quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Fantasmas não existem


Nomes agora não vem ao caso, mas tudo aconteceu ali na metade de 2002. 

Minha secretária sentiu-se aliviada quando lhe pedi que passasse a ligação telefônica de uma mãe desesperada, a dizer que só faria uma denúncia gravíssima se falasse diretamente com o diretor.

– Bom dia, posso ajudá-la?
– Não acredito! É o senhor mesmo?
– Claro. Pode falar, por favor.
– O senhor sabia que meu filho está perdendo o emprego porque é negro?
– Isso é muito sério. Conte mais, por favor.
– Ele é bom filho, estudioso, inteligente, mas trabalha no meio de gente metida a besta... Sofre muito. Sabe que vai ser demitido.
– Qual o nome completo dele? Vou ver o que está acontecendo e falo de novo com a senhora ainda hoje.
– Moço, me ajude! Meu filho não pode perder esse emprego. A gente é pobre, ele é nossa esperança...

Vi que se tratava de funcionário no último mês do chamado estágio probatório de 90 dias – processo que visa aferir se a pessoa aprovada em concurso público possui aptidão e capacidade para o desempenho do cargo no qual ingressou – que antecedia o ingresso em definitivo na empresa.


Morador de Samambaia, fora chamado rigorosamente dentro da ordem classificatória de aprovação no concurso público.  Preencheria vaga na unidade instalada no Itamaraty, Esplanada dos Ministérios, em Brasília.


A cidade-satélite de Samambaia, hoje com mais de 230 mil habitantes, nasceu oficialmente em 1985, com a remoção de áreas ocupadas de forma irregular, como Invasão da Boca da Mata, Asa Branca e outras. Era parte do Núcleo Rural de Taguatinga que, desmembrada, passou a ter administração própria no Distrito Federal.

Itamaraty é o nome do palácio que abriga o Ministério das Relações Exteriores, responsável pelo contato diplomático com governos estrangeiros e organizações internacionais, serviços consulares e toda a burocracia relacionada à proteção da imagem do Brasil no exterior.

Pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, código do consumidor, avaliação de desempenho, tarefas escolares na faculdade etc. –, o rapaz acabou desorientado, perdido.


Já não interagia de forma espontânea com clientes – boa parte engravatada, culta, poliglota, natural no recinto – nem com colegas de trabalho. Também demonstrava insegurança ao prestar esclarecimentos, pouca iniciativa e, por isso, havia "dúvida quanto à aptidão para a carreira”, no entender de seu chefe imediato.


À noite, retomei a conversa por telefone com a mãe aflita e disse sem muita convicção  que para mim o caso não envolvia preconceito. Não consegui enxergar com segurança,  naquele dia, se cor da pele, traje humilde e sotaque também  estavam de fato pesando na avaliação preliminar que se fazia.


Mas assegurei à mãe que, se o filho dela fosse bom mesmo, teria noutro ambiente mais duas semanas para provar isso. Já havia orientado meu pessoal a flexibilizar a regra – por minha conta e risco – para que o garoto concluísse o estágio probatório em Samambaia, onde nasceu e se criou.


Duas semanas adiante, liguei pro novo chefe dele para saber o desenrolar dos acontecimentos. A resposta me impressionou:

– O moleque já é o melhor funcionário que temos. A clientela gostou dele, é ligeiro, trabalha feliz e ainda ajuda os colegas porque conhece do serviço como nenhum outro.

Nem recordava mais do caso quando, meses depois, já como superintendente do Distrito Federal – havia sido exonerado do cargo de diretor em meio ao turbilhão de mudanças que sacudiu o país e a empresa no começo de 2003 –, participava de um café da manhã com clientes em Samambaia.


Na ocasião, falaram de uma pessoa que queria me conhecer. Fui até o rapaz que conversava com uma senhora na plataforma de atendimento. Ao me ver, levantou-se e estendeu a mão:

– Muito prazer! Eu queria apresentar minha mãe e agradecer o que o senhor fez por mim.
– Se você quer agradecer a alguém, dê um abraço em sua mãe, uma mulher corajosa, determinada, que nos poupou de um vexame, de cometer uma injustiça.
– Mas se o senhor não ouvisse o que ela tinha a dizer...
– Olhe bem: importante é você perceber que na empresa não existe preconceito. Surgem oportunidades todo dia e para quem quer crescer, o céu é o limite.
– Sei disso...  – respondeu, afagando os cabelos da mãe orgulhosa de seu rebento.

O tempo passou e a última notícia que tive desse colega foi em 2013, mais de 10 anos depois do episódio. Ocupava cargo de confiança na Ouvidoria Interna, canal de comunicação direta dos funcionários, especializada em receber denúncias sobre conflitos, desvios de conduta ética e descumprimento de normas.


Talvez veja fantasmas onde nunca existiram, mas continuo sem respostas para algumas perguntas que me fiz a vida inteira: por que não vi um presidente negro em mais de 40 anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só houve um em mais de dois séculos de história? 


Deve ser por isso que me assombram mais os vivos  com seus preconceitos de cor, gênero, origem, classe social, religião etc.  do que os mortos.      




sábado, 10 de agosto de 2019

O mito Miguel Arraes


Sufocada por dívidas, a Usina Catende teve sua falência decretada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco em 1995, agravando ainda mais o quadro de miséria instalado na Zona da Mata nordestina, com o fechamento de diversas unidades nos anos 90.


O então governador Miguel Arraes, preocupado com sinais iminentes de convulsão social numa das regiões mais desiguais do país, telefonou para o presidente do Banco do Brasil, Paulo César Ximenes, a quem pediu para que a instituição, como maior credora bancária, aceitasse ser representante do síndico da massa falida, única forma que enxergava de recuperar a velha fábrica de açúcar. ”Tudo bem, governador, se é pra tentar manter viva a usina e preservar centenas de empregos, vamos em frente, mas que fique bem claro: não podemos mais emprestar nenhum centavo de dinheiro novo!”, teria dito Ximenes.

