsável. Pior: sem receber nenhuma remuneração pelo trabalho, apenas o carinho dos seus leitores.
ResponderExcluirFico curioso para saber o seu dia-a-dia sobre o assunto. Enfrenta dificuldades? Tem dificuldade em termos de inspiração? Aborrece-se com alguma inconveniência por parte de alguém? Da esposa, por exemplo, cobrando alguma obrigação não cumprida? De algum comentário abestalhado em torno da essência de algum texto? Ou sempre fica isento no geral?
Acho que o autor tem as suas naturais dificuldades. Porém, o resultado compensa de maneira indubitável.
Se achar conveniente, fale alguma coisa sobre o assunto, pois entendo que a missão é difícil, mesmo tendo o potencial que o autor tem.
Parabéns por mais uma tarefa cumprida. E aproveito para lembrar que continuo esperando o cumprimento da missão especial, que é a publicação de um romance, particularmente enfocando a rica biografia do autor.
Até a próxima semana.
Quando eu morei no RS em 2005, dengue lá era coisa só do resto do Brasil. Nos últimos anos lá virou sério foco. O mosquito é nômade e voa por cima de cheiro e pedra.
ResponderExcluirMais uma crônica “Túnel do Tempo” que eu adoro! Viajei na condição de usuária de quase todos os métodos anti-mosquito/muriçocas citados pelo cronista. E ainda convivemos na infância com o eficaz Neocid para acabar com “o que é, o qué? que anda com os pés na cabeça?” E agora essa crônica ainda nos mostra que o mundo nunca esteve tão globalizado. Até nossos insetinhos domésticos estão fazendo intercâmbio.
ResponderExcluirAproveitando, quem sabe, para conhecer o mundo antes que…
A crônica retrata a música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso:
ResponderExcluir"Meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
O Brasil, samba que dá Bamboleio, que faz gingar
O Brasil, do meu amor
Terra de Nosso Senhor Brasil!
Pra mim! Pra mim, pra mim
Ah! abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado Brasil".