quinta-feira, 11 de julho de 2019

Há sempre um nome de mulher


Ele ainda tentou segurar na garganta o choro enquanto ouvia “Marina”, de Dorival Caymmi, interpretada por Nana Caymmi, que, a seu pedido, eu havia colocado no toca-discos:
— Dói muito? — perguntei a Tio Enoch, achando que o inchaço e a vermelhidão do tornozelo fosse mais uma crise de gota.
— Não é isso. Você me fez lembrar de meu irmão... seu pai, quando era criança. Todo dia, depois do almoço, eu deitava aqui na minha rede para cochilar um pouco, escutando baixinho um disco que ele escolhia... — respondeu, a enxugar os olhos.
Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí.

Era chamado de Padrinho Enoch pelos 10 irmãos mais novos (Baíca, Jerônimo, Marcelino, Tereza, Agostinho, Antonia, Cazuzinha, Leó, Cristina e Vitória). Para os “Torres da Rocha”, alguém acima de irmão e pouco abaixo de pai que fazia jus à reverência porque, desde cedo, corajosamente deixou o sítio “Maravilha” onde nasceu (zona rural da pequena Colinas) para morar numa cidade maior, o que seria fundamental para o desenvolvimento de todos os seus “afilhados”. 

Meu pai, Agostinho, era um deles.  Por conta de tanta admiração e respeito, em março de 1958 não mediu esforços para fazer uma traumática viagem da Paraíba ao Maranhão, levando-me para ser batizado pelo irmão-ídolo.

Passados mais de 60 anos, minha mãe prefere não lembrar da experiência de voar com uma criança com apenas 20 dias de nascida, vomitando de meia em meia hora, com dores de ouvido, reflexos das mudanças bruscas de pressão e da turbulência de um bimotor DC-3 onde passageiros bebiam e fumavam em quase todas as poltronas da aeronave.  

Mas voltemos à música que, 30 anos depois de meu batizado, emocionava Padrinho Enoch em sua rede de algodão. “Marina” é uma das faixas do álbum fonográfico duplo “Há sempre um nome de mulher” que eu lhe trouxe de presente em janeiro de 1988, quando viajei de Maceió até Caxias para rever tios e primos. 


No ano anterior, em ação de marketing institucional muito bem concebida, o Banco do Brasil patrocinara a produção do álbum duplo temático com canções intituladas com nomes de mulheres míticas: Amélia, Ana Maria, Aurora, Carolina, Chica da Silva, Conceição, Dora, Doralice, Helena, Isaura, Lígia, Luciana, Luiza, Maria Betânia, Maria Candelária, Madalena, Rita, Rosa Morena, Yolanda, entre outras.

Foram gravadas interpretações memoráveis de um timaço da MPB: Ângela Maria, Beth Carvalho, Cauby Peixoto, Dona Ivone Lara, Elba Ramalho, Emilinha Borba, Emilio Santiago, Fágner, João Nogueira, Maria Bethânia, Marlene, Martinho da Vila, Miúcha, Nana Caymmi, Nélson Gonçalves, Paulinho da Viola, Pery Ribeiro, Tito Madi, Tom Jobim e outros.

Homenagear as mulheres forjadas no coração de compositores e poetas em si já era algo inédito e ganhou mais densidade quando passou a integrar uma campanha meritória: toda a arrecadação com a venda do álbum seria destinada à criação de um banco de coleta de leite materno, através da Legião Brasileira de Assistência, para distribuição entre crianças carentes privadas desse alimento básico numa etapa crítica da vida, começo de tudo.

Para mim, na época recém-graduado em economia e simples curioso em marketing, grandes organizações como o BB deveriam sempre priorizar campanhas institucionais daquele tipo. São essas que consolidam na mente das pessoas uma marca, e não a oferta comum de produtos e serviços via TV, revistas e jornais, típica de fabricantes de alimentos industrializados, automóveis, bebidas, cosméticos, roupas e outros bens de consumo. 

Amante dos discos, dos livros e, em especial, do futebol, Padrinho Enoch acompanhou mesmo de longe, pelo rádio, o Vasco tornar-se gigante com um time extraordinário, considerado dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória. Em 1948, inclusive, foi o primeiro clube brasileiro a conquistar um torneio internacional fora do país: o Campeonato Sul-Americano, que deu origem à atual Copa Libertadores.

Bateu uma tristeza danada quando recebi em Maceió a notícia de que Padrinho Enoch havia sofrido um infarto fulminante, aos 66 anos, sentado na mesa em que trabalhava como contador. No começo de março de 1988, certamente ainda lhe doía a perda de Mãe Sussú, minha avó, que também partira havia menos de um mês.

Depois de sua morte, não mais voltei à Caxias. O álbum duplo “Há sempre um nome de mulher” que lhe dei foi o jeito inconsciente e antecipado de retribuir em vida o que dele herdaria no seu inventário de bens inestimáveis: o amor pela leitura, pela música e pelo Vasco da Gama — a cruz (de malta) que carrego no peito desde criança.