Conheci Miguel Arraes de Alencar alguns meses depois, no início de 1996, quando cheguei em Pernambuco para trabalhar na superintendência estadual do BB e fui convidado por ele para conversar sobre o caso “Catende” no Palácio Campo das Princesas. Sabia que se tratava de um advogado, economista e ex-exilado político, que fora prefeito da cidade de Recife, deputado estadual, deputado federal e por duas vezes governador do estado, no exercício do terceiro mandato.


Descrente quanto ao sucesso do processo em andamento, tentei ser objetivo, indo direto ao ponto já na abertura da reunião: ”governador, com todo respeito que o senhor merece, não vejo como o banco possa evitar a falência da usina, que está devendo a trabalhadores, fornecedores de cana, governo, previdência e bancos, o equivalente a dez vezes o valor das máquinas e das terras que possui.”


Arraes acendeu o cachimbo, deu duas ou três baforadas, olhou firme para mim e sentenciou: “o senhor está enganado! Essa usina já foi a maior do Brasil e chegou a fabricar um milhão de sacos de açúcar por safra. Teve a primeira destilaria de álcool do país, 40 mil hectares de terras, 170 quilômetros de estradas de ferro e 80 engenhos de cana. Só na fábrica já trabalharam mais de 700 operários. E ainda tem uma vila operária com 200 casas e uma escola para 50 alunos. A Catende não pode nem vai desaparecer!”


Pensei: não vale a pena contra-argumentar agora, por exemplo, que sucesso no passado não assegura êxito no futuro. Àquela altura, a eventual saída do BB do processo teria consequências imprevisíveis. Minutos antes, tinha visto na antessala do gabinete uma gravura do governador Arraes, feita em naquim, a bico de pena, onde escrito na base o verso drummondiano “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”.


O governador, consciente de que os empregados da usina eram credores privilegiados da massa falida, queria organizá-los numa grande cooperativa. Com o afastamento por determinação judicial dos ex-proprietários da “Catende”, o Bandepe, banco estadual, já havia até adiantado um crédito por conta da venda de açúcar da safra 95/96, para que fossem feitos os tratos culturais nas lavouras de cana e o chamado “apontamento” da fábrica - reparo de caldeiras, limpeza, substituição de peças gastas etc.


O BB já vinha tocando a gestão do dia a dia com a plena confiança do juiz responsável pela condução do processo falimentar, mantendo acesa a esperança de diversos interessados na sobrevivência da empresa - empregados, cortadores e fornecedores de cana, compradores de açúcar, governos municipal e estadual, além da própria comunidade do município de Catende(PE).


Em outubro de 1996, o que parecia um grande delírio ganha corpo e alma: a usina iria de fato esmagar a safra de cana-de-açúcar da região. Fim de tarde, sol desaparecendo no horizonte, palanque armado na carroceria de um caminhão, Arraes, aos 80 anos de idade, pega o microfone e com sua voz rouca se dirige a centenas de pessoas que esperavam por aquele momento: “Eu prometi, eu cumpro: a Catende vai moer, a Catende continua e o emprego de vocês também!”


Aquela gente humilde e suada, espremida próxima ao caminhão, quase não se continha de ansiedade e excitação. Era homem, mulher, menino, chorando, sorrindo, todos movidos pela esperança de dias melhores. Falou-se até que um antigo foguista da usina, já trôpego por conta da cachaça ao longo da tarde, teria dito em alto e bom tom: “Pode falar quem quiser, mas quando ‘Pai Arraia′ é governador, chove mais por aqui.” Ai de quem duvidasse disso!


Na euforia daquele momento faria todo o sentido reler o poema do pernambucano Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira (1895-1965), que narrou, na metade do século passado, uma viagem de trem de Maceió para Catende, ao som do sino, do apito e das rodas de ferro sobre os trilhos, falando de quem fica, do que fica e da vontade de chegar.


Três anos depois, em 1999, o BB, sem nenhum desgaste com o governo estadual, conseguiu renunciar ao cargo de representante do síndico da massa falida, com todos os seus atos sendo aprovados, com louvor, pelo juiz de falências. A Usina Catende, então, passou a ser administrada pela Cooperativa Harmonia, formada por ex-empregados.


Estabeleceu-se nos anos seguintes o maior projeto de autogestão e economia solidária da América Latina - nada menos que 4 mil famílias foram assentadas em 26 mil hectares de terras no denominado Assentamento Coletivo Governador Miguel Arraes.


O processo de falência, envolvendo apenas o que restou do parque industrial, arrastou-se por mais alguns anos, até 2018. Máquinas e veículos acabaram sucateados e a cada leilão frustrado, houve sensível desvalorização dos bens da massa falida. No final, apurou-se menos de 1% do montante da dívida atualizada.


E a Usina Catende foi varrida do mapa, como eu desconfiava, mas continua sobrevivendo a maioria dos trabalhadores rurais, como queria o governador. Para Aristóteles, “a politica não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça”. Miguel Arraes transformou-se em mito porque pensava assim.



Mitos também vacilam

Em maio de 1997, naquele cipoal de problemas em que se debatia a agroindústria canavieira em Pernambuco, no final dos anos 90, foi feito um acordo inédito na Zona da Mata Sul, envolvendo Banco do Brasil, Ministério de Política Fundiária, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Usina Central Barreiros S.A. e Cia. Açucareira Santo André do Rio Una. O desfecho, porém, poderia ter sido bem melhor.

As duas usinas do Grupo Othon Bezerra de Melo eram responsáveis por dívidas atrasadas no montante de R$ 16 milhões e, depois de longa conversa, toparam pagar a conta cedendo sete mil hectares de terras, a maior parte com canaviais desde 1885, ano da fundação da Central Barreiros, ou, quem sabe, desde a época da Carta de Doação da capitania de Pernambuco, assinada em 1534 por D. João III, em favor do capitão donatário Duarte Coelho, que se destacara nas campanhas lusitanas na Índia.

Cinco mil hectares seriam repassados para o Ministério de Política Fundiária – que compensaria o banco com Títulos da Dívida Agrária, TDA – para assentamento, de forma pacífica, de 145 famílias sem-terra. Essas famílias, sob orientação técnica do Incra, passariam a explorar lavouras alternativas à monocultura da cana-de-açúcar. E os dois mil hectares restantes, localizados em áreas urbanas, seriam loteados para venda em condições normais de mercado.

