Juramento de Almirante
Há meio século, boa parte dos brasileiros esperava a edição de domingo do Jornal Nacional, da TV Globo, para conferir o resultado da Loteria Esportiva, com a participação de uma zebrinha falante de olhos e boca móveis criada pelo cartunista Borjalo. Em 1971, com a estreia, do programa “Fantástico – o show da vida”, a mascote migrou para a revista eletrônica.
Borjalo inspirou-se no jogo do bicho, invenção de João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond (1825–1897), para levantar fundos destinados ao custeio do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, que lhe pertencia. Essa antiga bolsa de apostas logo seria encampada para práticas ilícitas que ainda hoje enriquecem algumas famílias.
O jogo incluiu 25 animais (bichos), mas não a zebra, parente africana de nosso resignado jegue, este com séculos de serviços prestados ao povo brasileiro. Quando o resultado era negativo aos olhos do apostador, dizia-se ter "dado zebra". Daí à adaptação para placar esportivo imprevisto foi um pulo. E quando saía o resultado da Loteria Esportiva, a cada escore inesperado a bichinha debochava com sua voz esganiçada: “Olha eu aí... Zeeebra!”.
Lembrei-me dela porque a associava à decepção semanal dos falidos e mal pagos (no sentido do descompasso entre dívidas e salários) que viam na Loteca a oportunidade de escaparem da asfixia, recobrando o fôlego e a própria razão de seguir adiante com um aporte extra que, infelizmente, nunca chegava. O jogo sempre foi o penúltimo recurso dos desesperados.
Meu pai era dos que dormiam frustrados nas noites de domingo. Para ele, em condições normais de trabalho, temperatura e pressão, sem os 13 pontos na Loteca era impossível sair do atoleiro em que caíra junto com a mulher e os nove filhos. Ainda assim, toda segunda-feira amanhecia disposto, fingia-se de forte e partia para mais um round de uma luta inglória.
Dois anos depois do final da peleja (no show da vida, ninguém disse que o resultado seria justo!), conheci Almirante. Nada a ver, registre-se, com a mais alta patente das forças navais. Apenas o apelido de um ajudante-de-serviço na Carteira de Crédito Agrícola e Industrial da Agência do Banco do Brasil em Maceió, quando ali cheguei, em 1974, como menor aprendiz.
Logo aprendi que a expressão "bancário apertado" era pleonasmo. No caso dele, aliás, parecia navegar em mar revolto, cercado de peixões famintos (agiotas, bancos e alguns raros colegas de trabalho mais afortunados). Nada diferente daquilo que tinha visto em minha própria casa.
Mas toda semana um sopro de esperança agitava as velas do barco de Almirante: a fé nos 13 pontos na Loteca. Na segunda-feira, a desilusão reaparecia impiedosa em sua carranca. Restava esperar a próxima aposta, ruminando palavras num resmungo só.
O gerente da agência, um distinto e respeitado cidadão na casa dos 60 anos de idade, de pouquíssima conversa (não se sabia se tinha dentes ou não, dado que nunca fora visto sorrindo!), personificava o establishment, o patrão bem-sucedido, o chefe dos chefes, admirado por autoridades civis, militares e eclesiásticas.
Quase todo dia, circulava pela Carteira (3º andar do então recém-construído prédio da Rua do Livramento, 120), traçando uma orientação aqui, dando uma ordem acolá etc. Pouco depois, arrastava-se com seus passos curtos até o elevador, marchando em direção ao imponente gabinete no 5º andar onde, dentre outras figuras da elite alagoana, recebia os herdeiros do baronato do ciclo da cana-de-açúcar do Brasil Colonial entre os séculos XVI e XVIII.
Numa quinta-feira, último dia para realizar a aposta semanal na Loteca, um gaiato (cujo nome não vem ao caso) que trabalhava ao lado de Almirante, ao perceber que o gerente da agência acabara de chegar, quis ser ouvido pelos colegas mais próximos:
– Almirante, se você cravar os 13 pontos, sozinho, qual será a primeira coisa que vai fazer?
Ilustração: Umor |
Debruçado sobre recortes de jornais e revistas com palpites e prognósticos, lápis na orelha, óculos na ponta do nariz, Almirante foi de uma inesquecível sinceridade:
O chefão, que passava despercebido por ele, deu-lhe três tapinhas carinhosas no ombro e esboçou um sorriso ainda incapaz de revelar a existência de arcada dentária:
– O que eu lhe fiz, meu caro?
