Não se abandonam os amigos
Na fábula Os viajantes e o urso, de Esopo, dois amigos topam na floresta com o bichão peludo e bravo. O primeiro se salva escalando às pressas uma árvore, mas o outro, sabendo que não conseguiria enfrentar o animal que se aproxima, joga-se no chão e finge estar morto. A fera começa a farejar suas orelhas frias de pavor, porém, convencida de que a presa estava morta, perde o interesse e vai-se embora. O amigo então desce da árvore e pergunta:
– O que o urso tanto cochichava em seu ouvido?
– Ora, ele só me alertava para pensar duas vezes antes de sair por aí com gente que abandona os amigos na hora do perigo.
Esopo foi um contador de histórias populares que viveu entre os séculos VII a.C. e VI a.C. na Grécia Antiga. Tornou-se famoso com narrativas que ganharam o mundo pela tradição oral, como “A Lebre e a Tartaruga” ou “A Raposa e as Uvas”. Suas fábulas, utilizadas na educação infantil de várias gerações, são protagonizadas por animais que assumem comportamentos humanos. São alegorias: através delas, pretende-se refletir e repensar condutas.
Com a chegada do Natal e com tanta gente já vacinada, é época de reencontros entre familiares e amigos. Época fértil, inclusive, em hipocrisia. Muitos se dizem amigos, mas desconheço termo mais banalizado ultimamente que esse. Só mesmo Roberto Carlos achou que poderia ter um milhão de amigos, e isso em meados dos anos 70, bem antes do surgimento de redes sociais. Exagero, claro, até para quem é tido como rei.
Nunca tive muitos amigos. Não me resta sequer um colega de infância, em parte por conta das mudanças que fiz, acompanhando meu pai em suas atividades profissionais. Da adolescência, ainda revejo dois ou três, se tanto, mas sem a sintonia nem a frequência de antes.
Depois de adulto, não mudou muita coisa. A sina de cigano seguiu adiante, agora por causa de meus próprios afazeres. E mesmo tendo morado em cinco cidades, conhecido centenas de pessoas, todos os amigos que fiz na vida cabem dentro de meu velho jipe.
Millôr Fernandes alertava que “a verdadeira amizade é aquela que nos permite falar, ao amigo, de todos os seus defeitos e de todas as nossas qualidades”. Certamente porque, para ele, os “amigos poderão não saber muitas coisas, mas sabem sempre o que fariam no nosso lugar”.
Dizem que nossas desgraças são bem mais suportáveis que os comentários que os amigos fazem sobre elas. Desconfio, por isso mesmo, de que a amizade com os companheiros de viagem de meu velho jipe não resistiria se eu soubesse do que falam a meu respeito nas minhas costas. Só me resta fingir ser meio cego, meio surdo e meio mudo. Eles também, claro.
Nietzsche, filósofo que abusava de ironias ao criticar a religião, a moral e a cultura de seu tempo, afirmava que “as mulheres podem tornar-se facilmente amigas de um homem; mas, para manter essa relação, é indispensável o concurso de uma pequena antipatia física”. Tendo a discordar, mas sem muita convicção, confesso.
Não sou tão irônico quanto o Marquês de Maricá, para quem “a amizade mais perfeita e mais durável é somente aquela que contraímos com o nosso interesse”. Ou o Barão de Montesquieu, que dizia: “A amizade é um contrato segundo o qual nos comprometemos a prestar pequenos favores a alguém a fim de ele nos prestar grandes”. Ou ainda Nelson Rodrigues, que anotou: “Só o inimigo não trai nunca. O inimigo vai cuspir na cova da gente". Mais uma vez, tendo a discordar dos pensadores, porém sem muita convicção.
Tinha certeza, isto sim, de que Vinicius de Moraes – aos poetas, tudo é permitido! – exagerou ao dramatizar o assunto: “Que morram todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem os meus amigos, pois não há nada mais precioso do que uma amizade verdadeira”. Mais tarde, ele deixou claro a que se referia: “O uísque é o melhor amigo do homem, é um cachorro engarrafado!”
Sobre Vinicius, aliás, ouvi do próprio Toquinho – seu companheiro de viagem por mais de uma década –, numa daquelas confraternizações corporativas que acontecem no mês de dezembro, que o Poetinha, eufórico após uma apresentação na Patagônia argentina, certo dia o acordou às cinco da manhã, perplexo com a beleza dos primeiros raios de sol sobre as montanhas geladas de Bariloche:
– A vida é muito contraditória!
– Vamos dormir, pô! Do que você tá falando?
