Vi o mar pela primeira vez aos 12 anos, na Avenida da Paz, em Maceió. Meus pais também: ele aos 38 e ela, aos 31 anos. Tudo era novo e deslumbrante para nós, pais e filhos matutos, vindos do interior, naquele verão de 1970.
Mais que do rio Mundaú, que deslizava entre os partidos de cana-de-açúcar dos tabuleiros de União dos Palmares, na Mata alagoana. Rio cuja água doce e morna me legou boas memórias, mas também ancilostomíase (amarelão) e esquistossomose (doença do caramujo).
A diferença entre o açude, o rio e o mar estava nas águas. No mar, tinham gosto de choro.
Sentados na areia, ouvíamos o burburinho do vai-e-vem sem fim das águas. O mar, por mais que fingisse não ver que estava sendo observado por nós, de repente veio de tudo que era lado nos salgar.
Meu pai, de calças arregaçadas, nu cintura acima, tomava conta dos primeiros sete filhos, espalhados na areia. Uns rolavam, outros construíam castelos e os mais afoitos, afeitos à correnteza do Mundaú, arriscavam molhar braços e canelas na espuma das marolas.
De pouca conversa, como de costume, às vezes penso que ele buscava na linha onde as águas tocam o céu um sinal qualquer que lhe apontasse como calafetar o barco de sua existência, àquela altura fazendo água por todos os furos.
Minha mãe, naquele dia, tinha olhos e braços para o casal caçula de filhos. Cuidava também da provisão de bananas-prata, goiabas e mangas-espada, além de algumas garrafas de água potável. Não havia como dar de comer e beber a tantos nos bares da orla.
Nisso, uma das meninas, 6 anos, desaparece naquela profusão de corpos e rostos desconhecidos. Mãe e pai, aflitos, correm em direção às ondas traiçoeiras da praia do Sobral, temendo perdê-la. Todas as crias da ninhada tinham o seu valor.
A paz só seria restabelecida minutos depois. A criança foi encontrada com vida e voltamos todos para o ninho, salgados e cansados, mas felizes. Foi a primeira e única vez em que, juntos, fomos à praia.
Pouco mais de dois anos depois, numa sexta-feira de maio de 1972, meu pai deixaria um bilhete aos colegas — lido apenas na segunda-feira —, justificando-se por que nunca mais voltaria a encontrá-los.
Não recebera um centavo sequer no contracheque do mês. Compras antecipadas em cooperativa de consumo, farmácia e lojas, mediante consignação em folha de pagamento, rasparam o tacho. Teria de novo pela frente 30 dias batendo à porta de agiotas.
Sentia-se, imagino, fatigado e incapaz de evitar o naufrágio a cada novo empréstimo que suplicava, mesmo a juros abusivos, em troca de cheques pré-datados. E se fosse demitido por emissão de cheques sem fundos, o que seria da mulher e dos nove filhos?
Na missa do domingo, exausto e vencido pela desesperança, imagino, de joelhos ele chorou diante do altar da capela do bairro da Gruta de Lourdes. Quem sabe, também pediu perdão pelo que faria a si mesmo (e a nós) na madrugada.
Desde que o mundo é mundo, quando o mar está calmo, qualquer um pode ser timoneiro e tocar seu barco. Quando vem a tormenta, uns não conseguem lidar com os mistérios do vai-e-vem sem fim de suas águas.
Meio século já se passou e algumas pessoas não compreendem por que não sou — assim como alguns irmãos meus — de me sentar e relaxar na areia de uma praia, embora tenha morado em Recife e Salvador, além de voltar a viver em Maceió, em frente ao mar.
Depois que cresci, rascunhava meu próprio roteiro de viagem quando a poesia de Pessoa me apontou um caminho, bem além da linha onde a águas tocam o céu:
"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena..."
Hoje, nem eu nem o mar que vi pela primeira vez no Verão de 1970 são os mesmos, mas ainda escuto rumores no vai-e-vem sem fim das águas — com gosto de choro.
Lendo sua narrativa já me deu aquela vontade de estar ao lado do mar em breve:
ResponderExcluir"Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar".
Você está certo, Paulinho. Afinal, como diria seu xará da viola, não é você quem se navega, quem lhe navega é o mar...
ExcluirBelo texto, muitas reflexões podemos dele extrair.
ResponderExcluirNesta época de lua cheia, dedico a oitava a seguir aos leitores deste espaço.
Pense num casal romântico
A lua cheia e o mar.
A lua beija o Atlântico
E não se deixa beijar.
