Todos os seres vivos, inclusive aqueles que são tidos como racionais, já nascem com certos reflexos, isto é, são programados para reagirem diante de algumas circunstâncias.
Quase todo governante, quando pressionado a explicar seus atos e omissões, desequilibra-se, fica tenso. Vê conspiração em cada canto e classifica as pessoas em dois grupos: quem o segue e quem o persegue.
No começo do século passado, o fisiologista e médico russo Ivan Pavlov andou treinando alguns cachorros para que salivassem sem que houvesse nenhuma comida por perto.
Funcionava assim: toda vez que oferecia ração, ele tocava um sino. Depois de alguns dias, os bichos passaram a associar as badaladas à comida. E babavam famintos só de ouvir o sino, mesmo quando as vasilhas estavam vazias.
Alex é um velho jornalista acostumado aos bastidores políticos do Distrito Federal. Outro dia me contou que guarda bem vivo um período tórrido de sua vida, embora não admita que se trate de memória "pavloviana".
Dizia ele que, em 1954, o suicídio do presidente Getúlio Vargas pautava o tom do noticiário da Voz do Brasil. Seus pais, durante semanas, assim que jantavam, corriam para o sofá da sala-de-estar e ali ficavam grudados ao rádio.
Quando soavam na abertura do noticiário os acordes iniciais da ópera O Guarani, do compositor Carlos Gomes, Alex, que tinha 12 anos, escapulia ligeiro feito um gato até o quarto dos fundos, onde encontraria Elizete, costureira que auxiliava a mãe dele, no calor de seus 17 verões.
No começo, o casal não tinha tanta prática naqueles movimentos exploratórios que já se nasce mais ou menos sabendo, mas o cotidiano no terreno das carícias mútuas favoreceu o avanço das manobras.
Desconfiada, a mãe de Alex toda noite especulava com o marido sobre o sumiço do filho, sempre no mesmo horário, ainda que duvidasse da astúcia de quem mal conseguira ser aprovado no exame de admissão ao ginásio.
O pai acabaria envolvido pelas conjecturas da mãe. O moído diário no ouvido fizera efeito. Um dia, abriu mão dos primeiros minutos do jornal radiofônico e seguiu o rebento para não ter que adotar medida mais drástica, desprovida de uma prova irrefutável.
Encontrou-o em atitude suspeita (alegação bastante comum, na era Vargas), nas apalpações preliminares daquela noite, a alisar as mãos de Elizete onde havia pequenas marcas de pano branco:
— Epa! Que diabo é isso?
— Nada do que o senhor tá pensando! — apressou-se a moça.
— Tô lendo a mão dela, pai — arriscou o menino.
— Deixe de ser mentiroso, cabra safado! Você é cigano, por acaso! Vá já pro quarto estudar!
Mas voltemos a Pavlov, que legou ao mundo a evidência científica de que o condicionamento de reflexos pode ser a base do comportamento humano e de vários problemas mentais.
Para ele, psicóticos sofrem mais do que as pessoas comuns justamente por causa disso. Eles enxergam qualquer estímulo externo — um comentário indesejado, por exemplo — como uma ofensa. E reagem, muitas vezes, de forma desproporcional.
Existe em vários países um suporte (com dinheiro público e privado) a blogs e perfis em redes sociais que foram condicionados a disseminar ataques à reputação de adversários, em represália a qualquer crítica que se faça ao establishment.
Esses pelotões de choque se aproveitam da inocência ou estupidez com que muitos embarcam na primeira canoa que passa e no engajamento que postagens desse tipo geram para fazer política de um jeito medíocre e perigoso, fragilizando a própria democracia.
Hoje, aos 80 anos, Alex nem parece um jornalista, com um papel importante numa nação carente em todos os sentidos como a nossa. Virou um desses “zé-vai-com-os-outros” e continua sem acreditar "nessa coisa de reflexo condicionado”. Nega a teoria pavloviana, mas diz que ainda fica "em posição de sentido, todo duro", quando escuta O Guarani.
O cabra safado segue mentindo. E ja não tem quem lhe mande pro quarto estudar e aprender que ciência não é opinião. É o que se aprende sobre como não se deixar enganar a si mesmo.
Essa HISTÓRIA do Alex, é a minha história, com as seguintes diferenças: era a novela Irmãos Coragem; ela a cozinheira; eu 11 verões...
ResponderExcluirAs aventuras alexianas servem em muitas carapuças. A tipificação do 'crime' e as penas, algumas vezes, não ficaram apenas na detenção no quarto de estudo.
ResponderExcluirPerfeito, Ademar, mas o efeito pedagógico de um quarto de estudos sobre a escuridão do cérebro lobotomizado de um negacionista continua sendo um santo remédio para resgatar uma alma perdida.
