Como vai você? Preciso saber de sua vida. Praticamente já se disse tudo sobre você, de bem e de mal, mas ninguém lhe pode negar que ainda canta sem aspas, ama sem interrogações, sonha com reticências e vive sem pontos de exclamação. E nunca se deixou abater pelas tragédias que sacudiram a sua vida, tampouco as dores que em algum momento podem tê-lo feito pensar em desistir.
Você nunca foi de desistir. Aos seis anos, por exemplo, a história poderia ter tomado outro rumo enquanto você brincava perto da estação ferroviária e parte da sua perna teve que ser amputada. Restou-lhe usar muletas, depois uma perna mecânica cuja existência o faz mancar ligeiramente até hoje. Nem mesmo o mal que lhe roubou sem piedade três bem-amadas amantes (Nice, Rita e Ana Paula) conseguiu murchar as flores do jardim de sua casa.
Aos 13 anos, você deixou Cachoeiro de Itapemirim, interior do Espírito Santo, e foi morar com a tia Dindinha, em Niterói, onde estudaria e tentaria lançar-se como cantor em programas de rádio do Rio de Janeiro. Tinha os olhos cheios de esperança, de uma cor que mais ninguém possui. Na mala, o fervor religioso lapidado no Colégio Cristo Rei e, do Conservatório Municipal, o domínio básico de piano e violão.
Um dia, você, o cara romântico de olhos fundos, suburbano, do tipo que ainda mandava flores, que tentara meter-se na música pela bossa nova, que cantava rock nos programas de TV nas jovens tardes de domingo, seria coroado. O resto, todos nós sabemos.
Hoje, você faz 80 anos. Com papel celofane e laço de fitas, embalo e ofereço a mim mesmo a possibilidade de reler a crônica da noite em que lhe conheci e constatei: este cara somos nós!
Detalhes tão pequenos de nós dois
Quem de nós não viveu um grande amor nos anos 70 ou 80 e não temia ver tudo acabar da noite pro dia?
Quem de nós não ouviu a voz dele no toca-fitas dizendo que não adiantava nem tentar esquecer, pois durante muito tempo em nossa vida ela (ou ele) iria viver?
Quem de nós nunca parou para ouvir aquela canção simples, ingênua até, onde ele nos alertava de que pequenos detalhes seriam coisas muito grandes pra esquecer? Mais que isso: que a toda hora iriam estar presentes. E ainda ameaçava: "você vai ver..."
Como quase todo moleque, eu era inseguro, ousado e presunçoso. Tinha lá meus medos, mas era meio convencido.
Pensava: e se outro cabeludo aparecesse na Rua Goiás, Farol, em Maceió, quando tudo estivesse acabado entre nós, será que isso lhe traria saudades minhas? E quando ela ouvisse o ronco barulhento do ônibus que antes me trazia da Gruta de Lourdes, vestindo minha velha calça desbotada ou coisa assim, será que lembraria de mim?
Era difícil admitir que um outro pudesse falar ao seu ouvido palavras de amor como eu falava, mas duvido que esse alguém tivesse tanto amor e até os erros de meu português ruim! Nessa hora, era possível, ela iria lembrar-se de mim.
De noite, no silêncio do seu quarto, antes de dormir ela iria procurar o meu retrato, mas na moldura não seria eu quem estaria a lhe sorrir, ainda que visse minha cara abusada mesmo assim. Tudo isso, era provável, lhe faria novamente se lembrar de mim.
E se alguém tocasse seu corpo como eu? Ela não deveria falar nada! Seria arriscado dizer meu nome sem querer à pessoa errada. Poderia até pensar que havia amor nesse momento e tentar, desesperadamente, até o fim, mas até nesse momento, com certeza, ela se lembraria de mim.
Claro que eu sabia que esses detalhes iriam sumir na longa estrada do tempo que transforma todo amor em quase nada. Mas “quase” também era mais um detalhe, porque um grande amor não morreria assim. Se isso um dia viesse a acontecer, eu tinha certeza: ela iria lembrar-se de mim para sempre. Não, não adiantaria nem tentar me esquecer, porque durante muito tempo em sua vida...
"O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência..." diria Nélson Rodrigues. Tudo não passava dos temores sem motivo que nos atormentam quando ainda somos apenas uma mistura de devaneios, hormônios e incertezas.
O tempo voa, a vida passa e 40 anos depois, na noite da última sexta-feira de agosto de 2013, surgiu a oportunidade de uma breve conversa nos camarins do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, que se desenrolou mais ou menos assim:
– Posso lhe contar uma coisa? – perguntei ao cara, com Magdala a meu lado, e fui logo abrindo o baú – Suas canções estão em nossas vidas desde o começo dos anos 70, com aquele disco lançado antes do Natal de 1971.
– É mesmo, bicho? Quais você recorda daquele tempo?
– Traumas, Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, Amada Amante, mas Detalhes era especial. Cheguei a tentar cantar para ela, dedilhando o violão de meu cunhado.
– E este cara cantava bem? – ele quis saber, voltando-se para ela.
Juro ter ouvido algo como "nem era necessário...", mas parece que ela apenas sorriu. Acho que estou ficando velho, o ouvido anda mais seletivo – só escuta o que lhe convém – e a memória já não é a mesma. Se bem que isso é só mais um pequeno detalhe de outra longa história.