Para fechar o acordo, o grupo Othon ainda exigiu novo crédito à “Santo André do Rio Una” porque, sendo mais moderna e melhor localizada, teria maiores chances de recuperação do que a antiga “Central Barreiros”. Buscaria, assim, reduzir de tamanho, ganhar eficiência operacional, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E não foi difícil convencer a diretoria do BB de que o negócio era vantajoso para todas as partes. O financiamento foi então aprovado, mas limitado a 10% do montante que seria recebido, em títulos, do Governo Federal.

Embora o setor açucareiro estivesse cada vez mais decadente e os usineiros não fossem mais a expressão da elite empresarial dos tempos de “Casa Grande & Senzala”, sabíamos que mexer naquela estrutura fundiária teria seus riscos. Cogitava-se, pela primeira vez, conjugar reforma agrária em larga escala com efetiva assistência técnica e diversificação de lavouras na Zona da Mata, para que o estado superasse sua mais grave crise financeira na história. Por isso, assim como os dirigentes do grupo Othon e do BB, o então ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, considerou o acordo  “um marco histórico”

Quem discordou e nem foi à solenidade de assinatura do acordo foi o governador Miguel Arraes, alegando, no dia do evento, que "o fato principal não é a reforma agrária, mas o saneamento das usinas". Disse ainda ser contra a posição do BB, porque o acordo seria "meramente financeiro e parcial, por não envolver as dívidas com o Estado de Pernambuco". 


Todo ser humano um dia acorda indisposto, chateado, e acaba tomando decisões que normalmente não tomaria. O mal humor matinal, reflexo de noites mal dormidas, passa. Mas algumas decisões impactam para sempre a vida de muita gente.

Penso que o governador naquela manhã não percebeu - ou não foi bem assessorado nesse sentido - que a única chance do estado receber seus créditos seria manter “viva” uma usina daquele grupo econômico, para quem o acordo era caso típico de “vão-se os anéis, mas que fiquem os dedos”. Ou talvez não visse com bons olhos o protagonismo no assunto de Raul Jungmann, político pernambucano de origem socialista que ocupava com relativo destaque, nos anos FHC, ministério-chave para o sucesso do negócio.

O processo evoluiu no que foi possível entre o banco, o ministério, o Incra e as usinas, mas, sem o apoio do governo estadual na largada, não teve a velocidade nem a convergência de interesses que aceleram transformações sociais num piscar de olhos. E as duas usinas acabaram indo à falência, anos depois, engolidas pela crise que fechou as portas de várias delas.

Depois de mais 20 anos, vejo esta notícia que me fez relembrar o caso:

"Incra em Pernambuco entrega primeiros títulos definitivos de 2018 a assentados

A Superintendência Regional do Incra em Pernambuco (Incra/PE), sediada em Recife, entregou... os primeiros títulos definitivos deste ano a beneficiários da reforma agrária. No total, 60 documentos foram concedidos a moradores dos assentamentos Baeté, no município de Barreiros, e Campinas, em São José da Coroa Grande, ambos localizados na Zona da Mata Sul do estado.
Com os chamados títulos de domínio em mãos, as famílias passam a ser proprietárias das terras e podem acessar linhas de crédito mais robustas que permitam incrementar a produção (...)
(...) Saulo José da Silva foi um dos contemplados com o título de domínio. ‘É uma alegria muito grande poder dizer agora que sou dono de parte das terras onde eu nasci e me criei’, disse o assentado, que reside no Engenho Campinas, antiga Usina Central Barreiros.”

Quem leu meu último post (O mito Miguel Arraes) pode ter ficado com a impressão de que figuras lendárias são infalíveis e acertam sempre. Todos nós, seres humanos de carne e osso, acertamos e erramos todos os dias. "Só os médicos são profissionais de sorte. Seus acertos brilham ao sol. Seus erros, a terra cobre" (Molière)


Doidice de menino


Toda vez que perguntei a uma criança o que ela gostaria de ser quando crescesse, quase sempre ouvi respostas parecidas: advogado, médica, engenheiro, professora, policial. Natural que fosse assim. Afinal, são atividades ainda com certo glamour por envolver doses de heroísmo, vida e morte, justiça e liberdade, ensino e aprendizagem. Mereceram até grandes filmes como “A Sociedade dos Poetas Mortos”, “Patch Adams - O Amor é Contagioso”, ”A Ponte do Rio Kwai”, “Tempo de Despertar”, “12 Homens e uma Sentença”, “Cabo do Medo”...

Quando alguém dizia que gostaria de ser bancário, eu desconfiava: a bem da verdade, queria ser como o pai, o tio ou o primo. Virou profissão tão sem graça que está em processo de extinção e até hoje nem novela de TV foi feita tendo bancário como protagonista. Claro, não estou falando do mercado financeiro em si, que inspirou os ótimos “Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme” e “O Lobo de Wall Street”.



Afora meus primeiros anos de vida, quando disse a minha mãe que seria vaqueiro - até hoje, não posso negar, gosto de cheiro de curral, de capim molhado, de ouvir aboio e mugido de bezerro -, coloquei na cabeça desde cedo que iria trabalhar no Banco do Brasil. Não porque nasci para ser bancário, mas porque queria fazer o que fazia meu pai: receber gente que precisava guardar dinheiro no banco ou tomar empréstimos, escrever cartas com máquina de datilografia, carimbar e assinar papéis com caneta tinteiro Parker 51, tudo isso numa sala simples com mesa de trabalho, cadeira, arquivo com gavetas, ventilador e lixeira.


Mais tarde, quando a fome apertasse, iria para casa encontrar minha família  e almoçar bife “marinheiro” com arroz, feijão e farofa. Depois, cochilaria uns 20 minutos antes do segundo turno. Na boca da noite, ao retornar de vez, acharia graça vendo meus filhos disputarem o “direito” de trazer minhas sandálias, antes de lhes contar histórias de “O Mundo da Criança”. Todos dormiriam felizes, de banho tomado e barriga cheia, protegidos das almas penadas por mosquiteiros, lençóis cheirosos e pelos poderes do Sagrado Coração de Jesus da parede da sala de jantar.


