Fantasmas não existem


Nomes agora não vem ao caso, mas tudo aconteceu ali na metade de 2002. 

Minha secretária sentiu-se aliviada quando lhe pedi que passasse a ligação telefônica de uma mãe desesperada, a dizer que só faria uma denúncia gravíssima se falasse diretamente com o diretor.

– Bom dia, posso ajudá-la?
– Não acredito! É o senhor mesmo?
– Claro. Pode falar, por favor.
– O senhor sabia que meu filho está perdendo o emprego porque é negro?
– Isso é muito sério. Conte mais, por favor.
– Ele é bom filho, estudioso, inteligente, mas trabalha no meio de gente metida a besta... Sofre muito. Sabe que vai ser demitido.
– Qual o nome completo dele? Vou ver o que está acontecendo e falo de novo com a senhora ainda hoje.
– Moço, me ajude! Meu filho não pode perder esse emprego. A gente é pobre, ele é nossa esperança...

Vi que se tratava de funcionário no último mês do chamado estágio probatório de 90 dias – processo que visa aferir se a pessoa aprovada em concurso público possui aptidão e capacidade para o desempenho do cargo no qual ingressou – que antecedia o ingresso em definitivo na empresa.


Morador de Samambaia, fora chamado rigorosamente dentro da ordem classificatória de aprovação no concurso público.  Preencheria vaga na unidade instalada no Itamaraty, Esplanada dos Ministérios, em Brasília.


A cidade-satélite de Samambaia, hoje com mais de 230 mil habitantes, nasceu oficialmente em 1985, com a remoção de áreas ocupadas de forma irregular, como Invasão da Boca da Mata, Asa Branca e outras. Era parte do Núcleo Rural de Taguatinga que, desmembrada, passou a ter administração própria no Distrito Federal.

Itamaraty é o nome do palácio que abriga o Ministério das Relações Exteriores, responsável pelo contato diplomático com governos estrangeiros e organizações internacionais, serviços consulares e toda a burocracia relacionada à proteção da imagem do Brasil no exterior.

Pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, código do consumidor, avaliação de desempenho, tarefas escolares na faculdade etc. –, o rapaz acabou desorientado, perdido.


Já não interagia de forma espontânea com clientes – boa parte engravatada, culta, poliglota, natural no recinto – nem com colegas de trabalho. Também demonstrava insegurança ao prestar esclarecimentos, pouca iniciativa e, por isso, havia "dúvida quanto à aptidão para a carreira”, no entender de seu chefe imediato.


À noite, retomei a conversa por telefone com a mãe aflita e disse sem muita convicção  que para mim o caso não envolvia preconceito. Não consegui enxergar com segurança,  naquele dia, se cor da pele, traje humilde e sotaque também  estavam de fato pesando na avaliação preliminar que se fazia.


Mas assegurei à mãe que, se o filho dela fosse bom mesmo, teria noutro ambiente mais duas semanas para provar isso. Já havia orientado meu pessoal a flexibilizar a regra – por minha conta e risco – para que o garoto concluísse o estágio probatório em Samambaia, onde nasceu e se criou.


Duas semanas adiante, liguei pro novo chefe dele para saber o desenrolar dos acontecimentos. A resposta me impressionou:

– O moleque já é o melhor funcionário que temos. A clientela gostou dele, é ligeiro, trabalha feliz e ainda ajuda os colegas porque conhece do serviço como nenhum outro.

Nem recordava mais do caso quando, meses depois, já como superintendente do Distrito Federal – havia sido exonerado do cargo de diretor em meio ao turbilhão de mudanças que sacudiu o país e a empresa no começo de 2003 –, participava de um café da manhã com clientes em Samambaia.


Na ocasião, falaram de uma pessoa que queria me conhecer. Fui até o rapaz que conversava com uma senhora na plataforma de atendimento. Ao me ver, levantou-se e estendeu a mão:

– Muito prazer! Eu queria apresentar minha mãe e agradecer o que o senhor fez por mim.
– Se você quer agradecer a alguém, dê um abraço em sua mãe, uma mulher corajosa, determinada, que nos poupou de um vexame, de cometer uma injustiça.
– Mas se o senhor não ouvisse o que ela tinha a dizer...
– Olhe bem: importante é você perceber que na empresa não existe preconceito. Surgem oportunidades todo dia e para quem quer crescer, o céu é o limite.
– Sei disso...  – respondeu, afagando os cabelos da mãe orgulhosa de seu rebento.