37 comentários:

  1. Não conheci mas gostaria de ter conhecido Seu Enoch. Vivente nordestino pode ser considerado, pelos padrões da época, um longevo. Fica muito claro pelos seus escritos que nossa vida consiste numa soma soma de retalhos: uns são bons de lembrar; outros melhor esquecer. Suas narrativas estão ficando boas, não pelo fato em si, mas pela simplicidade da narrativa.
    Tenho intimidade para julga-lo. Foi com você que aprendi a escrever. Ainda estou aprendendo.
    ACCampos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ensinei menos do que aprendi de banco com você, amigo. Enfim, como sempre acontece, aprendemos e ensinamos todo dia, o dia todo.

      Excluir
  2. Mais uma bela história, permeada de algo que também sempre rende boas músicas: saudade.

    ResponderExcluir
  3. Linda história, meu amigo... quanto ao álbum, ainda o guardo como lembrança... mas pena que o Seu Enoch deixou de ouví-lo tão cedo... quem sabe esteja contando essa mesma história em algum lugar especial.

    ResponderExcluir
  4. Caro Amigo Hayton, Estas suas últimas belas criações são internacionais ? Este álbum duplo “Há Sempre um Nome de Mulher” é tão bom que confesso: guardo um exemplar até hoje.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não são internacionais coisa nenhuma, Liga! Eu as carrego dentro de mim há muito tempo. É que só agora acharam de acordar.

      Excluir
  5. "Fui, não sei onde.
    Visitar, não sei quem.
    Fiquei assim...Não sei como.
    Chorando...Não sei porque.
    Estava em minha casa,
    No bolso nenhum vintém,
    Mas estava decidido,
    Visitar, não sei quem.
    Estavam as ruas desertas,
    Estavam as praças também,
    Fiquei triste...pesaroso...
    Chorando...NÃO SEI POR QUEM!"
    ( Enoque Torres da Rocha)
    Hão de achar sem graça e sem significado importante, esse poeminha singelo. Mas é a melhor recordação que a menina de 9 anos tem de seu Tio Enoque.O primeiro poeta, escritor e amante da boa música ( impressionada com a coleção de vinil que ele detinha).

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bem lembrado. Só um pequeno reparo: o “Enoch” dele era bíblico, com “ch” no final. Gostava porque fechava com a inicial de seu nome e do meu.

      Excluir
    2. Outra dele, só aparentemente ingênua, que guardei na memória: “a vida é doce/bem doce é sua doçura/tão doce talvez não fosse/se nessa vida tão doce/não se tivesse amargura.”

      Excluir
    3. Família Torres da Rocha, que nos passou muita inteligência e amor à leitura . Tenho sim vagas lembranças de Tio Enoch, quando fui visitá-la ao 7 aninhos, para conhecer a tão falada família de papai, a Mãe Sussu, Tia Vitoria e Tia Cristina. Esse texto lembrou- me bem do casarão do Tio, e da Radiola enorme que ele tinha na época...

      Excluir
  6. Muito legal Hayton. Quantas memórias, haja neurônio e coração meu amigo...lendo suas crônicas me lembrei do que disse a um amigo que me perguntou como era trabalhar no BB. Aí respondi que isso me possibilitava conhecer os dois países existentes no Brasil, a Bélgica e a Índia. Hj vejo o tanto que conheci deste País trabalhando 12 anos na área de pessoal e 7 anos na FBB. Caxias é uma bela cidade que também conheci...conheci o trigo e a soja, mas também a macaxeira e o bacuri. Eita País lindo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Como velejador incansável, você deve ter histórias bem legais pra contar. Mas precisa ancorar vez por outra, Fada.

      Excluir
  7. Rapaz, ao fazer uma faxina no almoxarifado de brindes da Diretoria de Marketing do BB, lá para os idos de 2010, encontrei alguns exemplares remanescentes dessa ação promocional, em perfeito estado, mais de 20 anos depois. Quem gostou foi meu velho pai, agraciado com um "Há sempre um nome de mulher" que, segundo ele, não era um álbum de músicas, mas sim de grandes poetas e suas obras.

    ResponderExcluir
  8. E onde foram parar os outros 19 exemplares, Rodrigo? Digitalizou algum? Alguns leitores desta crônica certamente gostariam de ouvir o álbum. Abração

    ResponderExcluir
  9. Bela crônica e bela personagem. Abraço do Sidney.

    ResponderExcluir
  10. O que você pede que eu não lhe entrego?

    O álbum completo

    https://m.youtube.com/watch?v=xXA_EEcCLUs

    ResponderExcluir
  11. Que beleza, Dedé! É só baixar e curtir. Numa redezinha de algodão, de preferência.