Sei que mais parece doidice de menino   - bem que meus avós diziam “esse menino é cheio de marmota!” -, mas lembro do tempo em que resolvi ser bancário toda vez que releio o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade.


“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.”

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Manias de uma paixão


O grande Graciliano Ramos (1892 – 1953) pisou na bola em sua crônica “Traços a esmo”, de 1921, publicada em “O Índio”, jornal do Agreste alagoano, ao profetizar: “... O futebol é uma moda fugaz; vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha que não durará um mês...”

Monstros sagrados que surgiram por aqui na segunda metade do século passado – Pelé, Garrincha, Didi, Tostão, Carlos Alberto, Gérson, Rivellino, Ademir da Guia, Dirceu Lopes, Zico e outros – destruíram sem dó a profecia de Mestre Graça e me fizeram até sonhar ser como Roberto Dinamite, maior artilheiro da história do Vasco da Gama. Mas uma miopia acentuada, o início do curso científico (2º grau do ensino secundário) e o primeiro emprego, aos 16 anos, cuidaram de sepultar na origem o meu delírio. 

Minha cabeça, no entanto, já havia sido feita pelas transmissões esportivas da "Rádio Globo", da TV Bandeirantes e TV Educativa, e pelas matérias da revista "Placar" e do "Jornal dos Sports". O futebol – diria o poeta – era meu vício desde o início, meu bálsamo benigno, paixão e carnaval, meu zen, meu bem, meu mal.

Dos 10 anos de idade em diante, quase todo dia curtia rachas (peladas, babas) em campinhos de terra batida, gramados, quadras de cimento ou na areia das praias da Avenida ou de Paripueira, em Alagoas, até o anoitecer. E ainda cuidava com zelo e carinho de meu "bicho de estimação": um rádio “Phillips” com que seguia o CSA, em minha “aldeia”; e o Vasco, no resto do mundo. 

Mesmo depois de casado, com filhos para criar, permanecia horas em transe quase hipnótico ouvindo rádio, vendo TV ou lendo jornais e revistas, quando não estava no meio do mundo jogando bola com os amigos. Longe do que pensava Mestre Graça, comigo essa paixão sem limites por futebol nunca foi fogo de palha.

Diferente de mim, nada fazia com que minha mulher relaxasse e se desligasse totalmente do que estava acontecendo com o resto de nossa família. Só sossegava quando dormia ou alimentava nossos filhos. Mas até nessa hora era capaz de olhar o que estava escrito na palma da mão e lembrar que precisava estudar para uma prova, aguar o jardim, concluir um laudo no trabalho ou ir ao supermercado.

Aprendi há muito tempo que não existe nada nesse mundo que consiga fazê-la se concentrar numa única coisa. Se está com os filhos, pensa no marido; se está com o marido, pensa nos netos, e sempre com algum remorso, claro. Tudo me leva a crer que já nasceu com o chip da culpa instalado no cérebro.

Quando trabalhava fora, preferia estar viajando; se ficava em casa, tinha acessos nostálgicos relembrando os bons tempos em que, àquela hora, poderia estar tomando uma caipirosca com polvo ao vinagrete na Praia de Ipioca, em Maceió, a negociar com o sol o bronzeamento com o mínimo de manchas a serem eliminadas pelo dermatologista.

Isso acontece porque a imaginação feminina é bem mais fértil do que a de qualquer marmanjo. A maioria das mulheres é inquieta e falante. Não consegue jamais ficar horas vendo alguns bípedes esbaforidos a correrem atrás de uma bola, esgoelando-se em palavrões, a trocarem pontapés para, no fim do racha, discutirem sobre o que poderia ter acontecido ou não.

Deve ser difícil para qualquer mulher compreender como alguém consegue criar teias de aranha nos sovacos diante de uma TV, principalmente depois do apito final de um jogo, a ouvir desculpas esfarrapadas dos perdedores e ver a arrogância desmedida dos vencedores. Já não perco meu tempo com isso, mas ainda me flagro lendo o que disseram os "experts" em engenharia de obras feitas.

Fato é que, apesar de conformada com minhas manias, Magdala, minha mulher, nunca engoliu me ver deitado na sala, com um punhado de pipocas na mão e os olhos na tela, sacrificando nossas tardes de domingo. Tanto mais porque já não contava comigo nas noites de terça e quinta-feira, além das tardes de sábado, dedicadas aos rachas até o pôr do sol.

Mesmo depois de deixar as peladas há mais de 20 anos, ela insiste em dizer que para mim nada existe a não ser o futebol em suas variadas nuances. Chega a dizer que se houver plantão do JN dando conta de que há tsunami se formando no Atlântico, ou que vem aí um terremoto de oito graus na escala Richter, com epicentro no quintal de nossa casa, é provável que eu nada perceba se estiver vendo meu time jogar.

É capaz de jurar que se o telefone tocar e for minha mãe, eu lhe pedirei: "veja o que está acontecendo ou diz pra ligar mais tarde." Não passará pela minha cabeça, lógico, que minha mãe possa estar com um pico de pressão ou uma crise de labirintite, pelo menos antes do jogo acabar.

E se por acaso, só de brincadeira comigo, resolver fazer um teste e passar na frente da TV, diz que, no mínimo, correrá o risco de ouvir algo indelicado como: “Minha filha, saia da frente senão dá azar... Desse jeito meu goleiro vai acabar sofrendo um gol”. 

Exageros à parte, melhorei bastante. Ela também. Talvez até peça daqui a pouco a um de nossos netos para lhe explicar o que é “jogar sem a bola”, “cruzar no segundo pau”, “acertar chute de três dedos” ou "fazer gol do meio da rua". Pode até passar a gostar de ler Armando Nogueira (1927 – 2010): “No futebol, matar a bola é um ato de amor”.

