"Carpenters" em Alagoas
Muitos brasileiros nascidos no Sul/Sudeste migraram para o Nordeste nos anos 70/80 em busca de oportunidades de ascensão profissional. Além de coragem e esperança, traziam consigo o medo de encontrar a paisagem árida da caatinga com carcaças de seres derrotados pela fome e pela sede, como nos cenários espelhados nas obras clássicas Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892 — 1953), e Retirantes, de Cândido Portinari (1903 — 1962).
Com Braulino Lansac não seria diferente. Nascido em Araçatuba, polo universitário e gastronômico do Nororeste paulista, de economia bastante diversificada, ele teve uma grata surpresa ao chegar para trabalhar na pequena Anadia, na Zona da Mata alagoana, dando de cara com o horizonte verde dos canaviais em ponto de corte para a safra de açúcar e álcool da região.
Viu também que não lhe pesavam quase nada os 90 km que separavam Anadia das praias mornas e dos coqueirais do Litoral alagoano. Aquele seria o seu destino a partir de então, todo fim-de-semana, com Dayse, sua mulher, e os filhos.
Sentia-se bem. Mesmo abrindo mão do sonho de ser professor universitário de Educação Física — além de ex-atleta amador de basquete, apaixonou-se pela “área” nos Jogos Olímpicos do Canadá 1976, que assistiu de perto —, ficou feliz com a carinhosa recepção dos moradores da pequena cidade, o clima amistoso de trabalho e a perspectiva de crescimento na carreira profissional.
Ele me disse outro dia que, ao retornar de Maceió no final de uma tarde de domingo, retirava “a tralha de praia” da velha Belina na porta de casa quando ouviu ao longe “Solitaire” (clique e ouça), canção de que mais gostava no repertório da dupla norte-americana Carpenters. Chegou a comentar com Dayse: “Puxa, alguém ouvindo Carpenters em Anadia? Quanto bom gosto, hein?!”
Carpenters foi uma dupla de New Haven, Connecticut, composta pelos irmãos Karen e Richard Carpenter, que fez muito sucesso com seu estilo musical soft, bem diferente do hard rock típico das bandas dos anos 70. Do seu modo leve de ser, em 14 anos a dupla vendeu quase 100 milhões de discos pelo mundo afora. A carreira chegou ao fim com a morte prematura de Karen no começo de 1983, aos 33 anos, vítima de parada cardíaca resultante de complicações de uma anorexia nervosa.
Carpenters foi uma dupla de New Haven, Connecticut, composta pelos irmãos Karen e Richard Carpenter, que fez muito sucesso com seu estilo musical soft, bem diferente do hard rock típico das bandas dos anos 70. Do seu modo leve de ser, em 14 anos a dupla vendeu quase 100 milhões de discos pelo mundo afora. A carreira chegou ao fim com a morte prematura de Karen no começo de 1983, aos 33 anos, vítima de parada cardíaca resultante de complicações de uma anorexia nervosa.
Mas Braulino, "meu amigo Charles Brau" — tratamento carinhoso que lhe dou desde que passamos a trabalhar juntos nos anos 80, numa alusão tola à canção Charlie Brown, de Benito di Paula — continuava a descarregar sua Belina. De repente, uma nova música no ar, mais outra, todas dos Carpenters.
Ele conhecia aquele disco de cor e salteado e achava pouco provável existir mais de um vinil em Anadia. Mas, de onde estaria vindo aquele som? Logo percebeu que os acordes saíam da cela da cadeia pública, que ficava defronte a sua casa.
Ele conhecia aquele disco de cor e salteado e achava pouco provável existir mais de um vinil em Anadia. Mas, de onde estaria vindo aquele som? Logo percebeu que os acordes saíam da cela da cadeia pública, que ficava defronte a sua casa.
Luís André, seu filho mais novo, correu até lá, aproximou-se das grades e perguntou ao detento que, em êxtase, curtia aquelas músicas: “Que disco é este?” Mesmo assustado com o flagrante, o rapaz não mentiu: “É de seu pai... Maria me emprestou para que eu ouvisse no fim-de-semana. Diga nada não pra ele, senão vai mandar a moça embora...”
