Noites atormentadas
Minha querida, você sabe do tanto de amor e de carinho que lhe devoto, apesar do meu jeitão mineiro de ser. Relutei mas preciso confessar algo um bocado sério. Não é propriamente um pecado, nem arroubos juvenis, quando temos ímpetos e atitudes incontroláveis. Mas, por favor, seja discreta, não espalhe por aí, sobretudo com pessoas fora do nosso círculo de amizade. A verdade é que estou me sentindo cansado e meio maluco (a modéstia me impede de me sentir totalmente).
Procuro na internet um manual do usuário para me orientar quanto ao que fazer para retardar esse famigerado processo de decadência. Deve haver em algum lugar instruções sobre o uso de ar-condicionado na penúltima estação da vida, com suas implicações sobre os ranzinzas como eu em aceitar os sinais de velhice.
Aquele aparelho odioso que você tanto aprecia e que foi instalado em nosso quarto pode nos trazer problemas. Tome nota: reumatismos, dor-de-ouvido (“dodovil”, segundo o João Bosco), entrevados musculares, dor nos quartos e até síndrome do pânico. Tudo bem, ainda se questiona o caso da síndrome, mas com perspectivas de comprovação científica, segundo os fabricantes de ansiolíticos.
Digo isso porque, depois de certa idade (ou idade incerta), de médico e de louco todo mineiro tem um pouco. Aquele vento frio e cortante no meu rosto, no meio da noite, me dá a impressão de que alguém me empurrou do alto do Pico da Bandeira, na Serra do Caparaó, com os pés colados num par de patins.
Aliás, saiba que depois que você insistiu em usar o ar-condicionado, falando da propriedade sonoterápica daquele trem, mal acordo e já confiro o que me resta de cabeça, tronco e membros, vendo se não falta nada, se existe algo torto, quebrado, ou mesmo necessitando de lubrificação.
Mês passado deu defeito no controle remoto quando borrifei de álcool o que não devia, a pretexto de limpar. Você ficou danada (prometi consertá-lo quando fosse ao centro da cidade) mas, enquanto isso, voltou a usar o ventilador velho e barulhento. Por um instante, até acalentei a esperança de que poderia melhorar a qualidade da insônia.
Não mudou muita coisa em termos de tortura qualificada da velhice, esse castigo social e biológico de que ninguém escapa a não ser pela morte. Apenas a sensação é diferente: agora, além de mouco, parece que fui sequestrado e amarrado, nuzinho como vim ao mundo, preso ao guard rail da BR-262. Bate um frio medonho na espinha que não tem quem suporte. Só não entrego os pontos porque "a vida é feita de poucas certezas e de muito dar-se um jeito", como disse Guimarães Rosa.
Pior de tudo nessas últimas semanas tem sido aquela gata cabulosa que você arranjou para morar com a gente. A noite toda arranhando a porta, querendo entrar no nosso quarto, sabe-se lá com que intenções. E agora, minha querida, enquanto arranha, ela reclama sem parar. Um rosnado choroso, arrastado e chato. Vai-se ver arranjou algum cheque pré-datado meu, vencido, e agora quer o dinheiro na marra, com atitudes de amante de miliciano.
Enquanto angelicalmente você repousa, quem sabe lembrando de nossos ilícitos carnais e etílicos cometidos no passado, travo uma luta inglória com essa gata sem-vergonha, correndo atrás dela e ameaçando-a de boas palmadas. Quando não aguento mais, sento-me no sofá para recuperar o fôlego, ela me encara com aquele olhar gateado e penetrante e desanda a miar toda carente e dengosa. Tô vendo a hora perder a cabeça!
A esta altura (diferente de mim, ela ainda possui pelo menos seis vidas, após engolir aquele curimatã-pacu cheio de espinhas que caiu de meu garfo), a luta é grande, mas não sou de arriar. Tá pesado porque me levanto da cama pronto pra dormir de novo, você acredita? A safada quer acabar comigo! E me dá medo só de pensar em propor a você um “ou ela ou eu” quando vejo você alisando o rabo (dela, bem entendido!) enquanto assiste TV na sala.
