– Desculpe, meu senhor... Nem se preocupe. É minha rinite alérgica. Quando entro no ar refrigerado o nariz começa logo a coçar.
Soube disso por acaso ao encontrá-la no elevador de nosso prédio. Voltava do pronto-socorro ainda reclamando de dores na panturrilha (batata da perna, para alguns). Chegou a pensar em trombose, hipótese descartada pelo médico que lhe atendeu e recomendou apenas mais moderação nas atividades físicas. Caminhadas longas e danças já lhe pesam muito.
Aproveitei a oportunidade para tentar convencê-la a praticar o isolamento social que a Organização Mundial de Saúde vinha recomendando para os idosos, por conta do surto viral que dava as caras por aqui sem bater na porta e já querendo matar.
Para o seu próprio bem, procurei assustá-la ao alertar que poderia ser contaminada até pelos dançarinos a quem paga cachê todo fim-de-semana para lhe fazer companhia nos bailinhos da terceira idade. Fiz mais: recorri a alguns conhecidos em comum para que reforçassem a pressão, no sentido de protegê-la do vento mórbido que está repaginando o planeta.
Não adiantou. Pensionista de ex-funcionário do Banco do Brasil, com contas em dia e assistência médica de primeira numa terra de segunda classe, Dona Eulália é daquelas que acreditam que a confusão que está aí não passa de um complô da esquerda para derrubar os governos "patriotas" que subiram ao poder pelo mundo afora.
Em seu fanatismo ideológico, com traços de fundamentalismo religioso, vive a espalhar pelas redes sociais coisas como: “(...) É a gripezinha anual de sempre... Vamos desmascarar esta corja da mídia... Não podemos ficar a mercê desse bando de esquerdopatas... O povo não deve de jeito nenhum ficar em casa e perder o emprego (...)"
Apesar de vários filhos e filhas, ela optou por viver sozinha em seu canto, tendo por companhia apenas a tevê – não perde por nada o Brasil Urgente, apresentado pelo Datena –, o celular e um cachorro abusado da raça Dachshund, chamado Olavo – um neto dela o batizou assim porque se mete em tudo, late muito, mas só dá trabalho.
As rugas discretas e os cabelos brancos até que lhe caem bem e realçam a elegância. No auge da maturidade, continua bonita e, por isso mesmo, mais vaidosa que nunca. Não vai nem à padaria da esquina sem conferir a imagem refletida no espelho da porta de seu guarda-roupas.
Adora dançar, em especial um bolero lançado há 10 anos por Marisa Monte, do tipo “dois-pra-lá-dois-pra-cá”:
“(...) Ainda bem
que agora encontrei você,
eu realmente não sei
o que fiz para merecer
você,
porque ninguém
dava nada por mim (...)”
Com um sorriso enigmático no rosto, vira e mexe repete para as amigas que “os sonhos não envelhecem”.
Sábado, 14 de março. Fiz o que pude para que Dona Eulália não se arriscasse tanto, mas ao pegar o elevador esta noite olhou bem dentro dos meus olhos e confidenciou: “Meu filho, é dançar ou dançar! Se não dançar todo sábado, danço do mesmo jeito: dói tudo, bate uma tristeza danada... E eu vou lá me acabar no tarja preta?”
Sábado, 21 de março. Hoje não saiu de casa nem para levar Olavo lá fora para demarcar território. Eram quase 11 da noite quando me ligou. Falava baixinho, cansada, queixando-se de febre, mal-estar geral, dor de cabeça, tosse seca, dor de barriga e perda de apetite.
Liguei na mesma hora para uma de suas filhas, médica de família, especialista em cuidados primários de saúde, com quem ela não falava havia meses – rusga antiga que ora esquenta, ora esfria. Contei o que ouvira e minutos depois ela chegaria apressada para socorrer a mãe.
Tive medo de me aproximar por conta das cautelas de que tanto se fala ultimamente. Meia hora mais tarde, vi quando a médica, com seu jeito seco de ser – desde criança é assim, dizem – deixava o apartamento e entrava no elevador amparando a mãe, que carregava Olavo no colo.
Sábado, 28 de março. Passei a semana atormentado, me sentindo mal por não haver persuadido Dona Eulália a se resguardar nesses dias de escuridão, perplexidade e suspense. Ansioso com a falta de notícias, liguei para a sua filha:
– E aí, doutora, como ela está?
– Do mesmo jeito...
– Testaram?
– Não foi necessário.
– Testaram?
– Não foi necessário.
– O que ela tem?
– Saudade das amigas, dos bailinhos, da padaria... Passa já.
Menos mal. Ainda bem que solidão não cura com remédio. Vai que aparece algum leigo querendo usar a caneta para propor tratamento à base de cloroquina e a coitada acredita.