quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Tarô da Ponta Grossa

"Em um dia bom, chego a fazer R$ 500,00. Mas tenho que tirar R$ 170,00 só pra gasolina", lamenta um amigo meu, motorista de aplicativo. Esta semana a Petrobras anunciou que a vida dele fica mais dura a partir de agora, quando o preço do combustível sobe 7%.

Ex-bancário, 60 anos, ele é bastante conhecido em hotéis e pousadas nos arredores do Pavilhão do Artesanato, na praia de Sete Coqueiros, em Maceió, onde faz ponto na rua Jangadeiros Alagoanos, no bairro de Pajuçara.

Com a queda do fluxo turístico durante a fase mais aguda da pandemia, viu diminuírem os passeios com interessados em conhecer os 300 km do litoral alagoano, pródigo em praias, lagoas, dunas, além da oferta de uma gastronomia de endoidecer os despreocupados com a circunferência abdominal.

 

No auge do isolamento, quase nada a fazer, viciou-se na internet. Agora, diz que o excesso de informações que recebe lhe deixa desorientado, com a sensação de que está perdendo tudo aquilo que aprendeu até aqui. 

 

Tento acalmá-lo, argumentando que essa sensação não é só dele. Digo que todos nós consumimos informações em demasia, o que impacta em maior ou menor escala a doidice de cada um. Não por outro motivo, aliás, psiquiatras e psicólogos andam com a agenda apertada até para vídeoconsultas de 20 minutos. E as farmácias seguem velozes e furiosas, encorpando suas carteiras de hipocondríacos fiéis.

 

Fiz questão de lembrá-lo de que, “em excesso, até água de pote faz mal!”, como dizia Zé do Cavaquinho (1911–1981), compositor e instrumentista virtuoso, boêmio, contador de histórias que viveu na cidade de Viçosa, na Zona da Mata alagoana, dono do bar “Trovador Berrante”, parada frequente do lendário Teotônio Vilela (1917–1983), o Senador das “Diretas Já”.

 

De tanto receber mensagens sem saber o que de fato é importante ou inadiável (só depois constata que a maioria não passa de lixo), ele suspeita de que a parte do cérebro responsável por suas escolhas começa a vacilar feio. 

 

E diz não saber onde estava com a cabeça quando abriu uma delas, nem mesmo como o seu e-mail fora parar nas mãos da remetente. Talvez descoberto no cartão que distribui com clientes, ressaltando que podem acioná-lo a qualquer hora do dia ou da noite.

 

Vi o teor da mensagem e concordo com a preocupação dele:

 

“Olá, …! 

Você está sentindo as forças ao seu redor nos últimos tempos?

Grandes mudanças estão acontecendo e você poderá até mesmo alcançar a vida que sonha. 

Meus poderes mediúnicos permitem colocar o dedo em suas áreas de bloqueio, naquilo que impede que você avance nesse momento.

Mas as cartas são os maiores mensageiros do seu destino!

Sim, o Tarô de Marselha pode lhe dar todas as respostas que você procura há semanas.  

Basta me pedir e eu direi tudo, sem nada pedir em troca.

Não se surpreenda com minha generosidade! 

Seus guias me encarregaram de conduzir você ao seu destino em segurança, e levo o pedido deles muito a sério...

Você está tão perto do objetivo!

Diga: Sim, eu quero acessar minha leitura do Tarô de Marselha!

Carinhosamente,

...”

 


Criado no século XV, o Tarô de Marselha é um dos mais conhecidos baralhos, possuindo elementos medievais em sua simbologia. Praticado no mundo inteiro, inclusive num velho casarão na Ponta Grossa, antigo bairro da capital alagoana às margens da lagoa Mundaú, é composto por 78 peças, cada qual com desenho e significado diferentes. O objetivo é descobrir como encarar o desconhecido de todos os viventes (no geral, de videntes também!): o futuro.


No dia seguinte, ele me procura um tanto misterioso. Acho até que, por trás do risinho enigmático, havia oculta a intenção de fazer uma visita ao estabelecimento para conhecer o jogo de forma mais profunda. 