– Nada, nada... Foi sem querer! – gaguejou o apostador, desculpando-se pela resposta incompatível com as gravatas e os sapatos engraxados no ambiente.
– E como você pretende se limpar? – provocou de novo o gaiato que iniciara o deus-nos-acuda.
Almirante pode até ter pensado nas cortinas de linho do gabinete do 5º andar, que escondiam a vista maravilhosa da praia da Avenida, mas preferiu o silêncio. Quando o gerente se foi, aí sim, levantou-se e partiu com tudo para cima do gaiato:
– Você não vale nada! Como é que faz uma coisa dessas comigo!?
Nisso, chegava outro engraçadinho, curioso com as gargalhadas:
– O que tá acontecendo aqui?
– Nada! Nada! Deu zebra... – resumiu o apostador, passando a régua no episódio, que poderia feder ainda mais para o seu lado na época do milagre econômico para as famílias de sempre, óbvio.
Como a maioria dos brasileiros, Almirante nunca conseguiu acertar os 13 pontos na Loteria Esportiva. Nem cumprir seu juramento memorável, em nome, inclusive, dos falidos e mal pagos daquele tempo.
Acho que no quesito de jogos na Loteria e situação financeira, o brasileiro mediano desse século não se difere muito do brasileiro do século passado. Como as possibilidades de gasto se ampliaram geometricamente, as opções das loterias também se multiplicaram na mesma proporção. E os sonhos e decepções continuam os mesmos,apresentando, no entanto, resultados diários. Até a zebrinha, agora digital, continua a mesma.
ResponderExcluirSegue igual a nossa vontade em acertar nas diversas loterias disponíveis para pagar parte das contas e em deixar uma lembrança na sala do chefe. Mudou que os agiotas estão cobrando juros mais baixos que as financeiras.
ResponderExcluirExcelente e hilariante crônica, principalmente para aqueles que conviveram com os personagens.
ResponderExcluirAs esperanças antes depositadas na Loteria Esportiva foram ramificadas para tantas outras criadas depois, tais como Lotofácil, Lotomania, Megasena e por aí vai. E o brasileiro, apertado ou não, continua confiante de que um dia a sorte grande vai lhe chegar e, a cada semana, paga feliz da vida esse "imposto" sem reclamar.
ResponderExcluirHoje, o "gaiato" poderia responder por bullyng, mas que foi engraçado, foi...rsrs. Muito boa, parabéns!
ResponderExcluirHehehehe. Excelente.
ResponderExcluirSensacional! Hahahahahaha
ResponderExcluirJeito leve de contar histórias nem tanto, incluída a pessoal.
Ótima leitura, como sempre!
Excelente
ResponderExcluirEu me identifiquei tanto com o aperto que deixava a loteria como última esperança, quanto com o comentário que não deveria (e foi) ser ouvido pelo chefe. Não sei dizer qual aperto é pior!
ResponderExcluirConheci muitos colegas que, tal qual o almirante, faziam suas apostas religiosamente na loteca, inclusive, alguns que chegaram a cravar os 13 pontos!
ResponderExcluirAprendi muito sobre o jogo do bicho com o seu texto. E sobre as loterias criadas pelos donos dos zoológicos para a manutenção das regalias dos bichos (que, no final, são eles mesmos), cada vez mais esfomeados. Pena que para nós, os pobres apostadores, sempre dá zebra.
ResponderExcluirMuitas lembranças de colegas e também de familiares que depositavam suas esperanças no acerto dos treze pontos e que ansiosamente aguardavam a conferência no noticiário noturno do domingo. Como menor aprendiz era o responsável por conferir todos os cartões do bolão semanal feito pelos colegas. Bela crônica. Parabéns.
ResponderExcluirQuanta sabedoria! Os colegas das suas crônicas, com certeza, sentem-se privilegiados.