Mas, ele segue imponente
Apaixonado e carente.
Envolvido no envolvente
Longo beijo do luar.
Vamos ficar com a parte boa. Também conheci o mar aos 12 anos. Vinha do Mato Grosso. Lembro-me que, na Serra de Santos, apontavam para eu ver o mar ao longe. Não conseguia ver. Dizem que não vemos o que não conhecemos. E verdade. Acho que a vida também é parecida com o mar e vai e vem das ondas; uns chegando, outros partindo. Talvez esteja aí o gosto de choro de suas águas. Mas, como disse o poeta, é doce morrer no mar.
ResponderExcluirSó pra idênticar o comentarista do texto. Escapuliu.
ExcluirLembranças...
ResponderExcluirQue texto!!!
ResponderExcluirComeça com um gostinho especial pra mim, que conheci o mar aos 11 anos. Aí, começa a ir mais fundo em um mar de águas bem particulares, saudosas e dolorosas, até fazer o arremate final, mostrando que nós somos o resultado, sobretudo, do que vimos e vivenciamos nos primeiros anos de vida.
“Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” Só uma alma grande, pra narrar com detalhes fatos tão fortes. O mar com certeza lhes proporcionou o último encontro, “ mar misterioso mar...”
ResponderExcluirUma obra prima meu amigo ! Uma crônica cheia de vivências, de alegrias, tristezas mas também de esperança, tal qual é a vida ! Toca os nossos corações !
ResponderExcluirTalvez teu pai quis te mostrar a imensidão que te levaria adiante, já que o coração dele já não via esperança. Te mostrou um mundo cuja poesia entrou em teu coração. Não é um belo legado?
ResponderExcluirSim. Os calados quase sempre são mais ouvidos do que os falantes. E deixam por onde passam o barulho do exemplo.
ExcluirComo sempre, muita emoção em tudo o que escreve. Um abração, amigo
ResponderExcluirQue tocante, meu amigo!
ResponderExcluirBelo texto, linda história (a despeito da dureza de alguns episódios).
Parabéns pela sensibilidade!
Bela crônica, Hayton! Lendo e refletindo acerca dos seus textos, conhecemos você um pouco mais e a nós mesmos.
ResponderExcluirCada palavra sua tem um significado marcante.
Nascida em MS e tendo morado a maior parte da minha vida entre o Acre e o DF estou, há pouco mais de um ano, morando em frente o mar.
Como isso nos transforma!? Às vezes me sinto tão pequena, diante de tamanha imensidão. Às vezes sou grande como ele.
Nossas marcas pessoais nos tatuam para sempre, ainda que invisíveis aos olhos de terceiros.
ResponderExcluirA excelente crônica lembrou-me do início de um livro que gosto muito, "O caçador de pipas", de Khaled Hosseini, no qual no primeiro parágrafo o personagem registra: "Eu me tornei o que sou hoje aos 12 anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975...Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre volta".
Isso realmente é fato, e seu texto, a la um relato de divã, nos mostra isso. O bom é que soube navegar pelas ondas turbulentas geradas e sobreviver.
E, como também nos diria o poeta Zé Ramalho
"Além, muito além onde quero chegar,
Caindo a noite me lanço no mundo
Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar".
Obrigado, meu amigo. Minha mulher tem dito que escrever me poupa de gastar com psiquiatras durante o exílio viral. Começo a lhe dar razão.
ExcluirHAHAHAHAHAAH...ELA TEM TODA RAZÃO!
ExcluirHayton, sua crônica vale por anos de terapia. E olha que eu adoro e valorizo muito terapia!
ResponderExcluirA poesia com que você reveste um episódio que marcou tanto a tua vida e a vida de toda a tua família é comovente!!
Que o gosto de choro das ondas do mar possam ser o sal da da borda da boca de um belo cálice de tequila!
Abração
Texto como sempre muito bem escrito, mas me trouxe lembranças tristes. Não diria que gostei dessas recordações nesse momento de incertezas que estamos vivendo...Tentando ainda entender a razão de minha existência.
ResponderExcluirUm texte de lirismo infinito, revival do passado é preciso.
ResponderExcluirBravíssimo!!!
Quanta profundidade de sentimentos nesta emocionante crônica das lembranças de uma vida. Que a infinitude do mar sempre nos acalente o coração, nas alegrias e agruras da nossa existência.
ResponderExcluirLamento muito que o Sr. Agostinho, homem de cultura, princípios e fé, não conseguiu ultrapassar o limiar
ResponderExcluirda desesperança e não tenha visto o seu maior legado: a inteligência e honradez dos filhos.