Para não pôr em risco aquilo que Deus juntou há mais de 40 anos, estou adotando um cachorro advogado (uns, ainda que humanos, enquadram-se nesse conceito), genuinamente canino, para negociar uma saída amistosa para as minhas diferenças com sua amiguinha. Estou seguro de que vai saber agir com cautela e sobriedade, evitando uivos e latidos durante a madrugada. Exceto, óbvio, em caso de legítima defesa contra eventual assédio.
Se isso não me livrar dessas noites atormentadas, terei que procurar outro local para curtir o último estágio de minha rabugice onde possa dormir sem ar-condicionado ou ventilador. E sem uma gata por perto querendo de mim o que já não posso oferecer.
Talvez um asilo com o piso bem limpinho e cheiroso, onde eu possa me deitar em paz só pra ouvir o rangido nos ganchos dos punhos da rede. Fui...
Amigo, depois de uma certa caminhada da vida, ficamos muito exigentes, o ar condicionado incomoda ,o bichinho de estimação a gente reclama, mas não quer ficar sem ele, enfim, ficamos ranzinzos , mas donos de muita sabedoria, a ponto de transformar tudo isso numa crônica.
ResponderExcluirKkkk...exatamente assim.... Amei a crônica! Como sempre. Sou sua fã! Parabéns
Excluir“Por um instante, até acalentei a esperança de que poderia melhorar a qualidade da insônia.” Que será outra coisa que fazemos nesse capítulo da vida que não isso?
ResponderExcluirUm texto firme como um trem, afiado como uma navalha, reconfortante como um café de um diálogo interno.
Opa! Com um comentário desse quilate, estou me sentindo discípulo do cronista mineiro Fernando Sabino, autor, dentre outras obras, de "O gato sou eu".
ExcluirVamos ficando assim mesmo. Coisas da idade.kkk
ResponderExcluirAdorei a crônica!!
Viver e ficar jovem idoso é bom, mas tem suas "dores". Não é à toa que se denomina "idade do condor". Belo texto!
ResponderExcluirEu continuo sem saber o que é insônia, embora a tenha desejado muito na época do Banco, quando achava o dia insuficiente para tantas metas. Todos os dias quando o despertador me salvava daquele sono sem fim, eu levantava desejando uma insônia para que naquela hora eu já estivesse com todas as mensagens prontas, esperando apenas apertar o gatilho que todos os dias alimentava a invejada insônia de alguns gerentes.
ResponderExcluirVocê tem razão, Maurício. Não faz sentido dormir tanto quando se tem a eternidade para fazê-lo, depois que a festa acabar, a luz apagar, o povo sumir e a noite esfriar, como um certo Zé no poema do mineirinho de Itabira reconhecido como um dos maiores poetas da Língua Portuguesa.
ExcluirO cenário descrito no texto parece remeter o “idoso” a uma “tempestade perfeita”!!!
ResponderExcluirViva aos envelhescentes!!
ResponderExcluirTalvez a solução fosse fazer com um casal de portugueses que conheci; viviam (ou ao menos dormiam) bem, tendo quartos separados.
ResponderExcluirCaro amigo, transformar isso tudo que você vêm enfrentando nessa crônica bem humorada, agradeça a Deus, você é um homem virtuoso!! Hehe!
ResponderExcluirQuem disse que enfrento os dissabores de meu personagem mineiro? Até curto de montão ar condicionado e, hoje, nem felinos ou caninos convivem comigo.
ExcluirMas só existe literatura na ficção. A realidade por si só não basta.
Não sei se a sua insônia é real ou uma criação alicerce de sua composição literária. De qualquer forma, ela a gata
ResponderExcluirse insere no contexto da crônica e combina perfeitamente com o desenrolar da crônica. Parabéns
ResponderExcluirSe tirar a gata cabe em minha casa. Perfeita.
ResponderExcluirUma das coisas difíceis numa convivência é quando se instala a intolerância. Um tem que ceder, senão vira um caos. Kkk , valeu amigo!
ResponderExcluirGrande crônica
ResponderExcluirCaro amigo Hayton, você retratou uma realidade que persegue muito "mineiro"... Diria que, além do ar condicionado, o colchão também pode contribuir para vivificar essa insônia... Outro dia, um vendedor ofereceu a opção de ter colchão macio de um lado e mais firme de outro... Aos poucos, os fabricantes de produtos que possam aumentar nosso bem-estar estão percebendo que cada ser humano é único... Quem sabe desenvolvem um aparelho de ar condicionado que individualize a preferência de cada usuário?... Forte abraço.