 

Longe de mim ser desmancha-prazeres, mas em nome de nossa antiga amizade, peço-lhe que releia a mensagem em voz alta e noto que ele se engasga no ponto em que se cogita "colocar o dedo em suas áreas de bloqueio”. 


Bate então a dúvida se está lidando com uma taróloga cartomante ou uma amante tarada da Ponta Grossa: “Eu, hein?! Prefiro deixar certas áreas preservadas”, conclui.

 

E me deixa falando sozinho. Foi atender a uma nova chamada pelo aplicativo, agora que as coisas estão voltando à rotina e, a todo minuto, alguém põe o dedo na ferida, dispondo novas cartas sobre a mesa. Desta vez é a Petrobras.


34 comentários:

  1. Depois de reler e refletir, tenho certeza que para preservar áreas que devem ficar intactas o tarô é mais confiável que a Petrobrás. Obrigado por indução.

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    1. Se bem que não dá para culpar apenas a Petrobras pela escalada de preços dos combustíveis. São vários os ingredientes desse bolo que estamos engolindo sem um gole d’água sequer!

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  2. Boa Hayton, a sabedoria e a leveza de contar unindo o ludico com problemas reais. Muito bom

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  3. “Colocar o dedo em suas áreas de bloqueio.” Ah, se o nosso STF, A Câmara e o Senado, tivessem o insight do motorista do aplicativo, e proibissem a venda da nossa Petrobras.

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  4. Demais! Mas, sinto dizer, amigo Hayton, que pra saber que o futuro está nebuloso e prometendo mais gasolina cara e outros itens de empobrecer o cidadão, o seu amigo não precisa das cartas, basta escolher mal seu representante nas próximas eleições.

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  5. ANTONIO CARLOS CAMPOS27 de outubro de 2021 às 06:51

    Acho que o problema maior nem está no excesso de informações, mas na confiabilidade delas. As redes sociais se transformaram na arena das Fake News. Não está sendo possível distinguir a verdade da mentira. O Usuário passa a ser manipulado de todos os lados. No meu caso optei pelo radicalismo: sair de todas as redes sociais. A luta agora é contra a desinformação.

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  6. É verdade: o auge do isolamento é o tanto que ele buliu com a doidice de cada um. Ninguem aguenta mais tanta dedada. Dedé.

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  7. Esse negócio de colocar o dedo em certas áreas com bloqueio, realmente, dá margem a inpertrepações.
    Ótima crônica que nos faz refletir sobre vários problemas de ordem particular e até global. Sobre a gasolina barata só indo morar na Venezuela ou nos países árabes, cada um com seus prós e contras.

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  8. Epaaa!
    Troço perigoso, esse!
    Cuidado aí, meu amigo! Você parece conhecer muito desse mundo esotérico!
    Muito bom!
    Hahahahaha

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    1. Nem tanto, meu caro! Mas o que a gente não faz para proteger os amigos, hein?! 😂

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    2. Hahaha sem dúvida a Petrobras toca a parte mais sensível do corpo humano … o bolso !

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  9. Delícia de crônica! Não sei o que assusta mais: se a overdose de informação; se a dificuldade de separar os fatos das fakes; se o dedo em áreas de preservação moral ou se a oferta intrigantemente gratuita da taróloga! Kkkkk

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    1. Você tem razão. De fato, não se sabe o que assusta mais nos dias de hoje, no Brasil de amanhã. Parece um pesadelo!

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  10. Seus "causos" são os melhores! Ri muito!

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  11. Há digitais de ponta grossa por todos os escaninhos públicos País afora. Por onde a gente anda (com todo cuidado pra sentar) tem ali uma ponta grossa. Se não, vejamos: preço das commodities a afetar a ração das penosas, preço lá em cima; carne não vai pra China, mas por causa dos insumos, preço da carne está nas nuvens, gasolina cara com álcool misturado, preço evapora o bolso do mototaxista e "uberista". Enfim, desse jeito dá até pra entender a vontade do amigo do aplicativo querer dar um pulo lá no Tarô da Ponta Grossa. Não vai nem sentir mais, tamanha a generosidade da cuja.

    Adorei a crônica.

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  12. Com tanta doideira acontecendo, é bom não mexer em áreas um tanto sensíveis. Melhor não saber as respostas que a vidente diz saber todas.
    Do jeito que as coisas vão, até para ficar doido, é preciso ter um pouco de juízo.

