quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Por alguns punhados de dólares

 Menino ainda, ele saía do cinema nas matinês de sábado com um toco de cigarro de mentira no canto da boca, as pernas arqueadas e as mãos prontas para sacar revólveres imaginários, rolar os gatilhos nos dedos fura-bolos e disparar contra bandidos fantasmas. Na sequência, com o olhar gelado, soprava a fumaça do cano das armas e seguia adiante. Ao fundo, ouvia-se o assobio da trilha sonora de “Por um punhado de dólares”.

 


Para o menino, no Velho Oeste tudo se resolvia na bala ou na ponta do punhal. Lugar de ladrões ousados que saqueavam em plena luz do dia, ávidos por, nas horas de folga, violentar as donzelas mais formosas. Terra também de dançarinas ruivas e voluptuosas nos 
saloons e de caubóis de bravura indômita, inclusive contra pele-vermelhas que resistiam em desocupar áreas de garimpo de pedras preciosas. 


Ele cresceu. Aprendeu nos livros que o Velho Oeste era bem diferente daquilo que os filmes davam a entender.  Que, na verdade, as únicas terras ocupadas ficavam no Leste norte-americano até a metade do século 19, entre o oceano Atlântico e o Mississipi, rio de 6.270 km que corta o país, de Norte a Sul, em pedaço equivalente a um quarto do território atual. 

 

O avanço para além do Mississipi aconteceu apenas por volta de 1848, com a descoberta de ouro na Califórnia. Menos de 20 anos depois, surgiu a lei federal que concedia terras a quem se dispusesse a ocupá-las por pelo menos cinco anos. E a região começou a ser povoada. 

 

No começo, as cidades não tinham prefeituras, delegacias nem tribunais. Vem daí a lenda de matadores cruéis e baderna generalizada? Mas os assentamentos eram rigidamente controlados pelo governo, obrigando-se os pioneiros a remeter mapas e documentos propondo o reconhecimento de seus domínios. 

 

Depois, foram criadas regras locais, instituindo-se os poderes independentes e harmônicos entre si (legislativo, executivo e judiciário) para, segundo a teoria de Montesquieu, afastar o risco de governos absolutistas e evitar a edição de normas tirânicas. 

 

O menino virou sessentão grisalho, cheio de dores, dúvidas e netos. Já não acredita nas peripécias de Django, Pecos e Trinity no Velho Oeste. Aliás, ele me contava, outro dia, que está ultimando uma peça teatral sobre a disputa à prefeitura de próspera cidadezinha à margem do rio Mississipi. 

 

De cara, o autor me disse que qualquer semelhança com a realidade é absolutamente proposital. Concorrem ao cargo um ex-prefeito sentenciado (Django) e o xerife que o prendeu (Pecos), além do atual alcaide (Trinity), eleito há três anos como o paladino do combate à corrupção. 


Cada candidato é totalmente diferente dos outros dois, mas com o mesmo teor de acidez e sem qualquer pastilha de hidróxido de alumínio à mão. Nessa dança de lobos, só não vale botar a mãe no meio. Ela não tem culpa do que sobrou daquilo que pariu e mamou em seus peitos.

 

Há quatro anos, Django puxou cadeia braba por obra do xerife Pecos, que se jacta de haver recuperado para os cofres da prefeitura bilhões de dólares de corruptos confessos. Mas, confirmada a obtenção irregular de algumas provas, Pecos teve seus atos anulados pela Justiça, ensejando a libertação de Django.

 

Ao pé da letra, em julgamento restrito a um dos processos (de vários em andamento), as comportas foram abertas para uma enxurrada de anulações e prescrições, libertando-se inclusive outros condenados que, serelepes, já batem as asas por aí se passando por anjos de candura.

 

A Justiça, contudo, garante que o processo que deu origem à bagunça foi apenas transferido de jurisdição e que caberá ao juízo competente decidir se aproveita as demais provas existentes. Ocorre que ninguém na cidadezinha acredita nisso.

 

Pecos escondeu suas pretensões enquanto ostentava uma estrela no peito, mas logo topou se juntar ao grupo de Trinity. Expulso da panela numa briga interna de egos, é visto como traidor pelo ex-chefe e seus asseclas. E Django, na mão inversa com seus sectários, o acusa de tê-lo condenado apenas para evitar que vencesse as últimas eleições.


Corre então o boato de que eventual vitória de Django será atribuída à Justiça, que o teria recolocado no jogo apenas para inviabilizar a reeleição de Trinity. É aí que Pecos entra novamente em cena, ungido por donos de grandes jornais, ranchos e bancos, interessados numa alternativa ao duelo entre Django e Trinity. Torce pelo tipo de troca de tiros em que os dois caiam simultaneamente. Algo que a física tem dificuldade de explicar, mas comum naquele meio.  