Quando soube do que aconteceu, Braulino ficou bastante aborrecido com a ousadia da empregada doméstica em mexer em seus discos. Nem ele mesmo correria o risco de emprestar a alguém um de seus elepês favoritos, que poderia retornar danificado por uma agulha desgastada de uma vitrola qualquer.
Mas sempre teve o coração maior do que o corpanzil de quase 1,90 metros de altura. Acabou relevando o ocorrido e perdoou Maria. Na época, já estava acostumando com o jeito solidário de ser do nordestino, sobretudo do interior, que sabe compartilhar alegria e tristeza, saúde e doença, fartura e escassez. Afinal, dizia ele, “...já éramos íntimos dos policiais e dos presos há algum tempo”.
A intimidade, nesse caso, tinha explicação de cinema (ou de tevê): toda noite, na hora do Jornal Nacional, Braulino aumentava o volume do aparelho e deixava abertas as duas lâminas da porta da frente da casa para que os detentos, empoleirados nas grades, assistissem a Cid Moreira e Sérgio Chapelin e, em seguida, à novela da oito. "O pior cárcere não é o que aprisiona o corpo, mas o que asfixia a mente e algema a emoção" (Augusto Cury).
Em contrapartida, enquanto passava o dia fora trabalhando, sua família e sua morada estavam muito bem protegidas, tanto pelos policiais como pelo olhar cuidadoso dos encarcerados. A troca era justa.
Braulino, meu amigo "Charles Brau", nunca mais deixaria o Nordeste. Depois que se aposentou, há 25 anos, escolheu a Bahia para viver o resto da vida, onde agora curte seus primeiros bisnetos. Deve ter um punhado dessas histórias para contar quando eles crescerem.
Braulino, meu amigo "Charles Brau", nunca mais deixaria o Nordeste. Depois que se aposentou, há 25 anos, escolheu a Bahia para viver o resto da vida, onde agora curte seus primeiros bisnetos. Deve ter um punhado dessas histórias para contar quando eles crescerem.
Grande Bráulio.
ResponderExcluirGente como a gente gosta; do bem.
ACCampos
Gostei do Charles Brau!
ResponderExcluirPobre Maria... só quis levar um pouco de qualidade de vida ao amado. "BRAU" foi legal demais.
ResponderExcluirTive o privilégio de ter o Braulino como meu gerente na ag.Centro Salvador, pessoa do bem com quem aprendi muito.
ResponderExcluirEsse jeito de ser e receber do nordestino não tem igual, Hayton. Apaixona e fideliza. Forte abraço!!!
ResponderExcluirEra o tempo não só dos Carpenters, mas de Terry Winter, Bread, Pholhas, Morris Albert e Billy Paul. Essa tropa tocava nas boates de Viçosa e nas festinhas da adolescência. Abraço do Sidney.
ResponderExcluirLegal. Quem diria, hein? Carpenters numa cela em Anadia, trazendo liberdade pra alma dos detentos. Show de Maria.
ResponderExcluirIncrível como é fácil e nítido os cenários imaginados em minha na mente e aprender sempre com esses exemplos...
ResponderExcluirÉ isto. Meu pai, em dois dos muitos versos que escreveu, falando sobre a viagem comarcada destino ao céu disse: "... A caridade é o preço/Que ajuda no transporte...". Façamos o bem.
ResponderExcluirA música une as pessoas...
ResponderExcluirObrigado, amigo Hayton. Gratidão por tudo, principalmente por tê-los como amigos. Saindo de onde estou escreveu uma das nossos, como a rabada preparada por dia secretária ou do Leopoldo faltando na piscina da AABB com acarajé ao molho de pimenta. Abração carinhoso a todos.
ResponderExcluir.
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ExcluirUma das nossas - sua secretária - saltando na piscina
ExcluirQuanta alegria relembrar o acarajé aos domingos na AABB em Salvador. Obrigado Braulino! Saudades de você e da Dayse. Estamos rezando pela sua saúde. Abração.
