Profetas de uma paixão
O escritor Graciliano Ramos, lá pelos idos de 1920, torcia o nariz para o futuro de uma paixão pela bola rolando de pé em pé. Preferia esportes hoje classificados como vintage, como a corrida a pé – útil inclusive para o ofício de roubar galinhas –, além de hobbies como o porrete e a pega de bois pelos chifres. Chegou a sugerir que se deveria elevar a rasteira ao status de esporte nacional, dada a nossa predisposição inata para a malícia e o drible na ética.
Lima Barreto, outro escriba dos bons, também criticava a paixão pelo futebol, sob outro enfoque. Para ele, esse esporte seria um instrumento a mais de segregação racial. Se dentro das quatro linhas a coisa melhorou um pouco, de fora, os bárbaros continuam usando-o para vomitar sua bestialidade, como acontece de forma assombrosa em solo espanhol contra o jogador Vini Jr.
Mais que um jogo, para o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues o futebol era um retrato de nossa humanidade profunda, com suas grandezas e misérias. As circunstâncias, os acontecimentos e os resultados foram descritos em seus textos como uma ópera ou um folhetim teatral. “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”, escreveu.
Ilustração: Umor |
Assistir a uma partida nos dias de hoje virou maratona de paciência e resignação, seja no estádio ou pela TV. O VAR (Árbitro Assistente de Video, na tradução para o nosso idioma), essa promessa de justiça infalível, trouxe mais pausas do que soluções, transformando os jogos em tediosas sessões de análise. A emoção genuína do esporte está sendo trocada por debates insossos sobre precisão tecnológica.
O futebol, desse jeito, se assemelha às ciências exatas, com estatísticas e análises frias predominando sobre a magia do imponderável, do sobrenatural. Só falta acrescentar a famigerada margem de erro, para mais ou para menos.
Quando o árbitro desenha no ar aquela tela imaginária, a pressão sanguínea dos torcedores beira o colapso. O pênalti se consolida como tema para mesa redonda, com direito a análise, quadro a quadro, sobre “movimentos antinaturais e ocupação de espaço”. Descobri, inclusive, que sou totalmente inapto para alguns movimentos naturais, a exemplo de torcer o braço atrás do corpo ou cair com as duas mãos na cintura.
Mas a era do tédio no futebol também deve ser atribuída ao número reduzido de gols – não deveríamos ficar satisfeitos com placar abaixo de 3 a 3, isto é, um gol a cada 15 minutos. Assim como às pausas dramáticas, muitas vezes para que o árbitro possa promover uma verdadeira “discussão de relacionamento” com os assistentes de vídeo, mesmo em lances incontroversos até para os cegos.
Para a escassez de gols, existem propostas a partir de mudanças bastante simples. Por exemplo, admitir que os arremessos laterais sejam executados com os pés. Alterar a regra dos escanteios (passariam a ser cobrados do ponto em que a linha de fundo intercepta a linha da grande área). E introduzir punições por faltas coletivas (após a quinta ocorrência, seria marcado tiro livre da meia lua da área do infrator, sem barreira).
Como acabar com a insuportável “cera” nas partidas? Nada melhor que dois tempos de cronômetro de bola rolando, com intervalo de 10 minutos e com menos jogadores em campo (10 de cada lado, inclusive o goleiro), reduzindo aquela ciranda sem fim na zona intermediária. Outra melhoria no ritmo de jogo seria punir com tiro livre o retrocesso da bola ao campo de defesa após cruzar a linha do meio-campo, estimulando mais os ataques e contra-ataques.
Essas mudanças dariam novo gás ao futebol, inclusive por incentivar o surgimento de novas estratégias de jogo, sem exigir grandes investimentos em infraestrutura e tecnologia.
Mas é difícil convencer certos mandachuvas de evidências. As alterações nas regras dependem de um órgão mais conservador que a Igreja Católica – o International Football Association Board. Mesmo vendo a molecada, inclusive meus netos, bocejando para o esporte e optando por fabricar o próprio encantamento no videogame.
Voltemos então a Graciliano Ramos. Foi premonitório ao antever que o futebol se tornaria um playground para apostas esportivas, transformando a maior paixão nacional em mero objeto de especulação financeira, mediada por plataformas digitais estrangeiras.
Que bom que somos referenciais para o mundo em termos de leis e autoridades competentes para impedir o aliciamento de atletas e árbitros, evitando qualquer manipulação de resultados. A CBF e a CPI das apostas estão aí para garantir a retidão do negócio.
Caso contrário, teremos que engolir a profecia do velho Graça quanto à nossa inclinação para a astúcia e a malandragem como parte do futebol, assim como na vida em geral.