O autor só não sabia ainda como encaixar na história o destino de bilhões de dólares recuperados de corruptos confessos. A quem devolver a dinheirama confiscada sem provas irrefutáveis dos crimes? Como utilizar numa finalidade justa e inadiável?


Decidiu pedir minha opinião. Não sou mais bancário nem especialista no tema, mas propus que a grana seja direcionada para a compra, em verdinhas, de um lote de vereadores reconhecidamente sem-vergonhas. É preciso assegurar a governabilidade do próximo governo. 

 

O autor gostou da dica, porém ainda luta para encontrar interessados na produção do espetáculo teatral. Talvez consiga montá-lo abaixo da linha do Equador, onde, dizem, não existe pecado, mas os ladrões continuam saqueando em plena luz do dia.

21 comentários:

  1. Deus nos Defenda desse retorno ao voto de cabresto!! Os " beiradeiros" atualmente fazem uso de celulares, comprados ou subtraídos,até aproveitando o wi-fi do vizinho não se deixarão enganar como antigamente!!Eu CREIO!!!!

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    1. Não convém misturar a ficção com a realidade. Isso é coisa de gringo! Nada a ver com nossa Sucupira amada.

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  2. qualquer semelhança com a realidade é absolutamente verdadeira.

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  3. Com toda certeza, ao final da peça, Trinity, Django e Pecos irão ali no salloon beber cerveja, mesmo que quente, e rir à beça da audiência que, atônita com a peça shakesperiana ainda sorri, mesmo depois de ser espoliada pelos lanterninhas do teatro.

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  4. O duelo só não pode ser fiscalizado pelo juiz da comarca

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  5. Parabéns pela analogia com os tempos atuais! 👏🏻👏🏻

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  6. Enio Morricone, se vivo estivesse, certamente seria sondado para fazer a trilha sonora desse faroeste tupiniquim. Mais uma crônica a nos fazer viajar por nossas memórias da infância, ainda que com uma dose amarga da realidade na qual estamos atualmente inseridos. Bravo!!!

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    1. Nos salões dos bailes que correm por aí um assecla do rei toca sanfona. Está a habilitado para fazer a trilha sonora.

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  7. Ainda bem que esse enredo não é tupiniquim. Ufa!!

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  8. Incrível a sua capacidade de traduzir em obra literária a nossa dura realidade! Fantástico!!

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  9. Mesmo reconhecendo a coerência do texto com certa realidade, em nome de centenas de livros, dezenas de filmes faço uma observação. "No velho oeste as traições eram reduzidas."

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  10. Ainda bem que o menino virou um sessentão cheio de dúvidas, dores e netos. Imagina se fosse cheio de dívidas? Se bem que, como dizia aquele conselheiro de tudo o que foi alcaide por aqui, "dívida não se paga, administra-se". Alguma dúvida quanto a isso? Tenho certeza que não.
    Em tempo: desconfie de quem tem certeza de tudo.

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  11. A gente não sabe se é pra rir ou pra chorar... fica por conta dos expectadores...

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  12. Que Beleza, o que parece ficção é a história recente. O espetáculo teatral, após seu lançamento, penso terá como sequência a telinha.

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  13. Boa Noite, caro amigo Hayton...
    Sua crônica desta semana resumiu o sentimento de muitos e trouxe os leitores para uma realidade que alguns insistem em não enxergar...
    Haja verdinhas para o espetáculo que se avisinha...
    Forte abraço.

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  14. Muito criativo, Hayton, imaginativo! A analogia ficou muito interessante. Só tive pena do Trinity verdadeiro que não merecia papel tão vil atualmente!

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  15. Eita, e as opções de futuro mandante são escassas. Hayton vc caminhou bem na ficção amoldando-a à realidade. Nunca Django, foi muito maquiavélico e perverso.

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  16. Normalmente se utiliza o termo inqualificável na forma pejorativa, até porque o dicionário assim o define.
    Eu respeito mas discordo um pouco, há coisa tão bem feita que falta adjetivo pra defini-la com justiça.
    Essa crônica sua é uma delas, o texto correto, perfeito é lugar comum em seus escritos, agora, a capacidade criadora, a forma quase romântica e poética como aí postado, bloqueia nossa capacidade de expressar a empolgação.
    Pindorama não lhe merece...

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  17. Essa crônica nos remete às revistas publicadas pela Editoral Ebal, como Zorro, Búfalo Bill, entre outras. Esse Hayton e sua criatividade já está consagrado nas suas estórias. Gosto muito.

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