Onde estão os óculos de “Urtigão”?
Dia desses publiquei neste espaço uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado” (clique e veja), que deu o que falar por duas semanas. Ontem, ao vasculhar meus arquivos, encontrei outra troca de e-mails, em 2005, onde mandava notícias minhas e buscava saber do paradeiro de meu velho e bom amigo ermitão.
“... Aos 47, com 99 kg, taxas como a Selic, em alta — triglicérides, colesterol etc. —, com uma preguiça danada de fazer caminhadas matinais no frio seco de 16/18 graus daqui de Brasília, filhos casados (exceto a caçula), toco minha vida com Magdala cuidando do velho Lobão (clique e veja) e de sua filha Luna, primeira cadela do mundo que rói unhas, o que a faz caminhar manquitolando.
Praga de nosso amigo Manezin, que tanto provocou minha mulher, a duvidar da masculinidade de sua ‘criança’, que a coitada fez o bicho emprenhar uma cadela poodle pertencente a uma amiga que mora lá em Sobradinho, assumindo o compromisso de criar pelo menos uma ‘neta’.
Pior que, mais tarde, o veterinário descobriu que nossa ‘neta’ Luna nasceu com intolerância à proteína da carne de boi ou de frango — razão de uma gastrite que durou quase dois anos para sarar e vem custando boa soma de dinheiro —, o que me leva toda semana à Feira do Guará em busca de alternativas proteicas tais como ovelha, rã, filé de merluza e coalhada integral de baixa lactose.
Herdou do pai toda a frescura do mundo. Depois que Lobão se tornou cardiopata e nefropata, só come peito de frango sem pele nem osso, pernil de carneiro e é alérgico a carrapatos. Pode? Outro dia, na feira, alguém viu o conteúdo de minha sacola e quis saber o que comemos normalmente eu e minha mulher. Fui sincero: carne moída, fígado, músculo, coxa e sobrecoxa... Já nossos ‘netos’...
Com a mudança dos ventos políticos por aqui, ‘eu vou sobrevivendo, sem nenhum arranhão, da caridade de quem me detesta’, como diz Cazuza. Faço meu dia do mesmo jeitão de sempre, lidando agora com 2.300 almas — 2/3 com menos de quatro anos de empresa — numa rede de 95 agências que atende do Plano Piloto até o Nordeste de Goiás, fronteira com a Bahia. Mereço o respeito delas porque procuro ser simples, firme e justo em minhas decisões.
Tem dado certo e espero que continue assim, pelo menos até ‘a nova florada anunciar a chegada da safra’...”
Em sua resposta, “Urtigão” quase me convenceu de que não dera notícias antes por conta da falta de óculos. Sempre me curvo diante de uma história bem contada, principalmente quando envolve um velho e bom amigo do peito.
“... Fui à oculista porque não conseguia mais ler de perto. Comecei a conferir meus prazos de validade e, tristemente, verifico, apesar de ter sido guardado em ambiente seco e ventilado, meus prazos estão vencendo. Fico com medo da minha sogra, porque tudo que vence aqui em casa, ela dá para os cachorros...
A oculista é muito conceituada na Bahia. Ela me receitou óculos para perto e outro para longe. Assim fiz: dois óculos. Na primeira viagem com ambos, esqueci na casa de um amigo os óculos para perto.
Descobri que todos aqueles que não enxergam de perto acham que têm o mesmo grau de deficiência e assim uns pedem óculos aos outros. Foi o que aconteceu com os meus. Embora sem enxergar direito com eles, meu amigo não conseguiu distinguir entre os dele e os meus. Ficou usando os meus e guardou os dele para me devolver. Tudo ia bem até que a sogra dele sentou em cima dos meus óculos, no sofá. Uma lente ninguém achou e eu tenho até medo de perguntar.
Daí ele começou a usar os dele que estavam destinados a mim e eu fiquei com os óculos quebrados. Não me irrita muito ficar sem óculos de perto porque ainda me ajeito a olho nu. Mas tem coisas ruins de ler e o pior é pedir para alguém, que logo lhe chama de senhor, ou de tio. Antes que me chamassem de vô, resolvi fazer óculos multifocais e acabar com o dilema.
Na realidade, acabei criando outro problema. Fiz de minha caneta uma lança e a arremessei contra minha oculista, que aqui transcrevo para você ver que estou falando a verdade:
“... Aos 47, com 99 kg, taxas como a Selic, em alta — triglicérides, colesterol etc. —, com uma preguiça danada de fazer caminhadas matinais no frio seco de 16/18 graus daqui de Brasília, filhos casados (exceto a caçula), toco minha vida com Magdala cuidando do velho Lobão (clique e veja) e de sua filha Luna, primeira cadela do mundo que rói unhas, o que a faz caminhar manquitolando.