Afinal, tem sido a arte de dar e sofrer caneladas em quem pensa diferente de nós que nos define como nação no abismo civilizatório em que caímos.
O VAR é as apostas, apelidadas de BET, estão tirando a magia do jogo do futebol. O fator da imprevisibilidade das várzea está sendo trocado pela tecnologia maçante e pela burla.
ResponderExcluirComo sempre, excelente. Forte abraço
ResponderExcluirExcelente! Gostei muito do trecho onde fala que somos referenciais para o mundo em termos de leis e autoridades competentes... 🤣🤣🤣
ResponderExcluirSó faltou você falar da minha tia que não entendia como uns marmanjos ficam brigando pela bola e muitos outros espiando nas arquibancadas ou no sofá da sala e sugeria que era melhor dar uma bola pra cada um e acabar logo a briga. Mas vc não a conheceu, então está perdoado. Nelza Martins
ResponderExcluirExcelente crônica Hayton. Jogo de futebol tornou-se mina de ouro onde os resultados valem fortunas e o "vale tudo" está em jogo. Tá valendo manha e artimanha, fazer cera e rezar para o apito final.
ResponderExcluirMillôr Fernandes, diz que
"O futebol é o ópio do povo e o narcotráfico da mídia", mas creio que o negócio é seguir Vinicius de Moraes e misturar poesia com cachaça e discutir o futebol.
Simbora rumo à próxima crônica para a alegrar as quartas-feiras.
É verdade … o futebol está perdendo muito de sua espontaneidade, de sua graça e poder de arrebatamento das multidões . Por outro lado, considerando que toda tecnologia pode ser corrompida , quem garante que o VAR seria “imexível”?
ResponderExcluirDe fato, o futebol perdeu muito daquela magia envolvente que me empolgava para preparar aquele petisco para reunir amigos e familiares para assistir a uma boa partida.
ResponderExcluirComemorava quando uma viagem a trabalho ocorria no período de uma boa partida no Maracanã ou no Engenhão. Sempre eu aproveitava essa oportunidade.
O ASA e o Flamengo que me perdoem, mas a torcedora hoje tem preferido assistir bons filme e séries.
Filmes*
ExcluirEstou a ponto de abandonar. Futebol se tornou uma tortura para quem ainda segue. Mulher acha que maltrata homem porque não sabe o que o flamengo faz com a gente. Dedé Dwight
ResponderExcluirAssistir uma partida de futebol está ficando sem graça. Seja pelas intervenções do VAR, seja pela falta de vontade de alguns jogadores que, simplesmente, se limitam a trotar em campo. Complementaria o belíssimo texto, acrescentando o stress causado por ocasião do traçado das linhas que definem a posição de impedimento, por vezes, definido pela "unha" do atacante ou do defensor.
ResponderExcluirExcelente
ResponderExcluirNão é só no futebol que prevalece a "Lei de Gerson". Tomo a liberdade de sugerir que seja criado o "Troféu Abelha". Entre os políticos, será muito disputado. Ganhará quem mais fingir que trabalha. Ou seria melhor "Taça Cera", para não desmerecer as produtoras de mel?
ResponderExcluirMagalhães.
Concordo muito com o autor.
ResponderExcluirSobre o que empobrece nosso futebol, sobretudo em comparação com o praticado na Europa, acrescento dois fatores decisivos: quase todos os bons jogadores da América do Sul saem muito cedo pra times europeus; e os gramados não tem a menor comparação.
Em relação à evolução das regras, acrescento que as substituições poderiam ser em maior número, como no futsal e no basquete, inclusive permitindo a volta de quem é substituído. Isso permitiria mudanças táticas interessantes durante o jogo.
Maravilhosos e acetivos os comentários sobre nossa grande paixão, pena deixarmos a tecnologia interferir no relacionamento amoroso que construimos o futebol.
ResponderExcluirSituação bem difícil a do futebol na atualidade. Além da carência de habilidades com a redonda. Quando assisto aos jogos do meu time do coração, na honrosa série C, e confronto com os jogos da Champions League, há uma diferença abissal na destreza de cada jogador. E o espetáculo se diferencia, inclusive no número de gols. Resultados lá nunca são definidos antes dos acréscimos finais. Para nós, um dois a zero fica quase impossível de virar. Parece que o esporte das multidões vai se tornando cada vez mais elitista. E, verdadeiramente jogado, de forma exclusivo por grandes e ricos times. O meu alvirrubro, que carece de tudo, mas, principalmente, de recursos financeiros, joga outra coisa, que não futebol.