Depois de quase meio século de convivência, ela sabe que desfruta de cadeira cativa com estofo de pena de ganso em "meu estádio". Sabe também que, a esta altura do campeonato, no jogo da vida o placar é o que menos importa: 1 a 0, duas vezes por mês, é goleada. Sem direito a replay.


quarta-feira, 31 de julho de 2019

Não deu, Elis


Nunca fui de lamentar sonhos frustrados. Meu maior temor nunca foi de fracassos pontuais no dia a dia, mas de conquistas que não fizessem muito sentido para mim ou para quem estivesse a meu lado.

Na segunda metade de 2014, a turma que trabalhava comigo na diretoria de marketing do Banco do Brasil (Avelar Matias, Delano Valentim, Fernando Vieira, Gissanne Alves, Hugo Paiva, Márcia Veloso, Michele Domingues, entre outras pessoas) havia recebido a encomenda de criar algo na linha do chamado marketing de experiencia, direcionado ao segmento de alta renda do eixo Rio-São Paulo. 

Esse tipo de evento tem sido uma das principais estratégias das marcas que pretendem criar vínculos mais sólidos com seus clientes. A ideia é estabelecer conexões emotivas, o que vai muito além da obrigação da satisfazê-los com produtos e serviços.

É preciso oferecer algo que dinheiro nem sempre pode comprar como, por exemplo, jogar tênis numa manhã de sábado com Gustavo Kuerten (Guga), um dos maiores atletas da história do tênis mundial, tricampeão de Roland-Garros.  Ou assistir de camarote a U2, Rolling Stones e Paul McCartney, com direito à visitas aos camarins, entre outras ações que já haviam sido realizadas.

Das possíveis ações que discutimos, uma delas seria oferecer jantar em grande estilo para 80 pessoas, assinado por renomado chef, com direito a "pocket show" inédito, em termos de MPB.

Na ocasião recordei de uma passagem marcante do livro "Noites Tropicais", do escritor, compositor e jornalista Nélson Motta. Sugeri, então, que procurássemos a cantora Maria Rita e seu pai, o pianista e compositor César Camargo Mariano, para que pensassem sobre como resgatar um pouco da mística da mãe e esposa Elis Regina (1945 – 1982), que falecera prematuramente, aos 37 anos, no esplendor de sua carreira artística.  

Dez anos antes de sua morte, Elis estava se divorciando do compositor e jornalista Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994), no começo de 1972, quando teria ouvido a primeira parte de uma canção que estava sendo composta por Chico Buarque e Francis Hime:

“Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei/Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei/E me arrastei, e te arranhei/E me agarrei nos teus cabelos/Nos teus pelos, teu pijama/Nos teus pés, ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta/Reclamei baixinho...”

Tanto ela quanto César (nessa época, seu pianista e diretor musical) ficaram tão impressionados que a gravação foi marcada para três dias depois. Até lá, o produtor Roberto Menescal cobraria de Chico a segunda parte da letra da música.

Enquanto aguardava o dia da gravação, Elis convidou alguns amigos, entre eles o próprio César, para assistirem a um filme em sua casa. Durante a projeção, ela deu um jeito de entregar um bilhete a César, que leu e se assustou: era uma cantada explícita. César, embora interessado, ficou inseguro e desapareceu por 48 horas. Na hora da gravação, porém, chegou ao estúdio. 

Nélson Motta assim descreveu em seu livro este momento mágico: “...Elis sorriu sedutora. César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de 'Atrás da porta'. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na área técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos. Elis chorava abraçada por César. Juntos, César e Menescal foram levar a fita para Chico, que ouviu... e terminou a letra ali mesmo, no ato".

"... Dei pra maldizer o nosso lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço/Te adorando pelo avesso/Pra mostrar que inda sou tua/Só pra provar que inda sou tua.”

Em outubro de 1980, oito anos depois da gravação original de "Atrás da Porta", quando o casamento de César e Elis estava por um fio de cabelo, eles protagonizaram juntos um capítulo singular da série "Grandes Nomes", exibida pela “Rede Globo”, que ficou tatuado na memória dos amantes da MPB: Elis cantou de forma tão intensa e visceral que, no fim, desabou no choro. 

O ponto alto do jantar em grande estilo que pretendíamos oferecer seria ver e ouvir pai e filha numa nova versão da música imortalizada pela mãe. Isso, tínhamos certeza, dinheiro não compraria!

Mas não deu certo. Maria Rita não pôde abraçar o projeto. Com o sucesso de seu álbum “Coração a Batucar”, andava totalmente envolvida numa edição especial em CD e DVD que lançaria no início de 2015. 

A alternativa que encontramos – Vanessa da Mata cantando o melhor de Gilberto Gil, em novembro de 2014 – , acabou sendo muito bem recebida pelos clientes, tanto no Rio como em São Paulo. Mas nada arrebatador, raro, capaz de ser lembrado dali a 10 ou 15 anos.

Não deu, Elis. Para mim, a experiencia vivenciada pelos clientes não se deu na dimensão que pretendíamos. Quando os últimos deixaram o recinto, ficou a sensação de que você, com seu sorriso largo e sua voz única, subiu ao palco para nos consolar cantando Guilherme Arantes "Vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar..."

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Crepúsculo de mitos


Ele ajeitou o nó de minha gravata com aquelas mãos delicadas de quem nunca na vida pegou em cabo de foice para descascar coco verde ou trocar pneu com parafusos apertados, deu três tapinhas na lapela de meu paletó e, com sua voz quase inaudível, profetizou: “você vai se dar muito bem na Bahia!”

“Eu tinha certeza de que o senhor iria gostar dele. É uma de nossas promessas e mereceu ser nomeado superintendente na Bahia”, disse o então presidente do Banco do Brasil, Andrea Calabi, que, junto com o diretor Marcelo Teixeira, estava comigo naquela visita ao todo-poderoso do Congresso Nacional, ao meio dia de quinta-feira, 20 de maio de 1999. O senador Antonio Carlos Magalhães (1927 – 2007) virou-se para mim e encerrou a conversa em tom de paz: “... e ainda dizem que sou político; político é seu presidente, está vendo?”