Praga de nosso amigo Manezin, que tanto provocou minha mulher, a duvidar da masculinidade de sua ‘criança’, que a coitada fez o bicho emprenhar uma cadela poodle pertencente a uma amiga que mora lá em Sobradinho, assumindo o compromisso de criar pelo menos uma ‘neta’.
Pior que, mais tarde, o veterinário descobriu que nossa ‘neta’ Luna nasceu com intolerância à proteína da carne de boi ou de frango — razão de uma gastrite que durou quase dois anos para sarar e vem custando boa soma de dinheiro —, o que me leva toda semana à Feira do Guará em busca de alternativas proteicas tais como ovelha, rã, filé de merluza e coalhada integral de baixa lactose.
Herdou do pai toda a frescura do mundo. Depois que Lobão se tornou cardiopata e nefropata, só come peito de frango sem pele nem osso, pernil de carneiro e é alérgico a carrapatos. Pode? Outro dia, na feira, alguém viu o conteúdo de minha sacola e quis saber o que comemos normalmente eu e minha mulher. Fui sincero: carne moída, fígado, músculo, coxa e sobrecoxa... Já nossos ‘netos’...
Com a mudança dos ventos políticos por aqui, ‘eu vou sobrevivendo, sem nenhum arranhão, da caridade de quem me detesta’, como diz Cazuza. Faço meu dia do mesmo jeitão de sempre, lidando agora com 2.300 almas — 2/3 com menos de quatro anos de empresa — numa rede de 95 agências que atende do Plano Piloto até o Nordeste de Goiás, fronteira com a Bahia. Mereço o respeito delas porque procuro ser simples, firme e justo em minhas decisões.
Tem dado certo e espero que continue assim, pelo menos até ‘a nova florada anunciar a chegada da safra’...”
Em sua resposta, “Urtigão” quase me convenceu de que não dera notícias antes por conta da falta de óculos. Sempre me curvo diante de uma história bem contada, principalmente quando envolve um velho e bom amigo do peito.
“... Fui à oculista porque não conseguia mais ler de perto. Comecei a conferir meus prazos de validade e, tristemente, verifico, apesar de ter sido guardado em ambiente seco e ventilado, meus prazos estão vencendo. Fico com medo da minha sogra, porque tudo que vence aqui em casa, ela dá para os cachorros...
A oculista é muito conceituada na Bahia. Ela me receitou óculos para perto e outro para longe. Assim fiz: dois óculos. Na primeira viagem com ambos, esqueci na casa de um amigo os óculos para perto.
Descobri que todos aqueles que não enxergam de perto acham que têm o mesmo grau de deficiência e assim uns pedem óculos aos outros. Foi o que aconteceu com os meus. Embora sem enxergar direito com eles, meu amigo não conseguiu distinguir entre os dele e os meus. Ficou usando os meus e guardou os dele para me devolver. Tudo ia bem até que a sogra dele sentou em cima dos meus óculos, no sofá. Uma lente ninguém achou e eu tenho até medo de perguntar.
Daí ele começou a usar os dele que estavam destinados a mim e eu fiquei com os óculos quebrados. Não me irrita muito ficar sem óculos de perto porque ainda me ajeito a olho nu. Mas tem coisas ruins de ler e o pior é pedir para alguém, que logo lhe chama de senhor, ou de tio. Antes que me chamassem de vô, resolvi fazer óculos multifocais e acabar com o dilema.
Na realidade, acabei criando outro problema. Fiz de minha caneta uma lança e a arremessei contra minha oculista, que aqui transcrevo para você ver que estou falando a verdade:
‘(...) Minha querida oftalmologista,
Estou escrevendo este mail com um óculos para perto que comprei na Avenida Sete de um elemento que, além de ser presidente da Associação dos Muambeiros do Paraguai, é profissional especializado em desentupidores de fogão, pilhas alcalinas, pomada para hematomas e contusões e, o que é melhor, possui curso técnico de oftalmologia de 1º grau.
Não está muito bom, meia-boca, como se diz, mas os outros que fiz numa afamada ótica da Avenida Sete estão simplesmente me deixando louco. Tenho certeza de que, se ele são melhores para minhas vistas, serão piores para meus neurônios.
Essas lentes de gradação progressiva são realmente fantásticas. Lembro que, antigamente, os óculos possuíam uma ‘janelinha’ nas lentes que o povo chamava de bifocal. Aí a gente já sabia: é pra ver de perto, espia-se o mundo por ali. A sensação era tão boa que lembrava as portinholas dos antigos ‘relógios cuco’ de parede, de onde saía o passarinho para anunciar as horas inteiras e suas metades. Melhor ainda, para os menos normais, a janelinha lembrava um buraco de fechadura, doces sonhos e devaneios adolescentes.