ResponderExcluirExcelente narrativa do nosso futebol! Mas o que mais me preocupa é a ação das torcidas "desorganizadas" que, quando se sentem ofendidas por uma derrota ou seja lá qual for motivo, apedrejam os torcedores do time adversário.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirÉ verdade que nós, vascaínos, atualmente temos ainda mais razão para nos aborrecermos com o futebol. Quanto à crônica, aprendi e gostei muito!
ResponderExcluirExcelente crônica ,Hayton .👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirO futebol, apesar do conservadorismo, continua sendo a preferência esportiva de boa parte da população mundial. No futebol, assim como nas artes, o que mata o espetáculo são as máfias que tramam nos bastidores. A beleza do espetáculo, com toda a sua criatividade vai sempre prevalecer intacta. Infelizmente, vivemos num mundo em que a força da grana predomina em todos os setores, manchando de tristeza e nos envergonhando. Gilton Della Cella.
ResponderExcluirRapaz. Concordo em gênero, numero e grau com o comentário do Dedé. Tou quase desisti do. Qto à crônica, nota 100. Maravilha
ResponderExcluirPrezado Hayton
ResponderExcluirEmbora futebol não seja um tema que está entre meus preferidos, curti demais essa crônica! Construir belas jogadas redacionais e engendrar lances literários primorosos, como vc fez nesse texto, é coisa pra craque!
Torcer para o Botafogo está parecido com andar de montanha Russa! Desconfiança na subida e desespero na descida! Ave Maria! Gostei das ideias! Acrescentaria uma bem controversa: acabar com impedimento!
ResponderExcluirO futebol, a exemplo de muitas outras coisas, vem a cada dia se tornando mais chato e corroborando o ditado popular de que não se deve discutir sobre futebol, política e religião. Os três temas tem algo em comum: A prática em excesso torna fanatismo, o que sai totalmente da razão e o indivíduo que se torna fanático traz sérios problemas a uma sociedade ou mesmo para o mundo, dependendo de quanto esse fanatismo está intrínseco numa sociedade.
ResponderExcluirIndependente disso, as sugestões apresentadas na crônica seriam de muita valia.
Prefiro não comentar". Eu até poderia me valer desse delicioso bordão de um dos últimos programas humorísticos de alguma qualidade da TV Brasileira, o "Toma lá, dá cá". Era dito, "volta e meia", pela personagem "Copélia", interpretada pela excelente atriz Arlete Salles, pernambucana, de Paudalho, quando ela queria "fugir do assunto" (como eu), mas, na verdade, o que ela queria dizer, ficava mais "claro e cristalino", do que se tivesse dito.
ResponderExcluirTão "claro e cristalino", quanto o claro desgosto de Hayton ao dizer que "somos referenciais para o mundo". Mas não em honestidade e, sim, "em astúcia e malandragem". No futebol, em seus bons tempos, eram assim que eram definidas as belas jogadas de Pelé e, especialmente, de Garrincha, o "anjo das pernas tortas", entre outros. Ou seja, tinham um bom sentido! Hoje, ganharam uma sigla: BET e um "grande avanço tecnológico", o VAR (?).
Na TV, em seus bons tempos, tínhamos Chico Anisio, Jô Soares, Manoel da Nóbrega. Eram muitos! Hoje? Nem sei! Não assisto mais TV Aberta e muito menos Futebol, ambos tediosos e de qualidade duvidosa. Prefiro o "On Demand" ou o Canal "Viva", que me permitem voltar aos velhos e bons tempos, ainda que "politicamente incorretos" e com aviso especial "politicamente correto" sobre isso. É uma pena!
É uma pena que, no futebol, craques como Romário e Zico (para citar somente os que ainda estão entre nós) não possam mais voltar a jogar. Diferentemente de Arlete Salles, que está voltando às novelas, aos 85 anos (soube disso, pelo Google). É uma pena, porque não vou assistir. Mas, torço por ela, até porque, pelo futebol, está difícil torcer!
A propósito, as expressões "torcedor", "torcida" e "torcer", usadas só no futebol brasileiro, tem a ver com a ação das mulheres (pasmem!), que, no início do século XX, assistiam aos jogos nervosas, gritando, "xingando" (pasmem, novamente!), chorando e "torcendo" seus lenços e luvas, que ficavam "encharcados de suor e lágrimas". Foi a excitação das mulheres, que fez com que, tais expressões, fossem criadas por Coelho Neto, que, ao contrário de Graciliano Ramos e Lima Barreto, era entusiata pelo desenvolvimento do esporte, por acreditar que "a prática dele era importante para a construção de valores morais e educativos, na Sociedade". Deu no que deu!... Que o digam as ditas "torcidas organizadas"!...