– Veja: como isso é possível? Tanto gelo... E tão pouco uísque!
Garrafas à parte, neste Natal, sob a teimosa ameaça da peste que nos afasta ainda mais dos companheiros de viagem que restam, bateu uma tristeza danada ao lembrar de alguns que partiram de repente. Eles não aprenderam, quando crianças, que não se abandonam os amigos na hora do perigo.
Eu já digo que amigos, poucos ou muitos, são aqueles que nos toleram " apesar" de nossos defeitos!
ResponderExcluirPura verdade, os anos vao passando, a quantidade de pessoas que conhecemos aumentam, mas a de amigos no sentido completo da palavra nao
ResponderExcluirBoa crônica,para refletir neste período de tantas provações.
ResponderExcluirExcelente.
ResponderExcluirConsiderando que não tenho um velho Jeep de capota surrada os meus amigos transitam comigo na carroça de burro que utilizei para "botar água de casa em casa" na minha minúscula Jabitacá. Feliz Natal e continue nos dando o presente da crônica semanal.
ResponderExcluirExcelente crônica! Gosto muito desta frase: “o tempo não faz você perder amigos, faz você entender quais são os verdadeiros”.
ResponderExcluirBela crônica, boa para reflexão, principalmente na época do ano e atual pelas circunstâncias que passamos. Só senti falta, como sempre tem citações musicais em muito de seus textos, de mencionar Fernando Brant e Milton Nascimento, pela bela "Canção da América", que tão bem definiu o termo "amigo".
ResponderExcluirMuito boa, crônica que Nos leva a reflexão e a busca dos amigos. Percebemos que a quantidade obtida não é, nem de perto, o que pensamos. Vamos que Vamos!
ResponderExcluirNós somos amigos. Sim, somos. Brigamos, discutimos, concordamos e, às vezes, não. Somos amigos de nós mesmos. Nesse podemos colocar toda nossa amizade porque eu não nos abandona nunca.
ResponderExcluirCrônica excelente, com final apoteótico. A escrita fluiu como música boa aos ouvidos. Mas o arremate é digno de nota. Tudo verdade verdadeira e muito bem dita. Parabéns.
ResponderExcluirÓtima crônica. Espero que continue escrevendo de modo a sempre deixar alguma coisa pra reflexão. Que as palavras sejam amigas das ideias e andem entrelaçadas. Feliz Natal para você e sua Família.
ResponderExcluirUm texto memorável e sábio. Parabéns Hayton por esta reflexão que é um presente para o pensar, um belo presente de Natal. Anchieta e Fátima.
ResponderExcluirNão é à toa que a Canção da América diz que "Amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito debaixo de sete chaves." Deve ser porque ali o espaço é bem apertado. Reflexiva crônica. Um Feliz Natal e um Venturoso Ano Novo, de preferência encontrando, de vez em quando, o(s) amigo(s) que restou/restaram.
ResponderExcluirHayton: não me canso de admirar sua inteligência privilegiada ao lado de sua cultura soberba, amalgamadas por sua forma ímpar de traze-las ao deleite dos amigos...Feliz Natal e tudo de bom ( sem hipocrisia...lembrando: você não é mais meu chefe.
ResponderExcluirRsrsrs...aqui vai um pensamento jocoso/irreverentissimo :" o saco do Chefe é o corrimão da Vida.." .rsrs..grande abraço...
Outra belo trabalho literario, muito apropriado para época de festas e confraternização. Com toda a certeza, propiciar uma reflexão dessas é marcante em qualquer nível de relação de amizade.
ResponderExcluirMeus agradecimentos
Correto, caro Hayton... Principalmente nesta época do ano, é que muitos "amigos" são lembrados. Poucos são os que cabem no "jipe"... Mas, alguns, talvez pela distância física, não alcançam o "jipe" ou são "bloqueados" pelo bombardeio diário das inúmeras mensagens eletrônicas que impedem a visualização tempestiva das enviadas por amigos que caberiam no "jipe"... Mas, como estamos na época de lembrarmos de muitos, vai nosso abraço a todos, com votos de muita paz e alegrias nas festividades que nos remetem ao nascimento do Deus Menino e ao início de um novo ano. Forte abraço.
ResponderExcluirSensacional. Como sempre,genial as suas crônicas. Lembra em muito o escritor Erico Verissimo. Parabéns.
ResponderExcluirSensacional.Como sempre, genial as suas crônicas. Lembra em muito o escritor Erico Verissimo. Parabéns.
ResponderExcluirCrônica para guardar entre as melhores que você escreveu (até agora!), cheia de reflexões, rica em citações, amarga às vezes e com pitadas de tristeza, ironia -- sentimentos! Gostei muito!