Gosto da evolução tecnológica, apesar de ser um indicativo de minha, aí sim, progressiva velhice e dos prazos de validade dos órgãos vencendo. Ninguém me avisou dos inconvenientes dessas lentes modernas.
Primeiro, não posso balançar a cabeça. Parece ressaca; só não dói, nem traz a boa lembrança do dia anterior. Sacudir, de jeito nenhum! Fica o nariz como o apoio da gangorra: quando viro a cabeça para a direita, o olho direito vê a tudo subir, levitando, e o esquerdo, a tudo descer, afundando... Se olhar com os dois olhos para o centro, parece que estou enxaguando um aquário de peixes sem peixes, com as imagens distorcidas pela visão através da água, mexendo para lá e para cá.
Para não levar o título de mal humorado, chato ou impaciente, estou tentando me acostumar com o objeto. Mas é complicado.
Descobri que para ver de longe, tenho que baixar a cabeça e olhar quase pela borda superior dos óculos. Ora, isso tira a altivez de qualquer um. Nessa pose me sinto um esmoler, que pede a caridade da imagem, ou então um penitente, que chega ao altar réu-confesso de sua culpa.
Já para ler de perto, tenho que empinar o nariz e olhar para baixo. Como quem tem ojeriza ao próprio corpo e o vê apenas de relance, quando a barriga permite. Então, estou ficando assim: humilde de longe e arrogante de perto. Igual a político.
Olhando pela linha mediana e para frente, entretanto, as coisas dão mais ou menos certo, se contidos os movimentos bruscos. Caso contrário, volta-se a ter visão idêntica a uma cenoura no liquidificador, prestes a ser incorporada numa vitamina de banana.
Penso que velhos marinheiros não terão problemas de se adaptarem a essas lentes. Tampouco os surfistas, já que vivem em constantes maremotos.
Vou fazer as últimas tentativas: beber e usar os óculos. A lógica me induz a imaginar que a visão desfocada causada pelo álcool tende a se ajustar com a visão fora de foco e oscilante proporcionada pelos óculos. Daí, pronto: visão perfeita.
Meu medo: já pensou se, na tentativa de achar o foco, eu ficar remexendo os olhinhos, sendo observado por um homão que, sentado em uma mesa ao redor, de repente achar que é com ele e chegar bem perto de mim e fazer uma declaração de amor? (...)’
Cunha, eu, Horácio e Urtigão, em 2000. |
Sim, sei que está vivo! Vi dois tiques quando lhe mandei minha última mensagem, ainda sem resposta. Deve ter perdido de novo os óculos, que a rigor nunca lhe fizeram falta para enxergar as coisas do mundo.
Urtigão poderia tentar lentes de contato, com sua delicadeza e paciência daria certo.
ResponderExcluirOutra excelente crônica! Sempre nos lembramos do saudoso Lobão e os cuidados que vcs tinham com ele. Eita figura diferenciada o Urtigão. Abs
ResponderExcluirMeu irmão lobão, o mais mimado dos filhos rs.
ExcluirUm deleite ler seus textos nesses tempos de isolamento. Parece até que a vida continua a mesma.
ResponderExcluirTambém demorei muito para me acostumar.Mas,envelhecer é preciso,para não morrer cedo.
ResponderExcluirBela reverência!
ResponderExcluirA carta à oftalmologista é um primor! Teria sido enviada? Lida? Respondida? Mereceria, no mínimo, um quadro na antessala do consultório...
Seguramente o e-mail foi enviado mas tudo leva a crer que ela nem chegou a ler. Parece que também havia perdido os óculos.
ExcluirCrônica excelente! E ótima para risos num momento de agruras.
ResponderExcluirBeleza de crônica. Histórias que falam do Lobão sempre serão interessantes e hilárias . Associado a causos do Urtigão , aí melhores ainda.
ResponderExcluirUma dose de líquido refrescante para alma e o coração, em tempos de reclusão e perdas. Obrigado.
ResponderExcluirAqui, a galera atualmente " grupo de risco", vai se enxergar em algum momento. Quem nunca " sentou" ou " pisou" em seus óculos de grau??? Mais ainda os herdeiros de miopia, que tiveram os óculos como companheiros a vida inteira..." Pisou" sim! Quem " depende" de um par de óculos, sabe o que é por aos pés da cama quando o sono se aproxima. Só recordando onde os colocou ao ao ouvir o característico " craaaack". Que dá vontade de chorar, dá!!!
ResponderExcluirO óculos " de perto" é bom demais!! Vai alí na esquina, experimenta alguns daqueles coloridinhos By Paraguay, e está resolvido o problema!!kkkkkk
Que bela crônica. Mas uma vez trazendo bons momentos e excelentes lembranças. Com certeza Urtigao com óculos de perto ou de longe, enxerga muito bem as imagens desta foto. Confesso que voltei no tempo, ao vê esta foto, profissionais de primeira que construíram histórias juntos. PARABÉNS
ResponderExcluirMuito bom! Relembrar Lobão é sempre bom pois viveu conosco, as estórias de Urtigão são demais e, concluindo com a foto londa de pessoas que fizeram parte da minha hóstia no BB e dos quais gosto muito.
