Só no Brasil, todo ano 38 milhões de animais são retirados à força de seus habitats naturais, envolvendo anfíbios, aves, insetos, mamíferos, peixes, répteis, entre outros.
Os considerados menos agressivos (araras, chinchilas, iguanas, micos, papagaios, peixes ornamentais etc.) são os preferidos nesse mercado odioso, com preços ditados pela raridade, como se fossem pedras preciosas.
Enfim, aprendi que essa atividade criminosa provoca desequilíbrio ecológico, mexendo de forma dramática na cadeia alimentar, além de reduzir a biodiversidade de determinados ambientes. Mais grave ainda: 90% dos bichos traficados não sobrevivem ao transporte ou não se adaptam ao novo habitat.
Se, há 20 e poucos anos, fosse suficientemente esclarecido sobre a complexa equação biológica que garante a vida no planeta, não teria me transformado em mais um desses marginais, ainda que não tenha lucrado um centavo com meu único delito, já devidamente prescrito. Mas ganhei alguns trocados de carinho, reconheço. Já chego lá!
Logo após a virada do século, havia sido comunicado pela direção do banco em que trabalhava de que fora transferido de novo (sétima mudança interestadual, entre 1988 e 2000), agora da Bahia para o Distrito Federal. A ansiedade diante de mais um recomeço se instalou na sala-de-estar de minha família.
Para aliviar o desassossego, alguns amigos e amigas resolveram preparar um almoço de despedida na véspera da viagem, ocasião em que uma delas quis confortar minha filha, oferecendo-lhe uma inusitada recordação da Bahia: um par de filhotes de ajapás (quelônios de água doce, mais conhecidos como cágados).
Achei que minha filha fosse agradecer a gentileza e, com o jeitinho dela, explicar que não teríamos como, na viagem aérea marcada para o dia seguinte, transportar animais silvestres sem a devida permissão da autoridade competente.
Que nada! Tocada, imagino, pela profusão de sentimentos que vivia, percebi que ela abriu seu primeiro sorriso desde que soube que iríamos mudar de novo. Como o seu pai teria superpoderes – não para evitar o desconforto de tantas mudanças, claro! –, deve ter pensado: “Ele dará um jeito!”
Longe de mim, àquela altura, cobrar sensatez e argumentar que deveria deixar os pequenos animais com uma amiguinha que morasse numa casa com quintal e jardim, terra e grama, chuva e sol. Só provocaria uma nova enxurrada de lágrimas. Melhor, não.
Claro que bateu medo de ser detido no aeroporto e indiciado criminalmente pelo tráfico de animais silvestres. Óbvio que não seria possível simplesmente utilizar uma caixa de sapatos com furos, pois teria que passar pelo aparelho de raio X junto com as demais bagagens de mão, relógio, celular e chaves.
Como era grande o fluxo de pessoas entrando e saindo do terminal, imaginei que seria difícil para a administradora aeroportuária controlar a licitude e segurança de tudo que os passageiros traziam consigo. Sofrimento de filho nos faz elevar o sarrafo e saltar acima dos limites de nossa coragem (ou falta de juízo).
De propósito, deixei no pulso o relógio e coloquei um cágado em cada bolso do blazer. Pensei: dificilmente alguém vai desconfiar de que um cidadão grisalho, de óculos, barbeado, bem-vestido e cheiroso, com sua família, transporta escondido um par de pequenos quelônios.
Quando o alerta soou, a própria inspetora só me cobrou retirar do pulso o relógio e juntá-lo aos demais itens na esteira do raio X. Então, fiz apenas o que me foi solicitado, agradeci e segui em frente, juntando-me à mulher e aos filhos que já me aguardavam no corredor de acesso à zona de embarque.
Dentro do avião, aquelas criaturas silenciosas e bem comportadas foram transferidas para uma caixinha que sua “dona” havia carinhosamente preparado, inclusive com pequenos pedaços de frutas, para que a viagem transcorresse em paz. Uma refeição de bordo melhor do que a dos demais passageiros.
Foi desse jeito que um apartamento funcional no quarto andar de um prédio numa cidade fria e seca no Planalto Central, a mais de 1000 metros de altitude, virou criatório ilegal de animais silvestres.
Nunca mais! Tinha consciência de que a qualquer momento poderia receber a visita de emissários do Batalhão de Polícia Militar Ambiental, para resgate dos animais e competente autuação do aprendiz de traficante aqui. Mas cada dia com sua agonia, como diz um amigo meu.
Dois meses depois, os cágados pareciam acostumados com uma rotina nada silvestre, inclusive com a curiosidade de Lobão, mascote-chefe da casa que gostava de tomar banho de sol assistindo aos preguiçosos passeios dos dois nas floreiras de chão da área de serviços.
Mas não demorou muito. Um dia, do nada, eles partiram sem se despedir nem de Lobão. Mudaram-se, sem aviso-prévio, para o céu das criaturas inocentes arrancadas de seu habitat.
Não eram bancários. Nem todos sobrevivem a uma vidinha sem graça, repleta de mudanças inesperadas, tendo que conviver com seres supostamente humanos e racionais.