Ao chegar a Salvador na segunda-feira para assumir o cargorecebi logo cedo dois telefonemas: dos gabinetes do governador César Borges e do prefeito da Capital, Antonio Imbassahy. Eram convites para breve conversa sobre projetos em andamento. Com ambos, a prosa começou mais ou menos assim: “Seja bem-vindo. O senhor chega precedido das melhores referências possíveis. Sinta-se em casa...”


Uma semana antes eu havia encontrado em Pernambuco, onde trabalhava, o então deputado federal José Múcio Monteiro Filho. Ao me ver com o semblante meio tenso, perguntou sobre o que estaria acontecendo:
— Nada demais, deputado. É que toda mudança mexe com a gente, com a família...
— Você está indo embora de Pernambuco?
— Fui nomeado pra Bahia. Pior é que não serei bem-vindo. Soube que o “velho” ficou bravo porque a direção do banco não lhe comunicou com antecedência que estava trocando o superintendente estadual.
— Deixe comigo! Fui muito amigo do filho dele, Luís Eduardo, que morreu ano passado. O senador me respeita muito. Vou dizer que a Bahia mais uma vez está passando a perna em Pernambuco. Ele vai gostar de ouvir isso.

Deve ter atiçado a curiosidade do senador ACM em relação a mim, dado que a secretária, no dia seguinte, telefonou dizendo que ele gostaria de me receber. Queria saber, inclusive, se eu poderia viajar a Brasília já na quinta-feira. Respondi que sim e, em seguida, liguei para  meu chefe imediato contando o que acontecera.  

Foi quando o diretor Marcelo Teixeira me comunicou que o presidente Andrea Calabi decidira ir comigo. E confirmou o que já se sabia: de fato, o senador ACM ficara chateado com a troca de superintendentes sem que fosse avisado, não atendia ligações do banco nem tampouco dava retorno. 


Logo ele que, no início dos anos 60, protagonizara episódio dos mais bizarros da história política brasileira, em defesa do ex-presidente do BB, o baiano Clemente Mariani Bittencourt, na ocasião ministro da Fazenda de Janio Quadros. 


ACM por muito pouco não foi assassinado pelo famoso deputado federal Tenório Cavalcanti (1906 – 1987), alagoano radicado na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, chamado de "O homem da capa preta" porque costumava carregar aonde fosse sua lendária "Lurdinha", uma metralhadora MP-40 de fabricação alemã, usada na II Guerra Mundial.


Em discurso no plenário, Tenório Cavalcanti acusava Clemente Mariani de desvio de verbas quando o então deputado federal ACM pediu um aparte não só para rebater a acusação como também para chamar o deputado fluminense de "protetor de jogos de azar, explorador de prostíbulos e ladrão". 


O tempo fechou na hora! "O homem da capa preta" sacou seu revólver e partiu para cima: "vai morrer agora mesmo!" Com os olhos esbugalhados, ACM", protegido pela "turma do deixa disso", foi corajoso: "atira que eu quero ver!". Dá pra imaginar o pânico e a correria dos nobres representantes do povo brasileiro na Câmara dos Deputados.

A rir das calças molhadas do parlamentar baiano,  que na agonia fora vítima de constrangedora incontinência urinária, Tenório Cavalcanti resolveu poupar a vida do colega e retirar o dedo do gatilho, mas não sem antes esculachar de forma cruel: "pode sossegar; só atiro em homem". 


O episódio nunca foi engolido e mereceria impiedosa vingança, na calada da noite, três anos depois: os direitos políticos do deputado fluminense foram cassados em 1964, com a interveniência direta e pessoal de ACM junto ao governo militar, que já ouvia com muita atenção a tudo que o baiano tinha a dizer sobre qualquer assunto. 


Tenório Cavalcanti, cuja vida rendeu um clássico do cinema nacional, estrelado por José Wilker e Marieta Severo, jamais recuperaria seu prestígio político até morrer em 1987, aos 80 anos. Nem a "Lurdinha" conseguiu vencer uma traiçoeira pneumonia.



Tomei conhecimento desses fatos em velhos jornais quando de minha primeira passagem pela Bahia, onde havia trabalhado no início dos anos 90. Quase uma década depois, no voo entre Recife e Brasília, cuidava de me atualizar sobre dados de natureza econômico-social para, se necessário, poder falar com segurança sobre o que sabia e pretendia fazer no novo desafio profissional.

Ao chegarmos na porta do gabinete da presidência do Congresso Nacional, às 11h55, o velho cacique pessoalmente nos esperava e fez questão de registrar antes mesmo dos cumprimentos formais: “já gostei de sua atenção e pontualidade; isso é muito importante!”.

A conversa fluiu com cordialidade sobre vários temas: desde a crise no Litoral Sul com a praga da vassoura-de-bruxa sobre os cacaueiros, passando pela nova fronteira de grãos no Oeste, pela decadência econômica do Recôncavo, pela pecuária do Sudoeste, pelas culturas irrigadas do Médio São Francisco, até o surto de desenvolvimento trazido pelo polo industrial de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador.

Decorridos cerca de 45 minutos, o senador levantou-se – era o sinal de que a reunião chegara ao fim – e ajeitou o nó de minha gravata... O resto eu já contei.

Seria injusto e mentiroso se dissesse que algum dia recebi qualquer pedido indecente de alguma autoridade baiana, cobrando reciprocidade pela forma calorosa com que me acolheram. Uma única vez o senador ACM me ligou para pedir algo simples e até desnecessário: meu empenho para que não houvesse irregularidades numa licitação pública que ocorreria naqueles primeiros meses.

Tranquilizei-o explicando que o banco possuía uma área técnica especializada no assunto e que não haveria a menor chance de intercorrências, tanto por conta do rigor normativo, como pelo número de pessoas – umas de olho nas outras – envolvidas nas decisões colegiadas por toda a cadeia do processo decisório.

De repente, do nada, o senador desatou a chorar, lembrando do filho Luis Eduardo Magalhães – a quem desejara ver no Palácio do Planalto  que falecera um ano antes. Dizia coisas como “Deus não podia ter feito isso comigo... Tinha que deixar meu filho e me levar... eu não sei o que continuo fazendo aqui!”. Pais não deveriam enterrar seus filhos, nunca.

A dor humaniza, desperta compaixão e nivela por cima as pessoas. Fiz o que pude, ao telefone, para acalmar e consolar um dos homens mais poderosos da República no século passado, que aos poucos foi se recompondo, pediu perdão pelo desabafo "fora de hora" (sic) e desligou. Nunca mais nos falamos. Nem quando fui embora trabalhar em Brasília, em setembro de 2000.


Havia conhecido o governador Miguel Arraes (1916 – 2005) quando trabalhei em Pernambuco, de 1996 a 1999. Era tido como uma das maiores lideranças das lutas populares que marcaram a segunda metade do século 20. Três anos e meio depois, conhecia Antonio Carlos Magalhães. 

Vi de perto o crepúsculo desses dois ícones políticos com visões de mundo totalmente opostas e características tão distintas quanto caldo de cana e azeite de dendê, mas com alguns traços em comum: o amor ao poder e à veneração que despertavam em seus seguidores, além do profundo respeito que nutriam pela instituição que eu representava. 


Vi de perto que mitos não morrem nunca; viram lendas. E ainda recebia salários, todo dia 20, para assistir a tudo. De camarote. 


quarta-feira, 17 de julho de 2019

Cabeça de mãe


Faltava energia às 10 horas da noite de terça-feira, 26 de fevereiro de 1958, quando ele nasceu na maternidade do Hospital São Vicente de Paulo, em Itabaiana, na Paraíba, berço de grandes artistas como Zé da Luz, Sivuca e onde vive, atualmente, o grande Jessier Quirino. 

Era uma criança tão feia que assim que a energia voltou o médico foi conferir se por acaso não teria jogado no lixo o pimpolho e deixado a placenta nos braços da mãe que, aos 19 anos, exausta, recuperava-se do esforço sobre-humano feito para expulsar aquela respeitável caixa craniana. 

Nas 48 horas seguintes, aguardou-se para ver se não brotava algum apêndice caudal na figurinha cabeluda de pouco mais de 4 kg, chorona e de olhos tristes, que começava a bisbilhotar o universo em sua volta, sem entender de onde vinha nem para onde estava indo.

Era humano! Uma santa teria soprado aos seus ouvidos: “Calma! Só dói assim na descida e na subida; aproveite o vôo e boa viagem.”

A mãe jura que exageram quando tocam nesse assunto. Cabeça de mãe é tudo igual. Ela mesmo contou outro dia que, ao receber o filhote para amamentá-la pela primeira vez, indagou da freira responsável pelo berçário se não teria ocorrido alguma troca de bebês quando a luz apagou. O correr do tempo, o mingau de amido de milho, a tapioca, o cuscuz, o futebol e as braçadas em açudes e rios, melhoraram bastante a proporção entre cabeça, tronco e membros daquela criatura. 

É claro que a mãe até hoje é grata ao filho porque sem querer facilitou a chegada suave dos sete irmãos seguintes. Interessante notar que não havia nada hereditário que justificasse o cabeção da criança. Nem mesmo uma possível ascendência cearense, região pra lá de distante do Oeste maranhense e do Agreste paraibano onde viveram seus ancestrais paternos e maternos. 

Passados os dois primeiros dias, o pai foi ao Cartório Santiago Bandeira fazer o registro do nascimento tendo em mãos um documento fornecido pela maternidade onde escrito que se tratava de uma criança de cútis morena. Anos depois, um cunhado seu, pouquinho mais moreno, achou de perturbar o juízo da sogra exibindo o próprio registro onde consignado que nascera de cútis branca. A resposta foi curta e afiada feito coice de porco: “pelanco de urubu também nasce branco!”. De novo: cabeça de mãe é tudo igual.

O costume execrável de misturar nomes de pai (Agostinho) e mãe (Eudócia) para nominar recém-nascido aqui não daria certo mesmo: Agostócio ou Eutinho seria cruz de pau-ferro, pesada demais para os ombros do inocente. O pai até poderia homenagear — não quis assim — dois ídolos chamados Orlando: o quarto-zagueiro vascaíno, que integrava a seleção brasileira que viria a ser campeã mundial na Suécia meses depois; e o Silva, o cantor das multidões da época de ouro do radio, grande intérprete de “Aos pés da cruz”, “Carinhoso” e  “Rosa”.

“Hayton”, na verdade, é sobrenome lá para as bandas do Reino Unido. Já o primeiro sobrenome é na verdade nome próprio nativo, de raiz: “Jurema”, que em tupi significa “arvore de espinhos de cheiro desagradável”. É planta comum no Nordeste, cujas folhas podem dar origem a um chá narcótico e alucinógeno. “Rocha”, último sobrenome, seguramente veio da Península Ibérica com os expatriados para Pindorama.

Ao resolver homenagear um colega de trabalho (Hayton Vidal dos Santos) que fora seu guru-orientador nos passos iniciais da carreira no Banco do Brasil, o pai não imaginava que o filho seria chamado de várias formas pelos professores a cada primeiro dia de aula nas escolas em que estudou: Ail-ton, Ei-ton, Rai-ton, Rei-ton, Uai-ton etc. Menos de Hayton (ái-ton). Só depois de breve explicação ninguém mais esquecia daquele nome, bem mais complicado, por exemplo, do que: Ciço, João, Raimundo, Tonho ou Zé. 

O nome esquisito e o crânio levemente avantajado eram pratos cheios para "bullying", mas desde cedo o menino aprendeu a se defender de quem se atrevesse a lhe apelidar. Dotado de altura e força acima da média dos moleques de sua idade, possuía, além disso, respostas afiadas e cruéis na ponta língua para calar os buliçosos, a quem faltava coragem e imaginação para lhe chamar, por exemplo, de: Caixa d’Água, Estoura Gola, Lua Cheia ou Maçã do Amor.

Conseguiu atravessar ileso a infância e a adolescência, sem que lhe colassem nenhum apelido digno de nota. Mas, início dos anos 90, num belo dia em que acabara de mergulhar na piscina da AABB Salvador, uma irreverente cidadã carioca, tia de grande amiga sua, depois de uns bons goles de cerveja resolveu cutucar o gatão felpudo no esplendor de seus 33 anos para ver o que acontecia: “e aí, Cabeção, a água está boa?”