ResponderExcluirSensacional, e acredito que todos que leram foram buscar na infância e na juventude as amizades que ao longo do tempo foram se perdendo, pelos mais variados motivos. Mas é isso aí, vida que segue e com novas amizades que vamos adquirindo no decorrer da vida.
ResponderExcluirÉ muito complexo e pessoal o “ser amigo“. Cada qual com as suas experiências e vivências. Prefiro ser mais romatntico e acreditar “que amigo é pra se guardar do lado direito do peito” e ponto.
ResponderExcluirFalou pouco, falou bem (e não cuspiu em ninguém!)!
ResponderExcluirRaso, mas profundo!
Oportuna reflexão!
De um leitor que não conseguiu postar o comentário:
ResponderExcluirSensacional essa junção da conclusão remetendo ao início do texto, fazendo, de quebra, uma costura com o corpo textual.
Você é um mestre no poético desfilar dos casos que conta.
Mesmo não estando dentro dos passageiros do seu jipe, sou sincero ao lhe desejar um Feliz Natal, muita saúde e vida longa, para deleite dos seus leitores (eu, inclusive)
Parabéns.
José Santana
Obrigado, José Santana, pelos votos. Tenha certeza de que são recíprocos. Quanto ao velho jipe, é feito coração materno: cabem sempre mais dois ou três, sem riscos de aglomeração.
ExcluirAmigo! Palavra que denota ternura, alegria, cumplicidade na vida de quem o tem. Graças a Deus conquistei alguns ao logo da minha trajetória, inclusive o autor dessa obra maravilhosa. Obrigada amigo por existir e fazer parte da minha história.
ResponderExcluirSão mais de 20 anos compartilhando alegrias e tristezas, sonhos e a dura realidade possível, minha amiga querida. Você e Aguilar ocupam um generoso espaço em meu coração.
ExcluirSe fingir de morto pra ganhar sapato novo - e, às vezes até sobreviver -, pode ser uma alternativa. Entretanto, há os que se fingem de mortos pra comerem o cu do coveiro. Esses são perigosíssimos. Fugir desses é preciso. Parabéns!
ResponderExcluirMestre Hayton, nem sabia que vc tinha um velho Jipe só pros os amigos...!!! Como sempre vc nos daa de presente uma deliciosa leitura! brigado. Um grande natal e um novo ano de muita alegria e muita inspiração! Tiberio
ResponderExcluirOs verdadeiros amigos, são os certos, nas horas mais incertas...
ResponderExcluir" Não se abandonam os amigos"
" Ser amigo, é esquecer distâncias, é saber que mesmo a milhares de quilômetros há alguém pensando em você...
Obrigada Hayton, por nos presentear com essa bela crônica!
Fica a reflexão...
Feliz Natal e um próspero Ano Novo para você e sua família.
Maria de Jesus A.Rocha
ResponderExcluirAmigo, muito obrigada pela bela reflexão. Eu gosto de pensar que tenho um ônibus cheio de amigos. E, também, que amigo é aquela pessoa com quem sei - ou penso que sei - que posso contar. Conte sempre comigo! Feliz Natal!!
ResponderExcluirSó pelos comentários que lemos aqui, dá pra constatar que Hayton conseguiu provocar reflexões em todos nós.
ResponderExcluirA autocrítica que faço agora é que talvez eu tenha superestimado a palavra amigo ou amizade ao longo da minha vida.
Será que é mais importante o sentimento que dedico e reservo a poucos eleitos (os que cabem no “meu jipe”) ou retrataria melhor quem sou a atenção e o carinho que consigo trocar com todas as pessoas que - mesmo que seja por breves períodos - dividem ou dividiram a vida comigo, seja no trabalho, na escola ou em qualquer outra circunstância?
A ver! Rsrs
Sim, meu caro Riede, na maioria das vezes somos frutos da atenção e do carinho que conseguimos despertar nas pessoas que convivemos, embora algumas, por crueldade (ou simples indiferença), nos larguem no escuro quando mais necessitamos da luz que emana delas. Não é o nosso caso, claro! Rsrsrs…
ExcluirOs amigos que colecionei ao longo da minha viagem talvez caibam em DOIS jeeps! Mas, por precaução e ouvindo o Vinícius de Moraes, mantenho algumas garrafas de whisky no meu bar!
ResponderExcluirFeliz Natal, meu caro Hayton, e um Ano Novo melhor do que foi este!
Abração!
