Apesar do clima de casa-de-mãe-joana reinante entre nós, quem parece nunca perder dinheiro são os bancos. Lembram o joão-teimoso, aquele boneco de borracha ou plástico com base abaulada onde se concentra a maior parte de seu peso, o que o leva de volta à posição vertical a cada tentativa de derrubá-lo. Aplica-se também ao líder político da predileção de cada um.
Problemas como conexão remota “fora do ar”, cartões de crédito não solicitados, juros abusivos, tarifas exorbitantes, portas discriminatórias etc., ainda tiram os clientes do sério. Mesmo assim, não dá para comparar o sistema bancário clássico ao universo da agiotagem e seu repertório de perversidades.
Digo isso porque, depois de mais de 40 anos lidando com atividades financeiras, eu seria capaz de jurar que tinha visto tudo. E só agora, aposentado, fiquei sabendo de um caso que deixa qualquer pessoa de queixo caído.
A esta altura da vida, já calejado pelo desenrolar dos costumes, não tenho o direito de me escandalizar com nada, mas esse caso me levou a refletir: os preços realmente estão pela hora da morte! A seguir nessa marcha, aonde vai dar a humanidade?
O valor total da dívida era de quase R$ 100 mil e a Justiça já tinha admitido o pagamento na forma desejada pelo cidadão, desde que houvesse consenso entre ele e a ex-cunhada. Isso dito da boca pra fora (sem trocadilho, por favor!), óbvio.
Depois, entretanto, ela recorreu de novo à Justiça, após a suspensão do inusitado pagamento de prestações. O credor teria exigido que o resto fosse pago em moeda corrente.
Ilustração: Umor |
Como a mulher nunca procurou as autoridades para denunciar o homem por coerção sexual ou coisa do gênero, a Justiça concluiu que os atos foram consensuais entre as partes envolvidas e arbitrou que a dívida estava extinta, ainda que não houvesse um recibo com firma reconhecida, dando plena, rasa e irrevogável quitação. Isso após a mulher esclarecer que só prestara queixa porque recebeu uma ligação do ex-cunhado cobrando o restante.
Para mim não ficou totalmente claro quem fazia o quê, como, quando e onde. Na minha falta de malícia, enxerguei apenas o quanto e o porquê.
Pode-se indagar, portanto: e se as posições de credor e devedora estivessem invertidas – em todos os sentidos, se é que me faço entender! –, será que a notícia teria se espalhado com tanto estardalhaço, ou o barulho tem a ver com os torpes sentimentos de aversão, repulsa e desprezo pelas mulheres e pelos valores femininos, no contexto da misoginia enraizada entre os trogloditas?
Pensei rabiscar breve crônica sobre a ocorrência. Já tinha até escolhido o título, numa alusão ao mais antigo recinto de transações bancárias (a plataforma de pagamentos e recebimentos): “Na boca do caixa”. Desisti para não criar constrangimentos em alguns leitores e leitoras mais sensíveis, nem ferir o decoro literário que me imponho para preservar a castidade de quem ainda se interessa pelos meus textos.
E não pretendia mais tocar no assunto, porém começaram a martelar em minha cabeça algumas sentenças inesquecíveis da obra do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, pela atualidade com que já abordava, ainda na metade do século passado, os mistérios insondáveis das relações humanas:
"Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam."
“Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava.”
“O que dá ao ser humano um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões.”
“Hoje, é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.”
“O dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.”
Agora me pego mergulhado em conjecturas sobre como seria o manual de procedimentos desse tipo de negócio num banco tradicional. Quem seria o responsável pela avaliação da capacidade de pagamento, antes da formalização do contrato? Que tipo de checklist seria elaborado pela área de controles internos para avaliar a qualidade da operação pactuada? E o roteiro de auditoria estabelecido para checar a aderência da transação com as regras normativas? E como as autoridades monetárias classificariam esse tipo de negócio, caso seja dispensado documento formal e fique tudo na base do boca-a-boca ou do fio do bigode? Seria considerado um empréstimo de liquidez garantida ou a fundo perdido? Sei não...
É duro admitir que a mercantilização do corpo ainda esteja acontecendo no planeta em que vivemos, onde o dinheiro, pelo visto, não só continua falando alto, como também fazendo muita gente calar a boca. Literalmente, inclusive.
Como qualquer pessoa – exceto as quase perfeitas, que nunca as encontrei, mas devem existir –, penso que o ser humano talvez ainda tenha uma chance de dar certo. Noutra galáxia, quem sabe, devidamente reciclado. Feito lixo.