O tempo passou e a última notícia que tive desse colega foi em 2013, mais de 10 anos depois do episódio. Ocupava cargo de confiança na Ouvidoria Interna, canal de comunicação direta dos funcionários, especializada em receber denúncias sobre conflitos, desvios de conduta ética e descumprimento de normas.


Talvez veja fantasmas onde nunca existiram, mas continuo sem respostas para algumas perguntas que me fiz a vida inteira: por que não vi um presidente negro em mais de 40 anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só houve um em mais de dois séculos de história? 


Deve ser por isso que me assombram mais os vivos  com seus preconceitos de cor, gênero, origem, classe social, religião etc.  do que os mortos.      




Comentários

  1. Perguntas que também me faço e, algumas vezes e em determinadas situações, não gosto de coisas que me passam pela cabeça. Ótimo texto

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    1. Pois é, Braulino. E o que dizer da situação das mulheres? Conheci algumas extremamente talentosas que, mesmo assim, nunca tiveram a menor oportunidade de chegar nem a uma vice-presidência – ainda que não acreditemos em fantasmas.

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  2. Às vezes precisamos ouvir e oportunizar que as pessoas mostrem seus valores, Hayton!

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  3. É bom ler um bom texto assim de manhã. Preconceitos ainda existem, infelizmente, menos, mas existem. Já sofri na pele essa desgraça, não por ser Negro, mas por ser Nordestino. Quando aos 16 anos fui estudar em Uberaba, tive que mentir que era Goiano, para conseguir amizade com os colegas. Melhorou um pouco. Só um pouco

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  4. Excelente texto amigo! Não é à toa que você é benquisto no BB, pois inúmeros casos são contados sobre suas atitudes justas e sem preconceitos. Nos meus trintas anos de BB não vi um Presidente negro ou mulher. Porquê? Competência, aptidão etc?

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  5. Mais uma vez um excepcional texto, acima de tudo, uma triste realidade em nosso querido Brasil.

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  6. Quantos se perderam no caminho por falta de oportunidade de provar seus valores e por absoluta falta de sensibilidade de gestores. Parabéns

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  7. Texto saboroso!!! Como o rapaz da história, muitas outras pessoas tiveram uma segunda chance com você. Vi e vivi isso pra garantir que é verdade!!! E o mundo seria melhor se tivéssemos mais pessoas com coragem pra ajudar, mesmo se arriscando a errar.

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  8. emocionante Hayton. Lembro disso. vc me contou.

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  9. Quantas vezes podemos fazer algo, por nossa conta e risco, que mudarão os cursos e contextos da história? Quantas vezes temos o poder de subverter a ordem reinante e promover o inusitado, porém justo? Parabéns amigo. Lembrei de uma mãe que também me abordou dizendo que o filho dela não colou na prova do Progrid, e que por ter sido desclassificado da seleção estava em pânico e querendo desistir de viver. Solicitei aos nosso melhores hackers que investigasse a máquina na qual ele fez a prova, para entender o porquê dele ter pego em nossos saitemas de segurança. O pessoal achou um site de mercado financeiro, logado na máquina, o que era proibido. O micro não podia estar ligado na WEB externa, durante a prova. Solicitei o endereço do site. Liguei para eles e perguntei qual o acesso que o BB faz na página deles, e por que faz. Descobri que o site implanta, por convênio, um robô nas máquinas autorizadas, que ficam pingando na rede externa, sem qualquer iniciativa humana. A cada 5 min a máquina do colega, em, segundo plano, sem intervenção dele, se conectava com este sitexe atualizava indicadores financeiros do Mercado, e o BB pagava por isso. Então, tínhamos cometido uma injustiça. E a lista dos aprovados já estava divulgada. Levei o caso ao, diretor, Luizinho, que se indignou com a injustiça. E, pessoalmente foi ao VP e juntos ao Presidente do BB. Foi construída uma Nota e o Conselho Diretor aprovou o ingresso do colega na Ditec, aditando a lista. Corremos riscos? Sim. Mas, fizemos o que era pra ser feito. Obrigado pela inspiração. Nem sempre podemos descumprir regras, mas pra que precisaríamos de gerentes se só as mesmas funcionassem, em 100% das situações?

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    1. A rigor, Ricardo, não havia nem necessidade de subverter regras para evitar esse tipo de problema. No caso do Distrito Federal - onde era elevado o “turnover” de funcionários nas agências por conta da demanda da Direção Geral -, a Superintendência, inspirada nesse episódio, começou a chamar para uma conversa prévia os 20 primeiros da lista remanescente de aprovados, próximos a serem convocados para o estágio probatório. Ali mesmo, ajustavam-se mais ou menos a necessidade do BB e a conveniência dos concursados. Nunca mais o problema se repetiu. Simples assim...