Abbehusen
Verdade.Valiosa lição, a de Esopo. Não se abandona um Amigo na hora do perigo. Por outro norte, Li certa vez,em "uma sabedoria de boteco": Nunca fiz amigos bebendo leite. "Seguidores". Sinto que essa palavra guarda mais generalidade que a banalização do "amigo". Ela encerra no seu sentido novo, creio, uma quase divindade a realçar aquele que é seguido. Ouvi certa vez uma pergunta: Você segue alguém na Internet? respondi: Não. Mas, se fosse que seguir alguém, seria Antonio Conselheiro...
ResponderExcluirSe escolher a crônica do ano já não é uma tarefa fácil, em razão da elevada qualidade dos textos publicados ao longo do período, "NÃO SE ABANDONAM OS AMIGOS" seguramente já conquistou a medalha de mais oportuna, por tratar de tema tão relevante na semana em que celebramos o nascimento do Menino Jesus. De fato, são milhões de pessoas com as quais nos deparamos em nossa trajetória terrena, porém não necessariamente amigos. À lista de citações do texto, permito-me acrescentar o seguinte pensamento do padre Fábio de Melo:
ResponderExcluir- Costumamos dizer que amigos de verdade são os que estão ao seu lado em momentos difíceis... Mas não! Amigos verdadeiros são os que suportam a tua felicidade! Porque em um momento difícil qualquer um se aproxima de você, mais o seu inimigo jamais suportaria a sua felicidade.
Também sou de poucos amigos, mas os que tenho, tenho certeza de que, sem qualquer interesse, fariam por mim o que sou capaz de fazer por eles. Quem compreende o que é amizade sabe que ela vai além, muito além da admiração recíproca. Um abraço meu amigo.
ResponderExcluirTu extrapolas, sempre e como!!
ResponderExcluirPara discorrer sobre tudo que penso sobre amizade, lealdade e que tais, teria eu que ter a capacidade de compor um texto - e certamente ocorreria em uma prolixidade insuportável.
Sob minha avaliação essa crônica pode compor qualquer compêndio que contenha um tratado filosófico, também sociológico, para formar mestres e doutores nas matérias.
Que em 2022 você continue nos "importunando" assim...
"Faça uma lista de grandes amigos
ResponderExcluirQuem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais. "
Essa canção de Osvaldo Montenegro mostra muito bem quanto a amizade é transitória ao longo do tempo; mas a verdadeira amizade permanece, como diz a cancão de Milton Nascimento: amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves ... do lado esquerdo do peito.
Realmente o melhor conceito de amigo é... não sei... Crônica deliciosa para ser lida neste final de ano, quando a pandemia insiste em vencer as vacinas e vice-versa. Das melhores escritas pelo Hayton. Ri muito e entristeci em algumas passagens. Nota 1000.
ResponderExcluirLi no dia penúltimo dia do ano. Trouxe leveza em em sorriso ao meu semblante. Gratidão 🙌
ResponderExcluirPaulo Francis dizia que no Brasil não havia escritores intelectuais, com exceção, entre poucos, de Machado de Assis. Pois bem, suas crônicas estão deixando o dia a dia de um contador de estórias, para o psiquismo, a filosofia de vida. Está sublimando para o cultural. Para o Machado de Assis de ‘O Alienista’.
ResponderExcluirParabéns pela forma com que manuseou ironia, sarcasmo e desencanto. Poucos conseguem escrever assim e ainda nos divertir e fazer refletir. Excelente!
ResponderExcluirSergio Freire
Tomei a liberdade de publicar uma poesia sobre o tema:
ResponderExcluirAMIGO!
Amigo, não é só pedir, servir, sorrir.
Dividir
Amigo, não é só falar, caçar, cantar.
Calar
Amigo, não é só fazer, correr, prometer.
Crer
Amigo, não é só ter, beber, entreter.
Tecer
Amigo, não é só ajudar, chamar, bajular.
Clamar
Amigo, não é só dó, o melhor, tirar o pó.
Deixar só
Amigo, não é só pedir, servir, sorrir.
Dirimir
Amigo, não é só falar, caçar, cantar.
Chamar
Amigo, não é só crer, correr, prometer.
Fazer
Amigo, não é só ter, beber, entreter.
Acontecer
Amigo, não é só ajudar, chamar, bajular.
Clarear
Amigo, não é só pó, mocotó, gogó.
Melhor
Amigo, não é só gostar, papear, garimpar.
Conquistar
Amigo, é mensurar, reclamar, censurar.
Cuidar.
Amigo, é mensurar, acatar, viabilizar.
Abraçar!
didi99