O nome não apareceu, mas sou João Alberto Brandão
ExcluirAh, o futebol! E nada como uma excelente crônica sobre ele. Apesar da concordância de quase todos os autores dos comentários sobre o desencanto com o atual futebol, parece-me que a popularidade do esporte não acompanha esse pensamento. Os estádios lotam, os canais especializados lucram milhões com assinaturas, as lojas dos clubes auferem lucros que impressionam até os bancos. Mas e o VAR. Prefiro agora com ele. Tristes momentos que passei com os erros sem revisão dos juízes. Agora, caro Hayton, o que concordo mesmo é com a inclusão das novas regras propostas por você. E ousaria acrescentar mais uma: cada vez que um jogador tivesse que abandonar uma partida por agressão do oponente, este sairia junto. E vamos sofrer e sorrir com o futebol.
ResponderExcluirComo não gosto de futebol, comento sobre o VAR no volley, que é a melhor coisa quando desfaz marcação errada para o time que estamos torcendo, mas quando é o inverso é terrível cancelar o ponto feito, mas faz parte da tecnologia tão avançada nos dias de hoje.
ResponderExcluirFutebol é o berço dos que tiveram preguiça de estudar. Não se pode exigir atitudes pensadas, a fonte é só de habilidade. Colocar tecnologia em meio a isso, melhor aumentar os tempos para 60 minutos. Ensinar a pensar já não dá...
ResponderExcluirConcordo. O futebol, por suas peculiaridades, caiu no gosto do brasileiro; e, também por elas, não se presta a esse "tira-dúvidas" eletrônico, como acontece a outros esportes como o vôlei. Quanto às modificações, sugeridas... sempre preferi o soçaite e o futsal. :)
ResponderExcluirReferenciais para o mundo em termos de leis e autoridades...
ResponderExcluirA primeira, sem dúvida, é a "lei de Gérson"... Por ela, move-se o futebol, o mercado e, porque não dizer o "mundo chamado Brazil"...
Mudar as regras? E elas não estão sendo mudadas de acordo com a interpretação do aplicador da sentença? Bem, deixemos as leis prá lá e fiquemos apenas no encanto dos belos dribles e nos bons de pontaria...
Como já registrei em comentário em outra crônica do Blog, o futebol pelo qual já tive paixão, hoje se resume a saber os resultados a posteriori, sem nenhuma emoção. Raríssimas vezes assisto jogos do tricolor das Laranjeiras, apenas quando o mesmo está nas vias de uma conquista importante. Desperdiçar preciosos 90 minutos com essa qualidade atual é gostar de se torturar. E quando se trata de Seleção, aí é que não dou a menor importância.
ResponderExcluirMas concordo totalmente com as ótimas sugestões apresentadas pelo autor e outras acrescentadas nos comentários.
O Esporte está uma lástima, porém a crônica sobre ele foi show de bola.
Acabei de ler o seu texto da semana. As atividades intensas não permitiram a leitura em tempo mais adequado.
ResponderExcluirOportuna a sua abordagem sobre o tema. É que a malandragem impera em todos os sentidos, principalmente quando se trata de brasileiro. Apesar da dificuldade intrínseca da coisa, a abordagem vai gerar reflexão sobre o assunto e fazer com que as autoridades responsáveis se debrucem sobre o assunto e tentem evoluir sobre o tema.
Parabéns por mais esta conquista.
Como de hábito, um belo texto sobre tema tão empolgante. Apenas para enriquecer a reflexão, vai aqui mais uma sugestão para devolver ao futebol um pouco de sua graça: impedimento somente poderia ser marcado se todo o corpo do atacante estivesse à frente do último zagueiro.
ResponderExcluirRealmente os jogos de hoje estão muito comercializados e isso gera uma certa automação do espetáculo (?). O tal do VAR tem mais defeitos do que qualidade. O bom mesmo é ler as crônicas do Hayton, que não precisam do VAR.
ResponderExcluirMeu filho, com 18 completados na semana passada, e todos os seus amigos, não tem nenhum interesse no futebol. Temo que esse, realmente, não seja um esporte do futuro.
ResponderExcluirMarina.
Que poção contra pernilongos interessante e... ingênua! É sempre bom ler suas crônicas, Hayton.
ResponderExcluirAcabaram o futebol
ResponderExcluirAcabou futebol arte
Essa é a má notícia
Que se ouve em toda parte
E agora o tal do VAR
Faz a partida parar
Querem nos causar enfarte