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  13. Bom Dia, caro amigo Hayton...
    Realmente, convivemos cercados de incertezas. Muitos querem fazer valer suas opiniões a partir da leitura, nem sempre compreendida, de "notícias" que nos são bombardeadas a todo momento. Algumas são "desmascaradas" como "fakes". Mas esse "desmascaramento" é, também, em algumas vezes, opinião de quem não concorda com o que leu... O mais prudente é basear-se na máxima: "temos dois ouvidos e só uma boca"... E, "prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém" (desde que não sejam em excesso...).
    Forte abraço.

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  14. Muito boa, parabéns! Meu pai consultou, "por acaso", uma cartomante, ela disse que ele morreria aos 75 anos, quando completou, começaram suas preces e negociações para o prolongamento de prazo. Viveu até os 94 anos.

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    1. Que maravilha! Aquilo que é negociado previamente fica de bom tamanho para todas as partes, não é mesmo? E sem bloqueios!

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    2. Já com o meu pai, não houve chance de negociação. Uma cigana disse-lhe, certa vez, que ele morreria com 56 anos e isso permaneceu sempre presente em sua memória e na nossa, a posteriori, porque, infelizmente, seis meses após o aniversário de 56 anos ele nos deixou.

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  15. Hahahahahahaha. Quarta-feira é sorriso farto!!!
    Tão geniais quanto seus textos são os comentários que se seguem a eles. Sua habilidade literária e inspiração despertam comentários fantásticos! Opiniões, críticas, elogios, desabafos, revelações entre outras pérolas aparecem para coroar os textos. Como diria o outro “eu si divirto”!!!! Hahahahahahaha

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  16. Petrobrás, Eletrobrás, Correios, ...tem gente "colocando o dedo em áreas de bloqueio". É muita água de pote!
    Abbehusen

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  17. Do jeito que as coisas se apresentam nem a cartomante da Ponta Grossa pode traçar um futuro previsível sem inquietações.Daqui a pouco não queremos nem ouvir as preliminares do que pode dizer a consultora de ilusões. É melhor deletar a notícia antes de abrir kkkk

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  18. Está crônica está sensacional nos levando do imaginário da vidência a convivência com as agruras das redes sociais e seus engodos, e sem perder a ironia.

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  19. Se deixar colocar o dedo nas áreas de bloqueio, a coisa pode ficar perigosa. Existem muitos tarólogos mundo a fora. Cada um promete dizer um futuro... como a curiosidade matou o gato, imagina quantos gatos ainda existem por aí...

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    1. Duro é gato agarrado no carpete, sem querer sair do ambiente. E brigar com gato não é coisa boa. Você pode até derrotá-lo, mas seguramente vai sair com uns arranhões!

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  20. Delícia de crônica, sem deixar de registrar que seus personagens são impagáveis, verdadeiramente surreais.
    Mas lhe recomendo um pouquinho de cuidado, é prudente não enveredar muito por temas tão sensíveis - "colocar o dedo em áreas de bloqueio" - pois nos dias atuais é muito forte a legião interessada em passar por tais experiências. E aí, vai que pensam que você aprendeu a arte com a cartomante e agora está a praticá-la em quem se disser dela necessitado!! Sua agenda ficará sobrecarregada...

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  21. Não sei se o pior é termos uma overdose de informações, tanto das redes sociais como de sites da velha mídia, pois tanto um como o outro vez em quando disparam fake news. Não temos mais em acreditar de verdade no que lemos, pois só publicam o que interessa a eles, já que empresas são e querem faturar.

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  22. Não sei se o pior é termos uma overdose de informações, tanto das redes sociais como de sites da velha mídia, pois tanto um como o outro vez em quando disparam fake news. Não temos mais como acreditar de verdade no que lemos, pois só publicam o que interessa a eles, já que empresas são e querem faturar.

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  23. Os constantes aumentos dos combustíveis desenfreou, amigo. Sinceramente, não sei onde iremos parar!

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  24. A crônica nos faz refletir sobre o novo normal. Não esperava e não desejava que um dos caminhos do novo normal fosse gasolina a mais de R$7,00.

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