Não deu, Elis
Na segunda metade de 2014, a turma que trabalhava comigo na diretoria de marketing do Banco do Brasil (Avelar Matias, Delano Valentim, Fernando Vieira, Gissanne Alves, Hugo Paiva, Márcia Veloso, Michele Domingues, entre outras pessoas) havia recebido a encomenda de criar algo na linha do chamado marketing de experiencia, direcionado ao segmento de alta renda do eixo Rio-São Paulo.
É preciso oferecer algo que dinheiro nem sempre pode comprar como, por exemplo, jogar tênis numa manhã de sábado com Gustavo Kuerten (Guga), um dos maiores atletas da história do tênis mundial, tricampeão de Roland-Garros. Ou assistir de camarote a U2, Rolling Stones e Paul McCartney, com direito à visitas aos camarins, entre outras ações que já haviam sido realizadas.
Das possíveis ações que discutimos, uma delas seria oferecer jantar em grande estilo para 80 pessoas, assinado por renomado chef, com direito a "pocket show" inédito, em termos de MPB.
Na ocasião recordei de uma passagem marcante do livro "Noites Tropicais", do escritor, compositor e jornalista Nélson Motta. Sugeri, então, que procurássemos a cantora Maria Rita e seu pai, o pianista e compositor César Camargo Mariano, para que pensassem sobre como resgatar um pouco da mística da mãe e esposa Elis Regina (1945 – 1982), que falecera prematuramente, aos 37 anos, no esplendor de sua carreira artística.
Na ocasião recordei de uma passagem marcante do livro "Noites Tropicais", do escritor, compositor e jornalista Nélson Motta. Sugeri, então, que procurássemos a cantora Maria Rita e seu pai, o pianista e compositor César Camargo Mariano, para que pensassem sobre como resgatar um pouco da mística da mãe e esposa Elis Regina (1945 – 1982), que falecera prematuramente, aos 37 anos, no esplendor de sua carreira artística.
Dez anos antes de sua morte, Elis estava se divorciando do compositor e jornalista Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994), no começo de 1972, quando teria ouvido a primeira parte de uma canção que estava sendo composta por Chico Buarque e Francis Hime:
Tanto ela quanto César (nessa época, seu pianista e diretor musical) ficaram tão impressionados que a gravação foi marcada para três dias depois. Até lá, o produtor Roberto Menescal cobraria de Chico a segunda parte da letra da música.
“Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei/Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei/E me arrastei, e te arranhei/E me agarrei nos teus cabelos/Nos teus pelos, teu pijama/Nos teus pés, ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta/Reclamei baixinho...”
Tanto ela quanto César (nessa época, seu pianista e diretor musical) ficaram tão impressionados que a gravação foi marcada para três dias depois. Até lá, o produtor Roberto Menescal cobraria de Chico a segunda parte da letra da música.
Enquanto aguardava o dia da gravação, Elis convidou alguns amigos, entre eles o próprio César, para assistirem a um filme em sua casa. Durante a projeção, ela deu um jeito de entregar um bilhete a César, que leu e se assustou: era uma cantada explícita. César, embora interessado, ficou inseguro e desapareceu por 48 horas. Na hora da gravação, porém, chegou ao estúdio.
Nélson Motta assim descreveu em seu livro este momento mágico: “...Elis sorriu sedutora. César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de 'Atrás da porta'. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na área técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos. Elis chorava abraçada por César. Juntos, César e Menescal foram levar a fita para Chico, que ouviu... e terminou a letra ali mesmo, no ato".
"... Dei pra maldizer o nosso lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço/Te adorando pelo avesso/Pra mostrar que inda sou tua/Só pra provar que inda sou tua.”
Em outubro de 1980, oito anos depois da gravação original de "Atrás da Porta", quando o casamento de César e Elis estava por um fio de cabelo, eles protagonizaram juntos um capítulo singular da série "Grandes Nomes", exibida pela “Rede Globo”, que ficou tatuado na memória dos amantes da MPB: Elis cantou de forma tão intensa e visceral que, no fim, desabou no choro.
