— O que cê faz aí, hein?
— Tô vendo o tempo passar, mãe...
No terreiro, além da cerca de avelós, do pé-de-manga e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o chamado da mãe:
— Tá na hora de lavar os pés e beber água pra dormir!
Chico e Gracita, 7 e 8 anos, últimos dos sete filhos de Januário e Mariquinha, nasceram no sítio Muriqui, à margem do riacho Jundiá, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento da família vinha da pesca, da criação de umas poucas cabeças de gado e do plantio de mandioca, milho e feijão.
Pais e filhos nunca haviam pisado numa escola. Nem desconfiavam de que nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado no século 14.
Sim, por volta de 5.000 a.C., os babilônios descobriram que em certo momento do dia não havia sombra no chão, o que chamaram de meio-dia. Daí dividiram a trajetória da sombra em 12 partes: seis antes do meio-dia (manhã) e seis, depois (tarde). Inventaram o relógio de sol que Chico recriaria no quintal de casa.
Um impulso misterioso leva algumas mães que vivem na zona rural a, de uma hora para outra, querer mudar para cidades maiores, na esperança de que os filhos descubram o mundo, aprendam a ler, a fazer contas, a se libertar da escuridão e experimentar sensações diferentes.
Foi assim que Mariquinha, no final dos anos 50, surpreendeu o marido com uma decisão de bate-pronto, inesperada:
— Januário, nem pense que vou deixar esse menino ser criado aqui como Deus criou batatas, feito os mais velhos. Nem ele nem a irmã dele.
— Oxente, cê tá ficando doida, é? O que é isso?
— Se quiser ficar, fique, mas vou levar os dois pra estudar em Pedregulho.
— E vão viver de quê?
— Não sei... A gente dá um jeito.
A contragosto do marido, que permaneceu no Muriqui na companhia do primogênito, Mariquinha partiu no fim do mês carregando consigo, além dos filhos mais novos, sonho e ousadia.
Ao chegar em Pedregulho, cuidou de alugar uma pequena casa na periferia e de arranjar emprego para os três filhos mais velhos, agora os principais responsáveis pelo sustento da família. Resolveu também que Chico e Gracita seriam alfabetizados a partir do começo do ano letivo.
As crianças teriam aulas o dia todo na escola profissionalizante Lar de São Judas Tadeu, sendo a tarde reservada para o aprendizado de um ofício: alfaiataria, bordado, carpintaria, costura, serralharia. Gracita não se animou muito, mas Chico ainda pensou em se tornar alfaiate para cortar aquelas roupas alinhadas que os mais abastados ostentavam na igreja.
Determinados a retribuir o esforço feito pela mãe e pelos irmãos mais velhos, durante todo o ano letivo os dois irmãos alcançaram os primeiros lugares nas avaliações mensais. Por isso, Chico foi escolhido orador da turma para a festa de formatura. Gracita, integrante do coral que se apresentaria na cerimônia, de última hora foi substituída pela filha de um político local sem que a professora lhe desse uma explicação razoável para o fato.
Ela chorou dois dias e duas noites em seu quarto, escondida da mãe. A professora buscou contornar dizendo que lhe faria “declamadora” porque falava alto. E lhe ensinaria um poema, a ser recitado no palco.
Gracita engoliu sem mastigar a frustração mas decorou o texto, versando sobre as dificuldades de uma órfã num mundo hostil do pós-guerra. No dia do evento, com a mãe toda orgulhosa e perfumada na primeira fila da plateia, a filha declamou de forma tão intensa que comoveu a todos. Talvez ainda amargasse o travo na garganta por não ter sido possível realizar o sonho, acalentado durante meses, de cantar no coral.
No auditório, inquieta sem saber o que ocorria com a filha, que continuava a declamar cada verso de forma enfática, com olhos úmidos e punhos cerrados, Mariquinha levantou-se e gritou:
— Chore não, minha filha, cê tem mãe viva. Chegue pra cá... Óia eu aqui, bem na sua frente!
Padre Ariano, diretor da escola, quase caiu da cadeira, mas logo prestou os esclarecimentos à mãe aflita. Padre, aliás, que tinha um carinho todo especial por Chico, o orador que agora subia ao palco para proferir seu discurso e para quem o diretor, com suas mãos brancas, enormes e peludas, preparara um texto que começava assim: “O tempo pode ser medido pelas batidas de um relógio ou pode ser medido pelas batidas do coração...” E fechava inspirado no poema “O trabalho”, de Bilac:
“(...) É preciso trabalhar.
Não nasce a planta perfeita
E nem nasce o fruto maduro
Para se ter a colheita
É preciso semear (...)”
Para quem assistiu à cerimônia, estava nascendo em Pedregulho uma grande atriz, como Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro, capaz de, mais adiante, ganhar o Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos.
Nascia também, no espírito investigativo e obstinado de Chico, quem sabe um futuro cientista ou escritor de renome na vanguarda intelectual do País. Mal aprendera a ler e já devorava os livros de Monteiro Lobato, fascinado com as artes de Emília, uma boneca de pano com sentimentos e ideias libertárias, e do Visconde de Sabugosa, um sábio sabugo de milho com atitudes e manias de gente grande.
Mariquinha levitava àquela altura. Tanto mais porque seu velho Januário, morto de saudade, já se desfazia do pequeno patrimônio rural e voltaria a juntar a família no Ano Novo. Justamente quando da transição do Brasil antigo para o Brasil moderno, de acordo com Joaquim Ferreira dos Santos, no livro Feliz 1958 - o ano que não devia terminar.
O relógio do tempo foi ligeiro. Chico e Gracita, hoje aposentados e vizinhos de porta na Capital — reclusos, à espera da vacina para o mal que travou o mundo que ora se reseta —, até conseguiram chegar à universidade, mas não seguiram em frente.
Gracita casou com um comerciante, virou dona-de-casa e tem três filhos, que lhe deram seis netos. Chico também casou, tem dois filhos e quatro netos, mas foi além e "pulou a cerca": manteve uma relação por mais de 30 anos com uma instituição pública — às vezes, jazigo de sonhos — que lhe remunerava bem e em dia, garantindo-lhe uma vida sem sustos.
Passarinho em gaiola limpa pode ter alpiste, painço, água e passador, até cantar bonito, mas não aprende a voar.
O menino agora passa horas contando as batidas de um antigo relógio alemão Schwarzwald na parede da sala de casa, ao lado de uma gravura em bico-de-pena de Clarice Lispector onde se lê no rodapé: "O que nos impede na maioria das vezes de ter o que queremos, de ser o que sonhamos, de fazer o que pensamos e aceitar com o coração é a ousadia que não cultivamos".
Passarinho em gaiola limpa pode ter alpiste, painço, água e passador, até cantar bonito, mas não aprende a voar.
O menino agora passa horas contando as batidas de um antigo relógio alemão Schwarzwald na parede da sala de casa, ao lado de uma gravura em bico-de-pena de Clarice Lispector onde se lê no rodapé: "O que nos impede na maioria das vezes de ter o que queremos, de ser o que sonhamos, de fazer o que pensamos e aceitar com o coração é a ousadia que não cultivamos".