Talvez o maior obstáculo que encarei em minha carreira tenha sido administrar uma pequena agência bancária na avenida Durval de Góes Monteiro, no bairro do Tabuleiro dos Martins, principal via de acesso e saída da capital alagoana.
Depois de minha primeira passagem pela Bahia, no início dos anos 90, voltava a Alagoas. A agência era instalada em local bastante visado pela bandidagem por conta do volume circulante de dinheiro numa área em acelerada expansão econômica. Além das facilidades de escape pela rodovia BR-101.
Os bancos, há três décadas, não dispunham de sistemas de capturas de imagens, câmeras de visão noturna, reconhecimento facial e sensores que identificam situações incomuns, como alterações abruptas na temperatura do ambiente.
A Segurança Pública estadual, sabedora de que a maioria dos assaltos acontecia na abertura ou no fechamento das agências, estabelecera uma ronda ostensiva no principal corredor de entrada e saída de Maceió.
Quatro policiais a bordo de uma viatura equipada com rádio e sirene, das 9 às 17 h, cobriam os 12 km entre a antiga rotatória da Polícia Rodoviária Federal e a praça do Centenário, no bairro do Farol.
Ainda assim, o medo era grande porque nunca consegui memorizar o segredo do cofre da tesouraria. Nem faria sentido, claro, anotá-lo em pedaço de papel para consulta quando eventualmente fosse necessário.
Isso me roubava a paz de espírito para trabalhar, além de algo que não tinha preço: a esperança de ver meus filhos crescerem e, um dia, os netos chegarem. O desassossego nos rouba inclusive os sonhos.
Se ocorresse um assalto, dificilmente os bandidos acreditariam que o gerente desconhecia o segredo do cofre. Uma coronhada, na melhor das hipóteses, estragaria de vez o que restava de meus miolos em agonia.
Pior que os iniciantes no antigo ofício de roubar eram mais perigosos que os profissionais cascudos. Temendo perder a liberdade ou ser engolidos pelos "concorrentes de mercado", abusavam de crack e maconha antes do serviço. Um espirro poderia resultar em disparos contra inocentes.
Vi, no entanto, que os policiais que faziam a ronda diária e vinham confirmar conosco se estava tudo sob controle, portavam, à moda “Rambo”, coletes à prova de balas, fuzis, pistolas, cassetetes, baionetas e óculos de sol.
Mas não conseguiam esconder os sinais de quem não tomava um café-da-manhã reforçado, digno de quem saía cedo pro trabalho sem a menor convicção de que jantaria mais tarde.
O egoísmo, pelo menos em relação a outros bancos e comerciantes das redondezas, acabou falando mais alto. Antes que nos acontecesse o pior, chamei no canto para uma conversa aquele que parecia líder dos demais policiais e propus uma troca bem objetiva:
— Tá vendo aquela padaria ali na esquina?
— Tô.
— A partir de agora ela vai preparar lanche para vocês duas vezes ao dia. De manhã e de tarde.
— Como assim?
— Se vocês pararem o Gol aqui na frente, no canteiro central, todo dia às 9h45 e às 15h45 (minutos antes da abertura e do fechamento da agência), cada um vai receber um pão na chapa com queijo, presunto, ovos, tomates e um copo de leite com café.
— Começa quando?
— Hoje mesmo. Mas tem uma coisa: será servido aqui na cantina. Vem uma dupla e a outra fica na viatura lá fora. Depois, trocam de lugar.
Funcionou com a precisão de um Rolex durante alguns meses. Sossego não tem preço. Tem custo, irrisório certas horas.
Um dia, porém, uma quadrilha aos gritos invadiu a agência, ameaçando de morte meio mundo de gente. Eu estava fora, viajando havia dois meses, em missão na cidade-sede da empresa. O lanche fora suspenso por determinação superior, por contenção de despesas ou falta de amparo regulamentar para a sua contabilização.
Soube depois que o chefão da quadrilha arrastou o meu substituto até a tesouraria, sob a mira de uma pistola. Aberto o cofre, só faltou usar detergente e álcool em gel para a limpeza ser completa. Nem moedinhas sobraram.
Se estivesse no recinto, não estaria aqui contando o caso, 30 anos depois. Os marginais não engoliriam o argumento de que a memória tende a ser seletiva e só guarda o que lhe convém. Decorar segredo de cofre nunca foi importante para mim.
A parafernália eletrônica disponível nos dias de hoje, se inibe os bandidos menos organizados, ainda não é suficiente para barrar o "cangaço" moderno que volta e meia inferniza cidades e populações em todas as regiões brasileiras.
Noto, contudo, que quadrilhas mais sofisticadas têm preferido ações menos cinematográficas, via crimes cibernéticos ou, muito em moda ultimamente, via custeio "complementar" de campanhas políticas, "por fora" do fundão partidário. A reciprocidade compensa.
Aliás, é discutível essa história de que o crime não compensa. Isso diz respeito apenas aos que foram descobertos. Nada fala sobre os que nunca foram esclarecidos, seja por ignorância, negligência, má-fé ou conveniência política de interessados.
Que os bandidos que circulam por aí, inclusive aqueles que se disfarçam de xerifes acima do bem e do mal, nem tentem me roubar o sossego e a esperança de ver meus netos crescerem num planeta mais arejado, feito de ideias, compaixão e tolerância. O desassossego passou.