Cruzam por acaso no Dique do Tororó, próximo à Fonte Nova, em Salvador, e interrompem a caminhada por causa dos pingos da chuva que engrossam. Há muitos anos não se viam.
– Aguilar?
– Sim! Perdi os cabelos, tô pesadão, mas... Evaldo, né?
– É. De hoje que quero te ver, meu velho. Acabei de ler o livro. Venha cá, quando tu começaste a escrever?
– Rapaz, bote tempo nisso...
– Tu eras ruim de redação, no ginásio, hein?!
– Melhorei. Tinha que escrever quase todo dia, no trabalho. Me ajudou muito.
– Agora, sim, tá brocando. Aliás, só tu mesmo, Aguilar, com esta cabeçona da zorra pra me explicar o que tá acontecendo no mundo.
– Tá me tirando, é?
– De jeito nenhum! Tô é virado no cão. Ó paí ó! – aponta Evaldo para a notícia na telinha.
Yuri Tolochki, renomado fisiculturista do Cazaquistão, que já conquistou duas vezes o título Master of Sports, fala sobre a discriminação que vem sofrendo no meio esportivo depois que se casou, em 2020, com uma boneca sexual.
Algum tempo depois do casamento, o bodybuilder se separou da então esposa, Margo e, para espanto da comunidade, agora se relaciona simultaneamente com duas outras bonecas sexuais: Luna e Lola.
Yuri se queixa de que vem sendo hostilizado pelos colegas de profissão, os quais pressionam a federação de seu país a excluí-lo das competições.
Acontece que os colegas entendem que o caso é ofensivo à moral e aos bons costumes, e que a associação do nome dele à federação fere sentimentos religiosos, além de manchar a imagem de outros atletas “dignos”.
Tudo me leva a crer que o ser humano é um bicho que ainda não deu certo. Todos os outros pensam, exceto o que fala, lê e escreve.
– Diga aí, qual é o problema? – provoca Aguilar.
– Oxe! Nossa Senhora me defenda! O mundo tá perto de acabar!
– Isso acontece, Evaldo. Tudo muda, mas nem sempre para pior.
– Como assim?
– Repare bem: o cara tá casado com duas mulheres que não reclamam de nada! Nem do mijo na borda do vaso sanitário, das meias desemparelhadas na gaveta, da toalha molhada na cama, do cabelo no ralo do banheiro, do aipim com casca que ele traz da feira, do farelo de bolacha na sala, da casca de laranja no balcão da pia, da lixeira cheia, da lâmpada queimada, da tesoura cega, do sinal de internet, da água fria do chuveiro...
– Rapaz, juro que não tinha me tocado! Tem mais: duvido que uma dessas mulheres peça a ele para desentupir boca de fogão, aguar jardim, enxugar panelas, levar cachorro pra passear, consertar varal de teto, torneira pingando, telha quebrada ou curto-circuito na rede elétrica, sabendo que o miserável passou a vida ralando como bancário ou professor, por exemplo.
Surpreso com o rumo da conversa, Aguilar ainda tenta segurar a onda:
– Peraí, Evaldo, tô brincando com você. Acabei cutucando o ogro que tem aí dentro, né?
– Porra, velho, a conversa tá mexendo comigo. Tô aqui só castelando na cara de felicidade do fortão. Nenhum pé de sogra, tia, prima, cunhada ou sobrinha dando pitaco na estampa do sofá, no modelo de geladeira, tevê ou abajur. Nem na pintura ou no piso da casa.
– Pegaste ar, hein?! – ri Aguilar, agora surfando na onda que se formava – Será que as bonecas, daqui a 10 ou 15 anos, vão perguntar se o cara ainda sente a mesma coisa que sentia antigamente?
– Aonde, rapaz? E se o cara encher o saco, resolver se picar, nada de ouvir conselho de ninguém, de discutir relação, divórcio litigioso, briga na partilha de bens, guarda de filhos, pensão alimentícia... Tudo na paz, na boa.
– Olhe só, depois nego diz que escritor viaja demais. Quando pensa que não, é o leitor quem lê o que quer, quando quer, como quer e distorce tudo. Fui tirar onda, ó...
– Me poupe. Mas quem sabe este papo rende uma história porreta. Por que não escreves?
– Melhor não. Vai que acordo com um corte na garganta ou uma chaleira de água quente nos ouvidos. Às vezes, minha mulher fica retada com o que escrevo.
– Acho que me lembro dela. Não é a...
– Sim, ela mesma! Lá do colégio.
– Achava linda.
– Vai dizer que...
– Bronzeada, bocão vermelho, cabelos encaracolados... E aquele biquini branco que ela usava lá em Stella Maris, hein?!
– Né possível... Tu nunca...
– De jeito nenhum, irmão! Nada de chouriço. Seria crocodilagem.
– Ah, bom! Ó... Vai fazer o quê no feriadão?
– Nada...
– Aluguei casa de praia lá em Itaparica. Bora ficar de prega, comer moqueca e jogar baralho? Minha mulher vai comigo. Leve a patroa, Evaldo.
– Aí me quebra, Aguilar. Vou não. O colesterol e a glicose tão lá em cima. Se não fosse a patroa cuidando de mim, de minha comidinha, sei não... Mas reclama de tudo, viu?!
– Aí é lenha...
A chuva passa. Os dois se levantam com um "a gente se vê". E eu, que a tudo assisti por acaso, até tentei alcançar o que aconteceu e traduzir aqui o que escutei. Vá entender esses animais racionais.