O ponto alto do jantar em grande estilo que pretendíamos oferecer seria ver e ouvir pai e filha numa nova versão da música imortalizada pela mãe. Isso, tínhamos certeza, dinheiro não compraria!
Mas não deu certo. Maria Rita não pôde abraçar o projeto. Com o sucesso de seu álbum “Coração a Batucar”, andava totalmente envolvida numa edição especial em CD e DVD que lançaria no início de 2015.
A alternativa que encontramos – Vanessa da Mata cantando o melhor de Gilberto Gil, em novembro de 2014 – , acabou sendo muito bem recebida pelos clientes, tanto no Rio como em São Paulo. Mas nada arrebatador, raro, capaz de ser lembrado dali a 10 ou 15 anos.
Talvez a vida esteja sempre a nos lembrar que cada momento é único, mesmo que lembremos como se fosse hoje, mesmo que escrevamos sobre eles, mesmo que os reencenemos ... todo momento é especialmente único. Nossa existência talvez se destine a melhor sorver cada um deles. Que delícia te ler sempre.
ResponderExcluirTudo que envolve a "gauchinha" tem algo superior. O texto deixa um roteiro do longo caminho entre o ideal e o possível e a marca da não omissão. Uma viagem no mundo da música com um texto raro.
ResponderExcluirGrande Hayton,
ResponderExcluirRelembrar destes momentos é viver com muita Energia e sabor a Vida. Dividir com seus Leitores histórias que permitem grande reflexão, aprendizado e ótima leitura.
Hayton, Aristóteles disse que nada há na vida que não passe pelos sentidos. Imagina a força desta experiência que seria proporcionada pelo BB...fiquei a viajar nas poddibilidades de execução desta idéia com ima produção competente pra criar no contexto...muito massa
ResponderExcluirIsso mesmo, Fada! Com alguma imaginação é possível criar experiências interessantes com canções de tanta gente talentosa como Cartola, Jobim, Chico, Nelson Cavaquinho etc.
ExcluirBoa reflexão sobre os caminhos do sucesso. Sempre existirão boas vias, mas os quebra molas teimam em aparecer.
ResponderExcluirParabéns.
ACCampos.
Elis era incrível... ela não cantava, ela vivia intensamente aquele momento. Seu coração se doava... e se repetisse a música, as emoções eram outras, mais intensas ainda. Ela nunca era a mesma. Era tão perfeita nisso que a idolatramos até hoje...
ResponderExcluirHayton, marketing de experiência está sendo ler seus textos
ResponderExcluirA vida é surpreendente, nem sempre é como a gente quer. O tempo de Deus é diferente do nosso. Elis foi sublime. Cumpriu seu papel, deixou seu nome escrito neste Planeta Terra.
ResponderExcluirÓtimo texto e ótimas lembranças. A música que ouço, de quando em quando, se percebo que minha sensibilidade está deixando a desejar.
ResponderExcluirHayton, creio que, na nossa convivência, vi apenas um pequeno pedaço seu. Esse conhecedor, envolvido e profundamente sensível ser musical é mais do que eu conhecia.
ResponderExcluirFicou muito bom. A ideia de reunir pai e filha foi excelente. Independente da dedicação ao novo trabalho por parte da Maria Rita, acho que ela perdeu excelente oportunidade de homenagear a mãe e, quem sabe, lançar um trabalho inédito ao lado do pai ( o irmão, Pedro, fez isso e ficou sensacional ). Mas também acho que a Maria Rita é um pouco mascarada, por isso nunca me encantou, como me encantou a mãe.
ResponderExcluirPois é, Fonseca. Se tudo saísse como imaginávamos, seria possível gravar CD e DVD para distribuir com os principais clientes do banco em todo o país, no Natal daquele ano, como uma “caixa de biscoitos finos”.
