Era natural que ela estivesse inconformada, depois de três carnavais em Pernambuco, a sentir o asfalto chacoalhar quando o bloco Parceria atravessava a orla de Boa Viagem ou quando despertava ao primeiro canto do Galo da Madrugada, sacudindo pontes e ruas estreitas do Recife Antigo.
Dois carnavais depois na Bahia, a escutar a batida do Olodum e aspirando a poeira que subia quando Chiclete, Brown ou Ivete atiçavam a multidão, era normal que ela sofresse tendo que passar o Carnaval de 2001 em Brasília. Aliás, tanto faria se fosse lá, em Cubatão, Chernobyl ou Calcutá.
Compreendi perfeitamente. Na antevéspera do feriadão, ela pedia a todos os santos de prontidão que ele conseguisse passagens aéreas para qualquer capital nordestina, nem que fossem de Vasp ou Varig. Àquela altura, era difícil.
Assim como eu, ele também não era chegado a chuva, suor, cerveja e Engov, ao longo de quatro intermináveis dias de folia e agonia. Ela teria que se conformar. Quem sabe, no sábado estaríamos juntos desossando um pernil de cordeiro na brasa, no quintal de uma casinha em Pirenópolis, no interior de Goiás.
Deu tudo errado. Ele conseguiu um par de bilhetes para a capital pernambucana, para imensurável felicidade dela, que lamentava apenas não poder levar-me junto. Eu ficaria bem, me disse, hospedado numa confortável residência de amigos, à beira do Lago Paranoá.
Logo cedo, na sexta-feira, os dois nem se deram conta da tristeza que havia em minha cara quando me deixaram naquele local estranho, entre desconhecidos, antes de sumirem.
Com o coração partido, injustamente tratado feito cachorro, só me restava, no silêncio de minha revolta, torcer para que a viagem deles fosse “inesquecível”.
Soube depois que o comandante da aeronave, após 40 minutos de decolagem, pediu aos passageiros que mantivessem a calma e comunicou que tinha problemas. Iria reduzir altitude e velocidade ao mínimo para poder retornar ao aeroporto de origem.
Soube ainda do tititi que se instalou entre os viajantes. Ela, no desespero, chegou a questionar os céus:
– É isso mesmo? Tanta coisa por dizer, pedir, fazer... Reza, véio, me ajuda! – suplicava, agarrando-se à mão dele.
– O que cê acha que tô fazendo?
A aterrissagem limpa e suave, 55 minutos mais tarde, levou o eufórico comandante à estupidez de afirmar que, felizmente, ninguém teria o nome citado no Jornal Nacional, o que lhe rendeu estrepitosa vaia.
A aeronave passaria por ampla revisão e, caso não fosse possível o reparo, seria substituída. Enquanto isso, os passageiros deveriam aguardar, no restaurante do aeroporto, os procedimentos para reembarque.
Ela foi a primeira a se insurgir contra a possibilidade de novo embarque no mesmo avião. E angariou adesões entre as sócias de infortúnio, contando com a persuasão delas sobre seus respectivos parceiros.
Então decidiu-se entre os viajantes: ou a companhia trocava o equipamento ou teria que devolver os valores recebidos. Na dúvida, dizem, o consumidor sempre tem razão.
Ao meio-dia, um representante da empresa comunicou que a aeronave estava em perfeitas condições e que daria início ao reembarque. O bafafá foi enorme, mas não adiantou.
Como não deve ter adiantado para ele explicar a ela, indômita líder da rebelião, que a tripulação não seria louca a ponto de arriscar o próprio pescoço se não estivesse tudo em ordem.
Metade dos passageiros desistiu, pediu a devolução das bagagens despachadas e protocolou pedido de reembolso. A outra metade, porém, embarcou.
Ofereço aqui dois confeitos de hortelã a quem acertar: qual a primeira criatura a chegar ao pé da escada, com medo de ter que apontar para cima os dedinhos fura-bolos, na Esplanada dos Ministérios, atrás do bloco Pacotão?
Ela me contou depois que, logo após a nova decolagem, pegou no sono. Quando acordou, a aeronave já taxiava na pista do aeroporto de destino, sob os acordes de “voltei, Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço!”
De tardezinha, sol a magoar a ferida de minha saudade, uivando as dores de inesperado desprezo, não me envergonho de confessar: eu pulei a cerca! Cometi a maior loucura de minha vida ao decidir atravessar o Lago Paranoá, com destino à Asa Sul, onde morávamos.
Contaram-me mais tarde que os responsáveis por minha hospedagem entraram em pânico, moveram fundos e raimundos antes de noticiarem o meu sumiço. Ela e ele, provavelmente arrependidos do que fizeram, voltaram à Brasília na manhã seguinte, em pleno domingo de Carnaval.
Assim que pousaram, eles correram e vasculharam cada quadra do Lago Norte à minha procura. E distribuíram cartazes e faixas pela cidade, chegando a oferecer boa grana a quem desse pistas sobre o meu paradeiro, como se remorso fosse indenizável.
Só na boca da noite da terça-feira, três dias depois do desaparecimento, souberam que eu fora encontrado, ainda no sábado. Um cidadão, que curtia o anoitecer com seu jet ski no Lago Paranoá, me resgatara semimorto e decidiu aguardar um pouco.
Nó na madeira, lenha na fogueira que não queria apagar, escapei. Só São Francisco de Assis sabe como.
De volta para casa – afinal, errare humanum est, perdoar é canino –, fui submetido a terapia intensiva à base de afagos, água fresca e peito de frango com arroz puxado na casca do alho, até me recuperar das lesões resultantes da prova de Triathlon.
O Guiness Book não homologou o possível recorde – é bem verdade, faltou a etapa do ciclismo –, mas a notícia correu solta na quinta-feira pelos canteiros da Asa Sul, onde voltei a fazer minha caminhada matinal, demarcando meu território a cada poste que encontrava pelo caminho.
Aproveitei, é claro, para me gabar junto a algumas amiguinhas peludas, lépidas e perfumadas, confidenciando-lhes detalhes da saga da praga que roguei naquele Carnaval de 2001. Sozinho, nunca mais!