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  10. Mais uma para a coleção “histórias não escritas do Banco do Brasil”. Parabéns, Hayton! O problema talvez resida na origem. Há poucos negros proporcionalmente no Banco. A população de funcionários de forma alguma espelha a população brasileira. O herói de Samambaia já era um vitorioso por passar no concurso, não acha?

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  11. Que texto foda! História excelente e adorei a forma reflexiva da conclusão.

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  12. Puxa, que legal, Hayton!
    Fazendo a diferença na vida das pessoas.
    Parabéns!

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  13. Hayton, bela reflexão para começarmos a quarta feira. Porque será que ter um negro em qualquer posição de destaque é considerado exceção num país que grande parte da população é afrodescendente?

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  14. De vez em quando um saculejo do além, desvenda talentos vítimas do preconceito e das injustiças protagonizadas constantemente em nosso meio. Parabenizo você pela aceitação do saculejo e pelo belo texto.

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  15. Parabéns, Hayton! Mais que uma bonita história, um grandioso gesto,não esperaria menos de você.

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  16. Me veio à mente um caso que me mandaram apurar, quando era auditor, em que um Gerente Adjunto, cargo à época, tinha se desentendido com uma cliente que o denunciara. Após as entrevistas com diversos funcionários, fui descobrir que ele era um técnico espetacular, porém não tinha perfil para trabalhar com o público. Mas fora nomeado para o cargo porque bastava concorrer. Logo o banco entendeu que era necessário análise de perfil... e seria mais um caso a tomar o mesmo rumo, caso não fosse atendido de pronto. E a denúncia nem era grave. Às vezes existe prepotência, falta de vontade, falta de observação... foca-se no resultado, mas não se analisam os meios. Que sorte desse rapaz, tanto pela mãe quanto por você que acreditou. Mas alguns podem não ter tido o mesmo destino. Que ele seja feliz e tenha sucesso, não é?

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    1. Claro, Mazine, mas não deixo de pensar no que ainda significa, em nosso país, nascer negra, mulher, pobre e no Norte/Nordeste.
      Uma empresa secular como “a nossa” tem a obrigação de servir de referência para as demais. Se não, continuaremos nos iludindo de que vivemos em democracia.

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  17. Tem que ter sensibilidade para sentir o outro.
    Você teve!

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  18. Muito boa!! Emocionante até. E ao que parece, influenciou na carreira do rapaz que agora trabalha na ouvidoria. Quem melhor para apaziguar conflitos?...

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  19. Primo Hayton, cada vez te admiro mais pelo nível de sensibilidade que você tem. Louvo a Deus por ainda existirem pessoas como você, predicados que se tornaram raros, hoje em dia. Mas que bom que você ouviu essa mãe é contribuiu com o jovem em seu crescimento profissional. Era vital pra família o emprego. Deus tem te recompensado grandemente, tenho certeza disso. Parabéns por mais essa crônica linda. Valeu mesmo. Já fico no aguardo da próxima. Um abraço

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  20. E não é que você tem razão? Nunca vi um presidente do BC, nem do BB e nem de outros similares negros... Por que será???? Parabéns mais uma vez pelo texto.

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  21. O preconceito velado, no Brasil, é como uma chaga silenciosa que sufoca, aterroriza e tenta fazer calar as vozes de parcelas da população historicamente marginalizadas. Preconceitos de todos os matizes, tristemente reafirmados, no mundo atual, por grupos de pressão detentores de riqueza e/ou poder, moldando o mundo à sua imagem e semelhança, pela exclusão dos que não lhe agradam. O painel de desigualdade global padece confirmar essa tese. De minha parte, sou cético quanto a melhoras desse quadro.