ExcluirHouve um tempo em que era preciso quase que traficar para ter acesso à informação, ao Pop. Hoje mesmo num canal que já está de meio dia pra tarde como um blog é possível ouvir a música em lide à distância de um clique. Os tempos nunca são os mesmos, as emoções, eternas.
ResponderExcluirBela crônica!!! Criada a partir de uma atitude simples e solidária de uma humilde empregada doméstica. Parabéns!!!
ResponderExcluirMuito legal, Hayton. Essa música me transporta para os bailes de sábado em Viçosa, onde a gente, junto com a parceira, alugava um espaço no salão (não mais que 1 metro quadrado) e só saída quando se lembrava que tinha que voltar à mesa para molhar a garganta.
ResponderExcluirBelos exemplos:de solidariedade, do seu amigo Braulino , e dos detentos por não permitirem que aprisionassem também suas mentes. Inesquecível Carpenters, serviu de tema para muito romance nos anos 70. Obrigada, amigo, por nos presentear com mais uma bela e emocionante história.
ResponderExcluirBelo “causo”!
ResponderExcluirMais uma imperdível, haja "causos"!!! Agora com bônus adicional, ouvir o maravilhoso e imortal Carpenters, tão precocemente extinto por acidente que escapa à capacidade humana de superá-lo. Quanto a Braulino, tive a alegria e privilégio de conhecê-lo em 1991, quando vim para Salvador como gerente da recém-criada agência Calçada - ele gerente-adjunto da Centro Salvador. Uma figura leve e doce, admirado e querido por todos. Aqui é Volney.
ResponderExcluirMuito bom causo e belas recordações do amigo e das lendas da música mundial. Em setembro passado, assistimos em SP um musical sobre eles. Um espetáculo, o grupo os imitou em alto nível. Abs
ResponderExcluirVivemos sempre pensando no futuro, mas nada melhor do que ter belas recordações da vida. Teu amigo "Charles Brau" deve estar orgulhoso da narrativa.
ResponderExcluirEssa história é ótima e as músicas dos Carpenters também
ResponderExcluirTenho uma passagem importante com o Braulino e Deize que demonstra fartamente a amizade e generosidade. A Gabriela, minha filha caçula, foi internada no Hospital Santa Izabel na UTI. Braulino e Deize foram muito presentes e até rolos de fisioterapia mandaram confeccionar para poder gerar algum conforto a Gabriela. Muita gratidão ao casal Braulino e Deize.
ResponderExcluirFui para o norte do país em 1979. Meus amigos me diziam que eu iria esquiar de jacaré, andar montado em onça pintada... não conheciam o que tive a felicidade de conhecer bem antes deles. Hoje muitos estão pelo norte, aposentados, e não voltam pro sul de jeito nenhum. Só quem prova sabe o sabor que tem... a simplicidade e cumplicidade do povo, então, cativam fortemente. Aí vamos escrevendo nossa história. Passagens, como esta, mostram o quão felizes fomos. Isso ninguém tira da gente.
ResponderExcluirBraulino, ou Biroca - como queira chamá-lo - sempre merecerá todas as homenagens possíveis pelas suas qualidades, como: caráter, brio, sinceridade, ponderação e, sobretudo, pela sua competência tanto profissional quanto no teatro com a língua portuguesa. Um grande amigo e uma pessoa admirável!
ResponderExcluirEle me dizia que você era um fdp, pois ficava mostrando vídeos de uisques escoceses, quando ele não podia beber a dose dele, antes do almoço.
ExcluirOnde escrevi teatro, leia-se trato.
ResponderExcluirO Biroca aprendeu inglês de várias maneiras. Tinha assinaturas de revistas de esporte dos EUA. Comprava livros no exterior na area de basquete e vôlei. Fez uma grande biblioteca na área de esportes, que doou para professores e alunos, quando decidiu seguir como bancário. Fez curso na Fisk, mas também comprava uns discos de aulas, Pop Music, com músicas magnificas.
ResponderExcluirHayton, nada como um link, em apenas um click para rememorar belas músicas como a dos Carpenters, também sou dessa época onde se fazia e se ouvia lindas músicas. Obrigada pelo presente da boa crônica, e das lembranças de belas músicas. Valeu a pena, um forte abraço
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