ResponderExcluirMaravilha!
Excelente crônica. Juntar vcs dois é sinônimo de boas histórias. Fazendo arte com as coisas simples da vida. Parabéns! Não o deixe emudecer. Silêncios ao léu? Instigue-o, provoque-o. Estamos a esperar.
ResponderExcluirExcelente crônica. Queria ter conhecido a figura. Merecia uma série: Grandes Personagens da História Não Escrita.
ResponderExcluirJá dei minhas primeiras risadas do dia. Ótima crônica. Quem sabe o Urtigão dê notícias e venham novas informações.
ResponderExcluirFico aqui perguntando para meus botões: qual terá sido o triste destino daquela lente que levou uma "sentada" da sogra... rsrsrs.
ResponderExcluirMais uma ótima crônica! E com a participação do Urtigão, melhor ainda. Parabéns!!!
ResponderExcluirCada um do seu jeitão, Urtigão e Lobão habitam meu coração. Saudades sem fim do Lobão, e por onde anda Urtigão? Descubra aí meu irmão.
ResponderExcluirDelicia de mensagens que tecem sua crônica!
ResponderExcluirPena que já não se trocam tantas mensagens assim hoje em dia. São consideradas “longas”, “textões”. Algumas mentes preferem enviar e receber “memes”. Curtos e, quase sempre, grossos! Em todos os sentidos.
Outro texto delicioso. Me fez lembrar de outros inesquecíveis amigos que o Banco me deu... e que Deus começa a levar embora.
ResponderExcluirLi recentemente um gostoso livro de Fábio de Melo,"Tempo de Esperas", que é todo construído através do diálogo por cartas entre um professor e um aluno (capítulo a capítulo). Essa crônica fez-me imaginar como você e o Urtigão poderiam construir algo assim, que certamente seria de grande qualidade, basta ver o texto aqui apresentado. O difícil seria adequar o seu tempo ao timer de resposta do Urtigão (rsrsrs). Belo texto.
ResponderExcluirAí mora o perigo, Fernando. Ele me contou outro dia que, certa vez, combinamos pegar um táxi juntos para o aeroporto às 7h. Esperei dentro de um táxi até a hora acertada e, no minuto seguinte, como ele não chegava, fui-me embora sozinho. Cinco minutos depois chegaria esbaforido, teve que apanhar outro táxi e arcar sozinho com a despesa para não falhar com o chefe. Tive que lembrá-lo de que em cinco minutos o mundo poderia acabar.
ExcluirSe fôssemos escrever juntos, não sei se não atrasaria as respostas aos meus e-mails. Ou se inventaria uma justificativa menos esfarrapada do que perder os óculos.
É como vc mesmo diz: Uma máquina atrasar eu ainda compreendo...rsrsrs
ExcluirUrtigão, excelente cronista. Conseguia transformar um simples óculos numa epopeia bem contada.
ResponderExcluirObrigado pela crônica saborosa. Santo remédio pra aliviar a alma!
ResponderExcluirEsse Urtigão é uma figura! Pena não conhecê-lo...
ResponderExcluirFostes injusto com o Urtigão, ele merecia um filme.
ResponderExcluirBeleza de texto.
Parabéns Primo!
ResponderExcluirExcelente Crônica. Dei muitas risadas. Eu que tive o prazer em conhecer o Lobão... Bela Homenagem!
Maria de Jesus Almeida Rocha
Esses óculos a que você se refere está parecendo com os óculos que os políticos de cidades pequenas distribui as vésperas da eleição. Ĺeva um ônibus de eleitores para um cidade mais e distribui óculos para todos. Quando as pessoas retornam e descem do transporte quase todas caiem. Com as lentes desfocadas ele vêem o Chao perto e quando pisam a terra está muito longe
ResponderExcluirConfesso que não consegui me adaptar ao óculos bifocal, Hayton. As sensações eram exatamente essas citadas por ti. Atualmente faço uso do óculos apenas para longe!!!
ResponderExcluirDialética - substantivo feminino -
ResponderExcluirno platonismo, processo de diálogo, debate entre interlocutores comprometidos com a busca da verdade, através do qual a alma se eleva, gradativamente, das aparências sensíveis às realidades inteligíveis ou ideias.
Amigo Hayton, Muito boa leitura. Lembrei da primeira vez em que comecei a usar as danadas das lentes multifocais. Perfeita a descrição do Urtigão no seu e-mail para a oftalmologista. Pena que não teve resposta. Ligabue
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