Lembranças de momentos difíceis, registradas de maneira suave, ainda que com gosto de choro, como você escreveu. Há situações na vida que produzem uma carga tão pesada que somente pode ser sentida pelos ombros que a carrega.
ResponderExcluirHoje recebemos uma dose de pura nostalgia. A primeira vez no mar. A reunião da família inteira. As agruras financeiras. Interessante é perceber que todas estas coisas, aparentes minúcias, forjaram e firmaram o adulto que sobrou tantos mares diferentes. Sentimos a ponta de nostalgia que todas as cenas descritas suscitaram e ainda marcam profundamente a vida do autor. Outrossim, não estariam registradas com tanto carinho, de forma veemente até. O fato é que toda a narrativa ganha em formosura justamente em razão do apreço com que é contada. Páginas especiais de uma vida. Dignas de serem amplamente divulgadas. Ainda mais quando banhadas de uma prosa especial, muito arrebatadora. Mais um lindo e significativo registro.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
SUGIRO OLHAR O MAR COM OUTROS OLHOS. PRESENTE DE DEUS. IRÁ SE IMPRESSIONAR E SE APAIXONAR! BEIJO NO CORAÇÃO
ResponderExcluir"O mar
ResponderExcluirVazou de uma paixão
Atravessou meus olhos
Encheu a minha mão
Caiu no chão
Em doces gotas de amor
Evaporou na noite
Nublou o céu de estrelas
E derramou manhã..."
Talvez essa letra de Djavan justifique o gosto de choro das águas do mar.
Mas, como se pode ver, além de gosto de lágrimas, o mar em seu vai e vem também purifica e transforma noites tenebrosas em ensolaradas manhãs.
Mais uma bela crônica, meu amigo. Parabéns pela sensibilidade e coragem!
Amigo Hayton!
ResponderExcluirParabéns pela maestria de produzir um texto tão belo de um assunto tão sensível.
Eu também somente conheci o mar com 11 anos. Sinto o gosto da água salgada daquele dia e da coleção de estrelas do mar que tentei levar pra casa.
Um abraço
Quisera a vida fosse precisa quanto o navegar, já dizia o poeta! Talvez fossem fáceis as respostas e explicações. Viver ultrapassa todo entendimento! Resta-nos entregar a Deus todos os mistérios, assim como o mar contém todas as águas dos córregos, riachos e rios. Tudo está contido no seu mistério... Parabéns !!!
ResponderExcluirParabéns, Hayton, você está se esmerando em transformar sentimentos em palavras. Seu texto tem muita poesia e uma boa pitada de saudade e de tristeza que você tenta dissimular como faz o mar que você tão bem descreveu. Gostei muito.
ResponderExcluirEstava sem o login e saiu como anônimo, Hayton. Mas sou eu, Diniz, do seu fã clube carioca. Abração!
ExcluirHoje, diante de tanta safadeza, esperteza, corrupção, desrespeito ao ser humano, desprezo pelos menos favorecidos e roubalheira à mancheia, fico triste pelo que pode ter sido o desperdício de uma vida: honesta e honrada, cujo preço foi alto demais. Hoje, alguém diria: Não foi vítima de Drumond que disse que o homem ainda teria vergonha de ser honesto, diante de tudo o dito aí. Hoje, sua vida, também honrada e honesta é, certamente, bálsamo para o espírito do Seu Agostinho. Emocionado, concluo: Vale a pena ser honesto.
ResponderExcluirHayton, não diferente de você, também conheci a imensidão do mar, aos 17 anos de vida. A emoção foi tão grande! E até hoje quando vejo o mar, sinto um turbilhão de perguntas, de misterios que ele em erra. Também tenho uma poesia sobre o mar.
ResponderExcluirUm abraço
Digo que ele encerra
ResponderExcluirGratidão por compartilhar suas lembranças mais doídas com todos nós! Com uma leveza, dignidade e sensibilidade comoventes. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻🙏🏻🙌🏻
ResponderExcluirOutra blz de crônica, Hayton! Sua história e de seus irmãos e irmã são Um exemplo de como a vida dá reviravoltas! Tiberio
ResponderExcluirTexto cheio de poesia e de muita coragem.
ResponderExcluirAbração
Zezito
O tempo passa e com ele
ResponderExcluirCaminhamos todos juntos
Sem parar
Nossos passos pelo chão
Vão ficar
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
Meu amigo, aproveite o nascer do sol olhando o mar, a imensidão das águas confortam e minimizam a dureza das lembranças tristes.