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    1. Parece que vejo você se referindo aos migrantes em desespero que morrem de fome e de frio tentando cruzar a fronteira do México para os EUA. Ou aos africanos que perdem a vida no Mediterrâneo na esperança de dias melhores, sob o olhar indiferente e perverso de quem, por acaso, nasceu em condições mais favoráveis.
      “...Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/Apenas sei de diversas harmonias possíveis sem juízo final/Alguma coisa está fora da ordem/Fora da nova ordem mundial...” (Caetano Veloso)

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  22. Excelente reflexão, Jurema!
    Desconfio que o preconceito, ainda que de forma velada, está presente na realidade do ser humano, “com viés de baixa” (pelo menos espero).
    Ao que parece, as pessoas, de certa forma, estão sempre procurando algum tipo de apoio para se diferenciarem das outras. Possivelmente porque buscam se sentirem “especiais” sob algum aspecto.. poder, status, dinheiro, onde nasceu, onde mora, beleza, estatura física... e por aí vai.
    Parece estranho, mas não incomum, flagrarmos brasileiros se queixando da forma com que os norte americanos tratam os latinos, mas são capazes de olhar com parecido desprezo para os paraguaios e bolivianos, por exemplo.
    E no nosso querido Brasil? Há quem já até defendeu separar o sul do “resto”. Esse “bem querer” também não é diferente nas relações entre os nordestinos de estados diferentes, e aqueles “da capital “ e “do interior”. Quem é ou morou no interior sabe bem como as pessoas das “cidades pólo” vêem aquelas que vivem nos municípios de seu entorno. Na capital federal também não é muito diferente em relação às satélites. Certo dia observei uma colega de aula se queixando de como os americanos eram arrogantes e no momento seguinte comentou que determinado bar já havia sido bom, mas que agora “o povo das satélites e de Goiás havia tomado de conta”. Ou seja, pelo visto ainda teremos uma longa caminhada até azeitar a relação entre nós humanos... quem sabe um dia enxergaremos nossos semelhantes, independente da sua cor, onde nasceu ou vive, opção sexual, se gordo ou magro, bonito ou feio, apenas como pessoas com histórias de vida e valores diferentes e únicos e talvez descobrir que exatamente aí está a graça da vida e de fazer amigos!?

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  23. Como já disse antes, você consegue aliar competência profissional com sensibilidade humana, coisa rara já que os aclamados executivos em evidência não admitem isso, consideram os dois valores incompatíveis.
    Sou dos que pensam como você, conquanto a anos-luz de distância de sua competência e inteligência. Sempre pensei que as decisões administrativas não deveriam refletir tão somente a letra fria do regulamento - conquanto ela não pudesse ser desprezada - mas, buscar também preservar o bom senso já que, a não ser assim, não se precisaria mais de gente para decidir, bastaria uma máquina que, consultada após municiada com os dados frios, decidiria o que se fazer.
    De resto, o tema me é muito caro pois considero o racismo talvez a maior de todas as chagas da humanidade. Não à toa, o único ídolo que tive chamava-se Nélson Mandela, para mim a maior figura que já houve na era contemporânea. Se me tivesse sido concedida a ventura de tê-lo encontrado um dia, não hesitaria em curvar-me e pedir-lhe que me deixasse beijar sua mão. Para mim ninguém fez mais pela humanidade.

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  24. Gostei muito do texto, você foi muito humano, deu uma oportunidade e a pessoa teve segurança e aproveitou para mostrar sua capacidade.

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  25. Eatava no interior, sem Internet. Lendo o texto percebi o quanto custa pouco ser justo.Uma lição para os defensores somente de regras. Insisto em vejo na crônica que lei e justiça são "farinhas"de sacos distintos.

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  26. Hayton, bela e comovente história. Demonstra que se administra não apenas com as leis, mas, também, usando a sensibilidade.

    Os questionamentos levantados por você são pertinentes.

    Marival.

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    1. Há uma regra de ouro que, a meu ver, se sobrepõe a todas as outras: “faça aos outros somente aquilo que gostaria que lhe fizessem”. No fim, acaba tudo dando certo.

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  27. Este comentário foi removido pelo autor.

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  28. Logo nas primeiras linhas do texto me lembrei do caso que você havia me contado num dos nossos gostosos bate-papos.
    Amigo você me ensinou muito, e mais do que ensinar me deu a oportunidade de poder fazer algo por alguém, enquanto gerente da Ag. São Pedro, quando fui procurada por uma senhora, também desesperada, me pedindo para ajudá-la a resolver um problema, para ela sem solução, e com seu apoio conseguimos. Pense numa senhora feliz!
    Obrigada por você existir.

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  29. A verdadeira gestão pode ser dar ao luxo de, quando oportuno, se distanciar da ciência e abraçar a arte. Só esta nos capacita com sensibilidade e empatia, que acabam sendo fundamentais para driblar certos cenários da vida real. Belo exemplo!

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  30. Preconceito e racismo são chagas muito bem instaladas no seio da nossa sociedade.

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  31. Isso.Todos os gestores tem que ter sensibilidade e ouvir os colegas

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