Ele fez cara de besta mas respondeu com outra pergunta, na lata: “com qual delas a madame está falando?” A própria sobrinha Sílvia, com o marido, vulgo Gasolina, ambos numa mesa com pelo menos dez pessoas, quase racham as costelas de tanto rir da coitada da Tia Odete. E entre acarajés, pilombetas e vatapás, a cerveja gelada rolou até a pôr do sol. Ainda não havia bafômetros estraga-prazeres a espreitá-los pelas ruas da Bahia.  

A vida é assim mesmo.  Quem tem orelha de abano, nariz de batata, olho de jipe ou boca da noite não escapa da zoação geral. Ser cabeçudo, porém, é o que mais tira um sujeito do prumo, principalmente depois de velho, quando a barriga cresce, os pelos caem e as canelas afinam.

Mas chega a hora em que o sujeito se dá conta de que tudo isso não passa de coisa de sua própria cabeça. É quando a vida lhe dá de presente mais um neto geneticamente perfeito, parecendo um pirulito cabeludo. E a mãe acha lindo. Tudo igual.


quinta-feira, 11 de julho de 2019

Há sempre um nome de mulher


Ele ainda tentou segurar na garganta o choro enquanto ouvia “Marina”, de Dorival Caymmi, interpretada por Nana Caymmi, que, a seu pedido, eu havia colocado no toca-discos:
— Dói muito? — perguntei a Tio Enoch, achando que o inchaço e a vermelhidão do tornozelo fosse mais uma crise de gota.
— Não é isso. Você me fez lembrar de meu irmão... seu pai, quando era criança. Todo dia, depois do almoço, eu deitava aqui na minha rede para cochilar um pouco, escutando baixinho um disco que ele escolhia... — respondeu, a enxugar os olhos.
Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí.

Era chamado de Padrinho Enoch pelos 10 irmãos mais novos (Baíca, Jerônimo, Marcelino, Tereza, Agostinho, Antonia, Cazuzinha, Leó, Cristina e Vitória). Para os “Torres da Rocha”, alguém acima de irmão e pouco abaixo de pai que fazia jus à reverência porque, desde cedo, corajosamente deixou o sítio “Maravilha” onde nasceu (zona rural da pequena Colinas) para morar numa cidade maior, o que seria fundamental para o desenvolvimento de todos os seus “afilhados”. 

Meu pai, Agostinho, era um deles.  Por conta de tanta admiração e respeito, em março de 1958 não mediu esforços para fazer uma traumática viagem da Paraíba ao Maranhão, levando-me para ser batizado pelo irmão-ídolo.

Passados mais de 60 anos, minha mãe prefere não lembrar da experiência de voar com uma criança com apenas 20 dias de nascida, vomitando de meia em meia hora, com dores de ouvido, reflexos das mudanças bruscas de pressão e da turbulência de um bimotor DC-3 onde passageiros bebiam e fumavam em quase todas as poltronas da aeronave.  

Mas voltemos à música que, 30 anos depois de meu batizado, emocionava Padrinho Enoch em sua rede de algodão. “Marina” é uma das faixas do álbum fonográfico duplo “Há sempre um nome de mulher” que eu lhe trouxe de presente em janeiro de 1988, quando viajei de Maceió até Caxias para rever tios e primos. 


No ano anterior, em ação de marketing institucional muito bem concebida, o Banco do Brasil patrocinara a produção do álbum duplo temático com canções intituladas com nomes de mulheres míticas: Amélia, Ana Maria, Aurora, Carolina, Chica da Silva, Conceição, Dora, Doralice, Helena, Isaura, Lígia, Luciana, Luiza, Maria Betânia, Maria Candelária, Madalena, Rita, Rosa Morena, Yolanda, entre outras.

Foram gravadas interpretações memoráveis de um timaço da MPB: Ângela Maria, Beth Carvalho, Cauby Peixoto, Dona Ivone Lara, Elba Ramalho, Emilinha Borba, Emilio Santiago, Fágner, João Nogueira, Maria Bethânia, Marlene, Martinho da Vila, Miúcha, Nana Caymmi, Nélson Gonçalves, Paulinho da Viola, Pery Ribeiro, Tito Madi, Tom Jobim e outros.

Homenagear as mulheres forjadas no coração de compositores e poetas em si já era algo inédito e ganhou mais densidade quando passou a integrar uma campanha meritória: toda a arrecadação com a venda do álbum seria destinada à criação de um banco de coleta de leite materno, através da Legião Brasileira de Assistência, para distribuição entre crianças carentes privadas desse alimento básico numa etapa crítica da vida, começo de tudo.

Para mim, na época recém-graduado em economia e simples curioso em marketing, grandes organizações como o BB deveriam sempre priorizar campanhas institucionais daquele tipo. São essas que consolidam na mente das pessoas uma marca, e não a oferta comum de produtos e serviços via TV, revistas e jornais, típica de fabricantes de alimentos industrializados, automóveis, bebidas, cosméticos, roupas e outros bens de consumo. 

Amante dos discos, dos livros e, em especial, do futebol, Padrinho Enoch acompanhou mesmo de longe, pelo rádio, o Vasco tornar-se gigante com um time extraordinário, considerado dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória. Em 1948, inclusive, foi o primeiro clube brasileiro a conquistar um torneio internacional fora do país: o Campeonato Sul-Americano, que deu origem à atual Copa Libertadores.

Bateu uma tristeza danada quando recebi em Maceió a notícia de que Padrinho Enoch havia sofrido um infarto fulminante, aos 66 anos, sentado na mesa em que trabalhava como contador. No começo de março de 1988, certamente ainda lhe doía a perda de Mãe Sussú, minha avó, que também partira havia menos de um mês.

Depois de sua morte, não mais voltei à Caxias. O álbum duplo “Há sempre um nome de mulher” que lhe dei foi o jeito inconsciente e antecipado de retribuir em vida o que dele herdaria no seu inventário de bens inestimáveis: o amor pela leitura, pela música e pelo Vasco da Gama — a cruz (de malta) que carrego no peito desde criança.