Oi, mais um texto emocionante, com muita franqueza e também com delicadeza, para um episódio doloroso. Todos nós carregamos alguns momentos, algumas passagens em nossas vidas que são difíceis de recordar ou mesmo falar.
ResponderExcluirParabéns mais uma vez.
Lembro como se fosse hoje de quando me chamou para conversar em seu gabinete, há exatos seis anos, e numa conversa sincera me contou este triste relato. Tenho orgulho e sou agradecido por ter convivido, mesmo que indiretamente, por muitos anos com vossa senhoria.
ResponderExcluirA genialidade está batendo na sua porta, meu caro amigo. Vc se supera a cada crônica e consegue enriquecê-las com emoções e refinado trato da linguagem fácil de se entender. Parabéns pelas imagens perfeitas que cada parágrafo nos mostra, como a metáfora do “calafetar o barco de sua existência...fazendo água por todos os furos”. Genial...!
ResponderExcluirO texto, excessivamente forte para todos os atores que encenaram o espetáculo teatral NORDESTINOS À MILANESA, naquela manhã ensolarada do Verão de 1970, na Praia da Avenida, em Maceió, apenas ratifica a notável capacidade intelectual do autor de transformar lembranças de qualquer natureza, até mesmo as mais tristes, em verdadeiras obras de arte literárias. À época, no intervalo de apenas dois anos, aquela família interiorana vivenciou experiências inesquecíveis próprias da cidade grande, desde o primeiro banho de mar até a precoce despedida do ator principal. Uma pena que foram apenas intérpretes de uma grande obra, cujo desfecho trágico era de conhecimento apenas do Criador. Como diria o amigo Robério Soares "além do gosto de lágrimas, o mar em seu vai e vem também purifica e transforma noites tenebrosas en ensolaradas manhãs."
ResponderExcluirMais um texto singularmente escorreito, o que vai nos viciando - o bom e salutar vício existe - semanalmente.
ResponderExcluirSó que sobre esse aí não consigo falar muito, a emoção é muito forte pra mim.
Console-se, como acontece comigo, com a informação provinda da Ciência, conforme já acessei em alguns artigos por aí publicados, de que não há registro de um só caso de suicídio de pessoa de caráter pelo menos duvidoso.
Siga em frente, continue brilhando...
Belo texto, Hayton. Impecável!
ResponderExcluirRepleto de sentimentos! Lindo texto, Hayton!!
ResponderExcluirMeu caro amigo, imagino o quão difícil deve ter sido para você remexer essas lembranças. Por outro lado, não por acaso dizem que a dor é um excelente combustível para os poetas. Esta sua crônica, em particular, tem alma. Bela homenagem a "seu velho", antes imortalizado em sua memória, agora também nestas linhas gentilmente compartilhadas conosco. Ao lê-las, imediatamente me vieram duas lembranças... "A Felicidade Não Se Compra", película em preto e branco, dos idos de 1947, recomendado pelo amigo há alguns anos. Creio que o assisti umas três vezes de lá pra cá. A outra, que o pai de meu pai também partiu de igual forma, em contexto análogo, quando "meu velho" ainda era criança. Dividi sua crônica ele. Oportunamene, lhe participo as impressões. Forte abraço!
ResponderExcluirMeu Amigo, que maravilha de texto, retrato do coração e da alma. Na leitura refletimos sobre os desafios, grandes ondas que enfrenramos, a beleza da vida, com suas derrotas e vitórias como canta Lulu Santos: A vida vem em ondas como o mar, no jndo e vindo do infinito.......... .
ResponderExcluirNossa, Hayton, que texto lindo, toca no fundo da alma! Sem palavras!
ResponderExcluirUm belo texto, poético e ao mesmo tempo triste que me fez recordar o desaparecimento precoce do meu tio Agostinho. Emocionante mesmo. Tia Eudócia, mãe heroína, super mãe, forte, pés no chão soube criar muito bem a prole amada. Para mim, esta foi a crônica que mais me emocionou.
ResponderExcluirSaudades do mar… e do gosto de choro… lindo texto!
ResponderExcluirQue texto lindo Hayton. Mar com gosto de choro é uma idéia muito linda. Este texto me remeteu a infância vivida em Torres RS, estudava num colégio no.morro do farol com linda vista do mar. Ali.muitas e!és chorei vendo o mar uma infância que também me deixou cicatrizes em que pese ter sido linda. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirchoro com gosto de mar...troquei
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