ExcluirExcelente texto, ótima idéia essa do encontro entre pai e filha, o que se tornaria antológico. Pena que não ocorreu como imaginado.
ResponderExcluirComo tambem não deu Hayton para fazer mais do que duas edições do Circuto Banco do Brasil. Foi muito bom participar da criação, ver o "filho nascer" e se transformar em um projeto de sucesso. Orgulho de ter feito parte desta história. Grande abraço.
ResponderExcluirHayton, pude observar nessa nova crônica, a vida real como ela é, por detrás da vida dos nossos grandes ídolos, cheios de emoções como todo mundo, rendição a um amor ali latente, momentos que Elis os eternizou com sua bela música, uma voz inconfundível. Seria bom se tudo acontecesse como o planejado, mas valeu cronista. Parabéns mais uma vez por mais este texto maravilhoso.
ResponderExcluirUm abraço
Lêda Tôrres
Muito bom, Hayton! Arrisco a dizer que a melhor fase (a mais prazerosa pelo menos) de sua brilhante carreira do Banco deve ter sido como Diretor de Marketing do BB. Mas para fazer valer a fama de chato ouso dizer que conheço outra versão para a segunda parte de “atrás da porta”. Chico e Francis Hime teriam empacado no final da primeira parte. Foi numa festa barulhenta que eles a um canto descobriram o último fio da meada: “dei pra maldizer o nosso lar”. Vou ver se acho onde li isso. Sou seu fã. Abraço!
ResponderExcluirNão creio, Diniz, que haja outra versão da história da segunda parte de “Atrás da porta”, diferente daquela do livro “Noites Tropicais”, de Nélson Motta, em que me inspirei para escrever esta crônica. Fui checar outras fontes e encontrei a mesma versão, como, por exemplo, na página 107 do livro “Chico Buarque - História de canções”, de Wagner Homem: “... Na casa dos pais de Olívia Hime, em Petrópolis, durante uma reunião de amigos, Francis começou a cantarolar a música ao piano e Chico fez o que nunca havia feito nem voltaria a fazer: compor na frente dos outros. Conforme ele mesmo diz, ‘tenho vergonha de fazer na frente dos outros’. Prefere a solidão do seu estúdio. Mas com ‘Atrás da porta’ foi diferente. Na mesma hora, no meio da confusão, saiu a primeira parte da letra. E parou aí...” “... A segunda parte não veio no dia seguinte nem nos meses subsequentes. Quem cantaria a canção seria Elis Regina, cujo disco já estava sendo gravado. Dos Estados Unidos, onde morava na ocasião, Francis fez com que o produtor enviasse a Chico uma fita com todos os arranjos e a voz da intérprete até onde havia letra e com a segunda parte já orquestrada. Não dava para protelar. O expediente usado para protelar ficou conhecido como ‘O golpe de Francis’...”
ExcluirShow de bola, como sempre. Vivendo e aprendendo.
ResponderExcluirAmigo Hayton, Excelente. Mais uma bela crônica de agradável leitura. Também sou muito fã da Elis, mas nem tanto da Maria Rita. Pena que ela não percebeu que seria uma especial e marcante homenagem para a mãe Elis.
ResponderExcluirQuantas histórias, Hayton!
ResponderExcluirAinda bem que você resolveu contá-las.
Continue!
Belas histórias! Fico perplexa com o vasto conhecimento sobre tudo.
ResponderExcluirMais um texto espetacular! Relata, com rara habilidade, a tentativa frustrada de juntar pai, mãe (ainda que em outra dimensão) e filha numa apresentação que certamente encantaria os convidados do BB. O melhor da crônica, no entanto, fica por conta da riqueza de detalhes sobre a biografia da maior cantora da MPB, embalada à luz de uma forte dose de emoção. Parabéns!!!