    ResponderExcluir
  12. Show de bola, como sempre. Deve ser doido, nos dias atuais, verificar a situação que o Vasco se encontra. Como diria o poeta, " Na vida passa, tudo passará ", esperando que o Vasco volte a ser o Expresso da Vitória. Rsrsrs

    ResponderExcluir
  13. Muita emoção! Principalmente revendo o que ele deixou de sua autoria.Creio que Antonieta ainda tem muita coisa guardada,seus poemas, seus discos etc.
    Vou ver se consigo alguns de seus poemas e mando pra você.

    ResponderExcluir
  14. Que legal, agradeço e aguardo. Abração

    ResponderExcluir
  15. Tem uma música de Nelson Gonçalves chamada "Deus, São Jorge e a mulher", música é coisa boa, com nome de mulher melhora. Parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir
  16. Hayton, estive em Caxias com tia Cristina e vi várias poesias do tio Emocionante. Lindas. Ele era muito admirado em tudo como pessoa apaixonada pela vida e isso demonstrava nos seus te textos. Com você não é diferente, primo. Parabéns pela bela criação. Dá aquela viajada no tempo.

    ResponderExcluir
  17. Muito bom. Cada dia mais encantada com seus textos.

    ResponderExcluir
  18. Show! Dá vontade de ter conhecido e convivido com todos os personagens que você evoca e registra tão bem !

    ResponderExcluir
  19. Parabéns pela crônica, Hayton!
    Este disco é ótimo. Pena que me desfiz dos discos de vinil quando fui para Belo Horizonte. Este disco eu dei para um conhecido meu que, à época, fazia a seleção de músicas da Rádio Educativa.

    ResponderExcluir
  20. Sempre contando belas histórias. Parabéns meu amigo.

    ResponderExcluir
  21. Muito bom. Embora seja triste pensar no Vasco dos tempos modernos. Bate uma tristeza!

    ResponderExcluir
  22. A crônica periódica do Hayton já esta se tornando um prazeroso hábito de leitura de algo leve, inteligente e gostoso de ler. Mais um texto sensacional PARABÉNS

    ResponderExcluir
  23. Maravilha! Suas crônicas são bem reais, vc nos faz reviver o passado como um filme em câmera lenta...
    Tio Enoch, realmente foi um grande homem:
    - Amante da música ( quando ele faleceu tinha um acervo com mais de 2.000 Lps;
    - Do Vasco da Gama (seu time do coração);
    - Da leitura e da escrita...
    Meu pai Sebastião, sendo o mais velho dos treze irmãos, tinha uma grande admiração por ele. Aliás todos nós tínhamos, era uma pessoa de um grande coração.
    Valeu primo!
    Maria de Jesus Rocha

    ResponderExcluir
  24. Meu Amigo Hayton,
    Seus textos são retrato da Vida.
    PARABÉNS.
    Forte Abraço

    ResponderExcluir
  25. Sendo vascaíno Sr Enoch já fez por merecer todos os títulos.

    ResponderExcluir
  26. Tenho este disco. Assim como Enoch, trasporto-me para mundos da saudade, do amor e da vida plena quando escuto as belas canções ali presentes. De fato, há sempre um nome de mulher.

    ResponderExcluir
  27. Você falou nesse texto, sobre respeito, amizade e cultura. Ah, a bela cultura que nos abastece diariamente de uma riqueza infinita de valores diversos!

    ResponderExcluir
  28. Admiro como as famílias nordestinas conservam histórias, relacionamemtos e memórias onde, cada um, já é suficiente para gerar um livro, um filme ou um bom texto para nos emocionar. E, tendo você para relatar, fica sempre melhor!

    ResponderExcluir
  29. Sua menção à "Marina", para além de saudosa e bela lembrança por você trazida, fez-me recordar de recente entrevista que o Toquinho (de quem sou fã) concedeu a Mônica Bergamo, na FSP (14/07/2019. Li, na tela do celular, enquanto tomava café, em desconfortável e desbalanceada mesa do Pão de Açúcar, aqui de Brasília). Toquinho, enquanto me deixava em catarse com as histórias de sua parceria com Vinicius, expunha sua indignação com esse "mundo chato", no qual a canção ícone da bossa nova seria, na opinião dele, hoje, "execrada". O passado pode, até, ter seus pecados que precisam ser purgados. Mas, essa onda revisionista que parece querer jogar tudo no fogo da inquisição pode tomar de assalto belezas como as que você relatou. Rogo para que haja vozes e forças que não nos deixem atingir esse sinistro patamar. Abraço.

    ResponderExcluir
  30. Hayton, escolhi ler inicialmente essa crônica, porque lembro desse disco e acho que ainda o tenho! Adorei! Foi uma viagem no tempo! E o bacana é você se sentir o observador da cena, tão bem descrita que permite ser imaginada!

    ResponderExcluir

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor ...