Entre calçadas, escolas e quintais, vivi quase todas as traquinagens e safadezas de um curioso e impulsivo representante daquilo que o poeta paraibano Jessier Quirino chama de nação do desassossego.
Recuperei-me bem dos primeiros anos em que me botavam para dormir sob a ameaça de boi da cara preta ou de prisão num quartel, se não marchasse direito com minha cabeça de papel. A canoa quase virou, eu não sabia remar, mas ainda estou por aqui vendo meus netos crescerem.
Existe um malassombro, porém, que mexeu comigo e com toda uma geração de desobedientes: o papa-figo (contração de "papa fígados"), também chamado de “homem do saco” ou "velho do saco", que os mais letrados teimam em tratar como lenda do folclore brasileiro. Descobri mais tarde que a versão portuguesa "papa figos", uma ave, inspirou o rótulo de um belo vinho, bem mais palatável que o papa-figo tupiniquim.
Voltemos à suposta lenda do folclore brasileiro. Lenda coisa nenhuma! Lenda é boitatá, boto cor-de-rosa, caipora, curupira, lobisomem, mula-sem-cabeça, negrinho do pastoreio, saci pererê, essas coisas. O papa-figo, não. É concreto, assustador, dentro da cabeça de quem sobreviveu à sua fome.
Para o antropólogo e historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), em sua obra Geografia dos Mitos Brasileiros (1947), “O papa-figo é como o lobisomem da cidade, que não muda de forma, sendo alto e magro... é um velho sujo, vestido de farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou vendê-lo aos leprosos ricos...”
Ainda segundo Cascudo, “...em outras regiões é muito pálido, esquálido, com barba sempre por fazer. Sai à noite, às tardes ou ao crepúsculo. Aproveita as saídas das escolas, os jardins onde as amas se distraem com os namorados, os parques assombrados. Atrai as crianças com disfarces ou mostrando brinquedos, dando falsos recados ou prometendo levá-las para um local onde há muita coisa bonita...”
Diziam que o papa-figo, após comer o fígado dessas criaturas indefesas, deixava ao lado dos corpos uma certa quantia para as despesas com o enterro dos restos mortais e para ajudar a família enlutada. Não seria de todo mau, portanto.
Mas existe quem garanta que toda essa conversa surgiu em meados do século XX devido a um surto da Doença de Chagas no Nordeste. Para enfrentar o flagelo sanitário, técnicos do governo federal teriam sido deslocados para as comunidades onde havia muitos enfermos. Como a punção do fígado era procedimento de rotina na necropsia dos mortos, aí começou o disse-me-disse.
Ilustração: Umor |
Olhe... Sei não, viu?! Pergunte a qualquer sobrevivente daquela época se esse cão dos infernos é real ou não. Duvido que negue e diga que se trata apenas de uma lenda que atormentava as cabecinhas fantasiosas da molecada desobediente aos pais e apressada em descobrir os cantos e encantos do mundo.
Ultimamente, aliás, tenho visto muito papa-figo solto por aí, a degustar com azeite, orégano e sal o fígado de um rebanho inocente marcado a ferro e brasa para sofrer. Só mudou um pouco o jeitão de vestir-se e de camuflar intenções, ocultando fatos para proteger algum capataz ou mentindo ao lidar com um abominável gado novo que rumina no pasto. E sem deixar dinheiro para o enterro.
Tem papa-figo que tentou esconder-se no anonimato, operando como membro de um conselho paralelo à margem da pasta responsável pela saúde do rebanho de mais de 200 milhões de cabeças. Andou sugerindo inclusive minuta de decreto para que se mudasse a bula de remédios com ineficácia comprovada no tratamento de uma peste que ainda ameaça de extinção boa parte do plantel.
Outro fez de tudo para retardar o processo de compra de vacinas com visões conspiratórias e anticientíficas que comprometiam a imunização coletiva e a superação da peste. Pior, quis terceirizar a culpa pelo seu fracasso invocando o lugar-comum dos covardes: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Teve ainda aquele que pressionava pela compra de um imunizante da Índia – onde a vaca é sagrada, mas o país é o maior exportador de carne vermelha do mundo –, via contrato com uma empresa “de fachada” que quase embolsa alguns milhões de dólares pagos antecipadamente. Se não fosse a intervenção de um vaqueiro assustado, para quem a decência ainda constitui valor a ser preservado entre os animais, teria gente rindo da gente até agora.
Houve até um papa-figo apeado de importante cargo executivo por corrupção e lavagem de dinheiro, esquema envolvendo a contratação de hospitais de campanha, compra de respiradores e medicamentos para estancar a peste que já dizimou nada menos que 615.000 cabeças.
O mundo praticamente acabou durante quase dois anos mas, aos poucos, os sobreviventes saem de cavernas para explorar novas possibilidades. E se frustram quando percebem que foi duro ter caminhado tanto em vão, que a engrenagem já sente a ferrugem.
Com a chegada de novas eleições ano que vem, os papa-figos de sempre (e suas crias) já se movem à espreita de novos garrotes e novilhas, no desassossego de uma nação que marcha de chocalho para o brejo. Ou, quem sabe, para o matadouro.