ExcluirPsicologia, fisiologia, o mesmo Brasil. Há coisas imutáveis, com instância. Tudo acaba se repetindo de maneira mais ou menos igual. Até a maneira furtiva de responder à realidade. Vemos o personagem central enredado em si mesmo, sem uma resposta legítima àquilo que o cerca. É mesmo assim. Só mudam as situações. Excelente ver desenhado mais um perfil.
ResponderExcluirCiência não é exata, mas nela se classificam aos olhos da opinião dominante.
ResponderExcluir"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Mas Pavlov tinha razão: A POLITICA É A ARTE DA ENGANAÇÃO.
Nela se "classifica".
ExcluirDenise é filha do Alex. Eu a conheci por acaso, brigada com o pai, numa época em que ela ainda vivia suas Utopias de igualdade e eu me aproveitava disso para fazer a revolução sexual, a única que a Ditadura tão cara ao pai, nos permitia.
ResponderExcluirHoje ao vê-lo como sócio da tragédia sinto uma espécie de alívio que só a vivência traz: saber que a História não fala dos covardes, nem a hereditariza. Dedé Dwight
Epa! Epa! Criei um personagem e suas circunstâncias ficcionais e você me aparece aqui achando que se trata de fatos reais? Qualquer semelhança com a realidade é só coincidência, Dedé!
ExcluirJá que a costureira foi citada, uma bela costura do Hayton entre Pavlov, negacionistas e paranóicos desmiolados. No caso do boquirroto, nem dá pra alegar que fomos enganados …
ResponderExcluirFake News, lobotomia, negacionistas e outras excrescências exigem o máximo das forças de cada um de nós. Não vamos perder essa batalha. Parabéns, Hayton, pelo texto!
ResponderExcluirS. FREIRE
Cada história um perfil diferente. Viva sua memorável memória, parabéns por mais um excelente texto, rico em sua intertextualidade. Um abraço
ResponderExcluirO pior é os pais, ainda hoje, fazem de conta que acreditam nas explicações dos Alexs. Pior pior é que muitos acreditam de verdade.
ResponderExcluirKkkkkk
ResponderExcluirParece verdade, mas não deve ser mentira.
Ótima!
Alex, hein???????????
ResponderExcluirMais uma pérola que você produz pra dar uma cutucada em quem bem merece.
Como você mistura bem ficção com pitadas de realidade, haja energia mental!!!!
Um dia aínda lhe processarão...
Extraordinário Hayton!👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirAlex desde pequeno imaginava que enganava seus pais. O uso do cachimbo entorta a boca. O coitado viveu boa parte de sua vida tentando enganar os outros. Hoje no fim da vida continua enganando alguns... Tomara que por pouco tempo!
Nesta crônica cabe uma relação grande de produtores, muitos que embarcam nesta onda. Esperamos que caia as cortinas.
ResponderExcluirEsses seus causos me leva sempre a viajar no tempo, no caso dessa crônica que me fez recordar meu pai, que tinha um rádio no seu escritório de contabilidade no qual todas as noites ouvia uma radionovela de nome "Jerônimo, o herói do sertão", Rádio Globo. Logo depois grudava o ouvido para acompanhar a resenha esportiva. Era um grande rádio AM, que não pegava com clareza, mas era o que tínhamos na época. Parabéns pela crônica de hoje. Sou fã!
ResponderExcluirTá cada vez melhor e mais intrigante ler as crônicas em momentos tão obscuros vividos em nosso país. Parabéns
ResponderExcluirAssino embaixo! Documentos históricos. Vão entrar para os anais.
ExcluirALEX sargento GARCIA. Este, condenado aos seus reflexos condicionados, a mentir, enganar e levar incautos aoerro. Aquele, um verdadeiro pateta. Completam-se num só. Ops, numa só "mera coincidência ", kkkkkkkkk
ResponderExcluirFicção ou realidade? Infelizmente, a pura realidade da enganação premeditada e inescrupulosa, do Alex da crônica, que por pura "coincidência" tem CPF e identidade, e outros tantos mais!
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns por mais um texto que nos faz viajar e questionar! Grande abraço.
ResponderExcluirPor aí dá pra se entender as manobras das massas. Cães treinados? Mas se dizem cidadãos de bem. Muitos não têm discernimento para entender o dia de amanhã. Aí fica mais fácil. Pena. Mas esse Alex... safadinho ele né...
ResponderExcluirPra variar...Muito bom Hayton
ResponderExcluirEntre novelas, GNTs, Globos e outras existem vários Pavlovianos treinando seus cães babentos pela ração de cada dia.
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