ResponderExcluirHahahahahaha
ResponderExcluirEntendo, em parte (não digo qual), o drama do sujeito…
Vale o desabafo!
Ufa! Estou livre desses problemas. Ainda. Mas a crônica é muito boa.
ResponderExcluirSó pra identificar.
ExcluirÉ justo ai. Idade só tem ida...
ResponderExcluir.
"A vida é muito curta e não há muito tempo para lutas e intrigas, meu amigo", disse um certo Beatle. "Deixe as crianças em paz" de um certo modo respondeu o cara lá do Pink Floyd. Inspirado nos dois, atrevo-me a sugerir: esqueça qualquer barulho, as dores nas juntas e outros incômodos, deixa a gata em paz, relaxa e dorme. Em certas fases da vida quase tudo é barulho. Impossível dormir com isso.
ResponderExcluirAinda bem que conheci um tal “de CPAP” indicado pelo amigo Hayton. Durmo feito “um anjo” e acordo sem reclamações da mulher. Parabéns pela bela crônica!
ResponderExcluirGostei da ficção que despertou a realidade de muitos comentaristas do blog.
ResponderExcluirEu não faço apologia da nossa situação, mas eu e minha mulher moramos em casas separadas há 15 anos. E nos damos muito bem assim. Nem o ar condicionado nos atormenta! Rsrs
Ah! E nas viagens juntos - que são muitas - tudo se acerta! Rsrs
Gostei muito da crônica!
ResponderExcluirComo sempre você consegue transformar a dura realidade, numa leveza incrível!!!
Esse tema bastante polêmico, sobre os
" Jovens da terceira ou quarta idade"
Realmente, tudo aborrece, são
impacientes, teimosos, tolerância zero.
Dizem até que é " A melhor idade"...
Sinceramente, não concordo. São pessoas sábias, com muitas experiências de vida.
Valeu Hayton!
Forte Abraço,
Maria de Jesus A.Rocha
E o que seria de nossa existência, se não fossem as diferenças? Certamente um marasmo, um tédio sem fim, sem podermos acrescentar nada a alguém, nem evoluirmos em nosso crescimento. A velhice que nos é imposta pelo tempo e que para tantos é um castigo, nada mais é que o prêmio por não termos partido mais cedo. Bela crônica!
ResponderExcluirKkkk... retrato falado de muitos casais. No quesito ar condicionado, incluo-me na líde. Vento direto atormenta... e o sono fica complicado. Mas há quem goste...
ResponderExcluirExcelente crônica, Hayton! Minha mente ilustrativa me fazia ver cada sena, como se real fosse (e quem dirá que não era?). E, quando acabou, sobrou a sensação de que poderia ter-se demorado um pouco mais, de tão divertida que estava.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirDepois de uma certa idade os defeitos das pessoas se acentuam, e com ele não foi diferente kkkkk. Excelente!
ResponderExcluirMais uma crônica baseado em histórias "reais" (sabedor que sou que histórias são reais, dependendo do ponto de vista), mas tão real pra quem chegou a uma certa idade, que mais parece uma parte de nossa história.
ResponderExcluirEssa deliciosa crônica, bem ao estilo de Leon Tolstói em "A morte de Ivan Ilitch", é um belíssimo retrato do ranzinza. Eu, por exemplo, fico extremamente irritado quando, no ápice de uma notícia de telejornal, alguém ou algo me interrompe. Ah, a rabugice da idade...
ResponderExcluirAdorei.
É assim mesmo… alongamentos, exercícios e pilates para atenuar um pouco. Rssssssss
ResponderExcluirComo para tudo tem remédio, estou tomando composto de Valeriana. Não é que funciona? Serve para todos os mineiros, paraibanos, paulistas, cariocas etc.
ResponderExcluirO dilema do ar condicionado... exatamente como aqui em casa, mas sempre sou voto vencido, rs
ResponderExcluirCom temperatura a 40 graus ficamos todos pianinhos!!!O ar-condicionado é um sonho para o sono!!!hehe!!!
ResponderExcluirGrande Hayton, mais uma bela crônica
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