ResponderExcluirAgostinho Torres da Rocha Filho
Mais uma história excelente, Hayton. Eu já vi essa interpretação da Elis, é simplesmente fantástica. E a proposta foi genial, pena que não deu certo, como muita coisa na vida. Nem sempre dá certo, mas vamos em frente!
ResponderExcluirMuito bom, velho Jurema!
ResponderExcluirVale lembrar que antes de chegarmos aos nomes de Gil e Vanessa da Mata, houve uma tentativa com Caetano e Roberta Sá, que não evoluiu. Mas, o bom dessa história foi a “liga” que houve entre Vanessa, fã e admiradora, com ídolo Gil, que topou na hora construir um show, para apenas duas apresentações, dando liberdade para a equipe da Dimac participar das escolhas, inclusive do repertório.
Boas lembranças!
Sem dúvida, Avelar, boas lembranças. Mas é fato que a frustração de não ter feito a homenagem a Elis rendeu até esta crônica. Imagine se conseguíssemos. Vida que segue...
ExcluirO seu apurado gosto musical e o seu profundo conhecimento das histórias de bastidores que envolveram a criação de inesquecíveis canções em nosso País podem ser percebidos nesta e em muitas outras crônicas aqui postadas. Todos queremos estar sempre aprendendo a jogar. E, neste campo musical, você é um craque muito acima da média. Parabéns!
ResponderExcluirMaravilha! Posso imaginar sua decepção quando não conseguiu homenagear a Elis.
ResponderExcluirFazia tempos que não via uma introdução tão fenomenal.
ResponderExcluir"Nunca fui de lamentar sonhos frustrados. Meu maior temor nunca foi de fracassos pontuais no dia a dia, mas de conquistas que não fizessem muito sentido para mim ou para quem estivesse a meu lado."
Não precisava mais de nada abaixo, embora tenha me delicado com a história de Elis, amores e desamores, encontros e desencontros, a qual não conhecia. Mas, este primeiro parágrafo. Uauu, fez-me ter uma overdose de reflexões. Gratidão ao amigo. Que dom!
Desde os tempos em que se pretendia simplesmente "encantar" os clientes até os momentos atuais nos quais se buscam "experiências de usuário (de consumidor, de colaborador etc.)", tenho cá com meus botões que momentos singulares da vida são aqueles marcados indelevelmente n'alma. Esse, tentado por você e sua equipe, teria sido um deles. O mundo atual, na crise entre o "liberalismo antidemocrático" e a "democracia iliberal" (Yascha Mounk), esquece os valores humanitários e os verdadeiros "shots" de sentido que experiências como essas podem significar na vida de muitas pessoas. Cada dia mais temo por este mundo em que os 1% mais ricos ficam cada vez mais ricos, preocupados, tão somente, com acumulação de riquezas; os mais pobres não saem dessa condição e o restante da massa que gravita entre os dois caminhando para a base da pirâmide e, como resultado, a crise a que me refiro, eliminando momentos impagáveis, tais quais os citados por você. Em vez de preencher a vida com experiências, penso mais produtivo ser preencher as experiências com vida pujante, momentos marcantes que deem sentido ao agridoce caminhar da existência.
ResponderExcluirSeria uma homenagem ímpar reunir pai e filha para homenagear Elis. Mesmo que não tenham conseguido, tornou-se histórico. De qualquer forma, acho improvável que alguém no mundo consiga repetir algo parecido com o que ocorreu naquela gravação. Obrigado pela excelente crônica.
ResponderExcluirNossa Hayton, excelente idéia de reunir pai e filha,infelizmente, não pôde ser realizada.
ResponderExcluirQuanta imaginação.
"Meu maior temor nunca foi de fracassos pontuais no dia a dia, mas de conquistas que não fizessem muito sentido para mim ou para quem estivesse a meu lado".
ResponderExcluirSó esta abertura desta crônica já nos faz piruetas na alma. Amei. Esta forma pela qual tece com as letras melodias de sentido, tornam tua leitura um hábito obrigatório para quem precisa, vez oor outra, resetar vivenciais.