ResponderExcluirPena, Perpétua, que nem o apostador, nem o chefão, nem o gaiato continua entre nós. Nem meu pai. Mas o show da vida continua…
ExcluirE era desse jeito, não. Ainda continua a ser. As loterias povoam as crenças do povo. É o "modo fácil de tornar-se rico". Que de facilidade não tem nenhuma. A chance é infinitesimal -- apesar de existir de fato. Eu, ainda hoje, milito no lado dos apostadores contumazes. Tenho até plano previamente traçado para a divisão da bolada. Quanto à zebrinha do domingo, por longo período animou as noites de domingo. E o plano do Almirante, que pretendia "melar" a mesa do poderoso chefão, quantas situações semelhantes encontramos ao longo da vida profissional. Superiores que viviam em outro mundo. E mereciam ser lembrados que não valiam sequer a obra sobre a mesa.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
Interessante... não sabia que era essa a origem da expressão "deu zebra". Quanto às loterias, um verdadeiro atentado contra a boa-fé do povo e a economia popular. A chance de um raio cair na cabeça do sujeito é de 1 em 1 milhão; de acertar as 6 dezenas da mega, de 1 em 50 milhões. Sem falar das fraudes de manipulação de resultados esportivos que ainda hoje acontecem, certamente iniciadas por conta da Loteca no passado, como já revelava a Revista Placar em matéria de 1982.
ResponderExcluirNo mais, crônica divertida e hilária, que nos brinda com mais um clássico "causo" do nosso bicentenário BB.
Acho que o gerente a que você se refere, era o sr. Manoel. Tinha-o na maior admiração. Nesse tempo trabalhava na carteira de cobranças. O que me favoreceu a trabalhar por tarefa e me tornar aluno da UFAL. Vamos ao que constrói. Diariamente seguiam muitos títulos não pagos para um cartório na Rua do Comércio, onde hoje é o prédio de uma grande loja de marca afamada. Porém, era orientado a não enviar títulos dos usineiro. Ficavam bem guardados. E no tempo em que as usinas recebiam por suas vendas, liquidáva-os todos de uma vez. E assim ele reduziu a verdadeira fortuna que o tal cartório recebia à época. Também nunca vi seu sorriso e seus dentes. Mas tive p prazer de sentir aquele coração magnânimo
ResponderExcluirCaso legal, principalmente porque retrata lugares por onde andamos e pessoas, se não as mesmas, parecidas com as que convivemos. Não é à toa que o jogo vicia. Meu avô e minha avó materna, de saudosas memórias faziam, religiosamente, uma fezinha. Ele, no bicho, ela na loteca. Lá mesmo no 120 da Rua do Livramento, certa vez fizeram “sacanagem” com um aficionado pelos 13 pontos. Copiaram os seus palpites e na segunda-feira perguntaram? Já conferiu os resultados? Ainda não! Tomei umas a mais e não assisti o Fantástico. Vou já na Casa Lotérica verificar. Um gaiato informou: Eu anotei, confere aí. E ditou jogo por jogo e resultado. E ainda imitava a zebrinha. O “sortudo” quase ia pra cidade de pés juntos sem usufruir o “prêmio”.
ResponderExcluirBela crônica! Hayton é mestre em tecer conexões entre assuntos do passado que nos afligem até hoje. Aliás, afligem o mundo inteiro.
ResponderExcluirNão é à toa que um coreano resolveu criar a série Round 6, que a Netflix espalhou para o mundo e que tem tido tanto público em países dos mais variados estágios de desenvolvimento.
Parece que a saga dos endividados é universal. E permanente!
Muito bom!!!
ResponderExcluirCaro amigo Hayton, Boa Tarde.
ResponderExcluirO sonho do colega Almirante, sem dúvida, continua sendo o de muitos. Esperar por um "milagre"... E não é só nas apostas das loterias... Ter esperança de que o amanhã será melhor, motiva o ser humano a ter suas "visões" do futuro, mesmo sem as apostas formais...
Forte abraço.
O Almirante merecia ter lavado a alma dele e de muitos. História parecida - retratada na crônica CHUTOU O PAU DA BARRACA E SUMIU - que será publicada no jornal da ANABB, vivenciei na agência da Bom Bosco - em Cuiabá (MT). A telefonista foi mais sortuda que o Almirante. Não chegou de cagar na mesa do gerente, mas "deu o bolo".
ResponderExcluirMais um texto que faz a gente viajar. Mais uma "História não escrita do Banco do Brasil" em alto nível! Adorei!
ResponderExcluirO tempo passa o tempo voa!!!
ResponderExcluirO jogo e a esperança continuam.
A esperança agora são os bolões da megasena acumulada.
O Brasileiro é acima de tudo, um ser que não perde a esperança.
Hayton, outra das boas, muito bom, e vou guardar essa..."não se sabia se tinha dentes ou não, dado que nunca fora visto sorrindo!" Conheci muitos assim...
ResponderExcluirTiberio
De fato, a expressão "bancário apertado" é pleonasmo. Belo texto para retratar mais uma história não contada do Banco do Brasil. E, de quebra, recordei a zebrinha do Fantástico. Parabéns!!!
ResponderExcluirConfesso que já fiz parte desse time de apostadores. Aliás, em 1979, final de ano, fizemos um bolão da esportiva entre os funcionários da agência de Soure, no Pará, e dois clientes amigos. O último jogo era Vasco X Santos. Nossa aposta era Santos e empate. O Santos ganhava de 3 X 0, e começamos a comemoração. Afinal os 13 pontos estavam garantidos. Queijo do marajá, whisky, cerveja, foguete... aí o Vasco começou a reagir, já lá pelos 30 do segundo tempo. Suamos frio, mas o jogo terminou empatado. 13 pontos. Aí fomos ver o fantástico, pra confirmar o resultado. Pra nosso infortúnio, milhares de acertadores. Prêmio não pagou a festa. Fora os que já tinham avisado parentes que já estavam preocupados com a possibilidade de sequestro... imagina uma segunda-feira...
ResponderExcluir...recordações da juventude. Na minha casa, meu tio e minha mãe jogavam e não perdiam a *zebrinha* do Fantástico. Depois, migraram para a Tele Sena do Silvio e como torciam na hora da roleta. Bons tempos...
ResponderExcluirSuas histórias e seus personagens, ah, seus personagens!!!
ResponderExcluirDe resto sua inestimável contribuição para o aprimoramento de nossa cultura sobre o quotidiano, que vibração me toma por enfim descobrir a razão de "zebra" definir o resultado inesperado de jogo de futebol - tô falando sério...
Outro texto impagável!!
Eita ferro! Ainda bem que não acertei na loteria quando estava da DIPES!!! Meu diretor não merecia tamanha ofensa!!! Rsssssss…. Vai que o desejo do Almirante passasse por minha cabeça! Rssssss! Que sufoco!
ResponderExcluirConheci todos os personagens dessa cagada frustrada. Não mais pertencem mais ao nosso plano. Deu zebra.
ResponderExcluirNão mais pertencem ao nosso plano.
ResponderExcluirA crônica me fez lembrar a tal zebrinha que era uma atração à parte dos domingos. Ela, com o resultado da Loteria Esportiva, era (acho eu) o bloco mais esperado do Fantástico, que hoje insiste em subsistir. Mais uma maravilhosa crônica desse escritor top de linha e, por acaso, meu primo.
ResponderExcluirSuas crônicas, vez por outra, me fazem lembrar algum personagem que conheci ao longo da vida. Desta feita, um amigo como o Almirante, apostador contumaz da Mega-Sena - os mesmos números toda semana. Um certo dia, espremido entre compromissos inadiáveis, perdeu o horário da aposta. Dia seguinte, ao conferir o resultado do sorteio (Oh! Desespero!), seus números lá estavam, "na cabeça"!
ResponderExcluirBaixou hospital.
Abbehusen
Me lembrou muito o início de tudo, em CARANGOLA (MG), minha terra natal. Conheci vários “Almirantes”
ResponderExcluirParei de jogar. Mas até já tive uma banca do jogo do bicho. Triste ver gente que tirava da mesa dos filhos pra jogar. Uma covardia o jogp. É, no mais das vezes, um Robin Hood ao contrário.
ResponderExcluirQuem fala demais dá bom dia a cavalo. Jß vi uma destas.
ResponderExcluirExcelente! Show! Gostei muito!
ResponderExcluirEssa ausência de contato humano, na acepção do que se possa chamar de realmente tomar contato com o próximo e suas questões mais profundas e até existenciais, tem sido algo debatido por teóricos da comunicação, por sociólogos e filósofos, com suas teorias sobre o que estaria nos levando a esse tempos líquidos, como disse nosso saudoso Zygmunt Bauman.
ResponderExcluirTextos como esse do Hayton permitem que esse assunto saia das esferas acadêmicas e da "alta cultura" para nos atingir no nosso cotidiano, para que entendamos na pele o que significam essas transformações sociais provocadas por esse inédito isolamento dos tempos digitais.
Ao ler, percebo como o cotidiano narrado de forma fluida e tão perto do nosso dia a dia pode dizer mais e nos fazer compreender muito melhor essa distância do outro. Só posso dizer que o Hayton caminha cada vez melhor por esse universo da crônica, com uma capacidade de trazer temas tão complexos para nossa vivência um tanto ordinária e passageira.
Foi agradável de ler e de se envolver na atmosfera que o criada pelo autor.
Grande abraço,
Sergio Freire